sábado, 17 de janeiro de 2009

Vermelhos e crus

Quando eu perguntei se ele gostava de mim, ele respondeu mecanicamente, “gosto, ué”, e percebi que ele estava mentindo. Mas ele baixou os olhos e ficou levemente vermelho, como se sentisse uma súbita vergonha da mentira, e eu entendi que aquilo mudava totalmente o sentido da frase, porque uma mentira que você diz mecanicamente já é diferente de uma mentira que você tem vergonha de dizer. Ele não sabe, mas é por isso que eu volto. Eu podia dizer que não trabalho aos domingos, ou nem atender o celular quando vejo o número dele. Mas eu lembro daquela carinha vermelha e me dá vontade de saber o que tem atrás daquela cor. Já era a terceira vez, a gente fazia tudo sempre igual. Ele tirava a primeira, depois me oferecia sorvete, ligava a televisão, a gente ficava de bobeira, ele fumava, eu lixava unha, ele tirava a segunda e dizia que ia me chamar um táxi, que eu sei que é o jeito de um cliente dizer pr’eu ir embora. A mulher, quando vi a foto no porta-retrato, pensei que talvez ela estivesse morta. Não tinha idade para morrer, mas existe câncer, bala perdida, acidente de carro, tanta coisa que pode acontecer... Mas um dia alguém telefonou, e ele falou “sei, sei”, depois falou “é claro, amor”, e eu percebi que ela estava bem viva e ainda pedindo pr’ele passar no supermercado. Desde aquele dia eu olho a foto de um jeito diferente. Essa mulher tão feinha, essas rugas, esse sorriso amarelo, ela parece tão infeliz. Eu sinto no seu cansaço a quantidade de sonho frustrado, as viagens que ela não fez porque o menino estava com bronquite, a empregada que ela não contratou porque tinha que sobrar para o curso de inglês, os livros que ela não leu porque não queria ler mesmo, mas ela consegue pensar que também foi por causa do menino ou do marido. Então penso em todos os livros que eu li, penso naquelas tardes maravilhosas em Cabo Frio, recordo aquele cliente generoso que me apresentou ao carpaccio e ao petit-gateau, e me custa admitir que eu também sou infeliz. Mas eu estou cansada de ser infeliz do meu jeito, queria tanto ser infeliz do jeito dela! E, mesmo presa no silêncio da foto, seu riso agora é um riso de zombaria. De alguma forma ela percebe que saiu vitoriosa, ela sente que a infelicidade dela é melhor que a minha. É quando eu digo que vou beber água, mas não estou com sede, eu quero é entrar mais uma vez na cozinha, olhar os recados na geladeira, cheirar os vidrinhos de tempero, espantar as moscas que já começam a incomodar as frutas. E de repente eu percebo que tem alguma coisa nessa cozinha que me escapa completamente, algo que nunca vou conhecer, mesmo que me aposse daquele homenzinho da sala e conviva para sempre com seu hálito e sua calvície. É talvez buscando essa coisa misteriosa que abro a geladeira e descubro, numa vasilha de vidro, os corações de galinha, vermelhos e crus, quase como morangos. Eu sei fazer coração, é muito fácil, é só refogar com tempero e cebola. Eu posso fritar agora e a gente come no palitinho, enquanto ele descansa e vê televisão. Uma alegria boba me invade, sinto que vou me apropriar de uma pequena parte da cozinha. A mulher da foto já vai me olhar de outro jeito quando eu voltar à sala, talvez assustada, acuada na sua moldura de porta-retrato. Mas eu chego na sala e o homem está abotoando a calça, o cigarro está morto no cinzeiro, ele pega o telefone e diz que vai me chamar um táxi.

No caminho para casa, passo num mercado vinte e quatro horas. Quando os corações estalam na frigideira, eu ainda tenho a vaga lembrança de um porta-retrato, uma mulher triste que teima em sorrir, um homem que transa de meias e precisa de óculos até para ver televisão. Mas logo depois estou engolindo a carne macia, e consigo acreditar que comprei coração apenas porque é barato e fácil de fazer. Posso estar triste agora, mas sei que, quando amanhã chegar, vou achar que hoje foi apenas mais um domingo.

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