quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Deus sem nome

Em frente à universidade havia uma pracinha com playground, e Cátia me perguntou se podia levar o Flavinho. Enquanto eu estivesse no debate, ela brincaria com ele na pracinha, depois poderíamos passar no shopping e comer uma pitsa. Imediatamente concluí duas coisas: ela não queria cozinhar naquela noite, e não queria assistir ao debate. A primeira não me incomodava muito, porque uma pitsa seria de fato melhor que a comida requentada de Cátia. Mas a segunda confesso que me perturbava um pouco. Era um dos debates mais importantes da minha vida, e ela simplesmente não queria estar presente. Se quisesse, poderia deixar Flavinho com uma amiga, ou até com mamãe, que não gosta de perder a novela, porém não chega ao ponto de nos negar um favor. Mas ela não estava nem aí. Tive certeza que ela pensava que passar a tarde num playground, com uma criança de seis anos, era mais importante que assistir à minha exposição sobre qual era a religião verdadeira, a única que poderia nos abrir as portas do céu e salvar nossas almas do inferno. Já havia algum tempo que eu estava percebendo que Cátia não ligava para teologia. Para ela, muito mais importante que discutir a natureza das religiões era ter tempo para ficar com Flavinho, e dinheiro para comer fora. Isso me decepcionava brutalmente, porque para mim não podia haver coisa mais importante que descobrir qual religião levaria realmente à salvação da alma, e não a uma aparência de salvação que terminasse por nos deixar nas mãos de satanás. Mas Cátia parecia pensar que a teologia e a filosofia eram simplesmente uma diversão requintada para homens que não sabiam dançar. Essa conclusão ia me decepcionando à medida que ficava mais nítida; e eu procurava mais e mais debates e conferências nos quais as pessoas pelo menos parecessem valorizar meu trabalho.

Mas não havia por que contrariá-la, e concordei com a história de pracinha e pitsa. Segui cabisbaixo para o auditório, na esperança de que pelo menos ali eu encontrasse alguém mais interessado no que eu tinha a dizer. Às vezes eu lamentava o fato de Jesus não ter se casado, e não ter nos legado instrução nenhuma sobre como lidar com as mulheres. Nessas horas me ocorria uma enorme vontade de dar uma olhada no Corão e ver o que Maomé dizia sobre elas — afinal, ele tivera quatro. Mas eu imediatamente afastava essa curiosidade, interpretando-a como tentação infernal.

Naquele dia, antes de o debate começar, reparei demoradamente no muçulmano e fiquei imaginando como seria sua vida amorosa: se tinha mais de uma mulher, se era feliz com elas, etc. Mas notei que sua esposa também o deixara para cuidar de alguma outra coisa. Primeiro me ocorreu que as mulheres, na sua religião, talvez fossem proibidas de ouvir um debate daquela natureza. Mas depois lembrei de Cátia e pensei que a mulher dele talvez simplesmente preferisse ficar na companhia dos filhos. Então reparei no judeu e vi que sua mulher também deixava o recinto. Percebi que éramos bem diferentes em nossas leis, mas nossas mulheres talvez fossem bem parecidas. Isso me deu alguma vontade de rir, e, embora eu não o tenha feito, pelo menos me senti mais leve para o debate; senti-me de alguma maneira mais próximo dos meus adversários.

Foi então que o moderador iniciou, dando a palavra ao judeu, que, segundo ele, representava a religião mais antiga entre nós. Obviamente não objetei, apenas lamentei que me coubesse o próximo lugar, pois, ficando antes do protestante e do muçulmano, seria mais difícil refutá-los. Mas logo veio a minha vez e defendi o catolicismo com a eloqüência que me é peculiar. Lembrei à platéia que Cristo não tinha vindo para negar completamente o judaísmo, mas antes para reformá-lo. O grande erro dos judeus não estava em acreditar em suas próprias leis, mas em ter negado e negar até hoje que o criador dessas leis esteve entre nós como homem e suportou a paixão da cruz para nos salvar. A platéia reconheceu minha eloqüência e me retribuiu com o aplauso merecido — com exceção daqueles que já tinham ido lá com o objetivo de apoiar meus adversários. Então fui tomado de entusiasmo e comecei a defender a religião católica frente aos protestantes e muçulmanos, coisa que me seria ainda mais fácil, dada a incoerência da fé deles. Mas o moderador me interrompeu, alertando que meu tempo havia acabado e pedindo que eu guardasse minha energia para mais tarde, no momento da mesa redonda. Como ele falasse de forma irônica, houve alguns risos na platéia, e eu senti meu entusiasmo se converter rapidamente em cólera. Por que aceito participar desses eventos, se sei que eles sempre arrumam um jeito de humilhar os católicos? Prometi a mim mesmo, pela centésima vez, que não participaria mais desses debates. Mas depois lembrei que sou um mero servo de Cristo e não posso tomar decisões dessa natureza.

O muçulmano veio logo em seguida e tive de me conter para não rir em público. A idéia de que um anjo tinha ditado detalhes sobre herança e impostos nos é tão ridícula que dispensava qualquer ataque. Mas notei que alguns se interessavam pelo Corão, por causa da permissão de poligamia. “O Inferno será um bom lugar para eles”, pensei comigo mesmo, enquanto tentava me dominar. Felizmente o moderador interrompeu o sujeito e passou a palavra ao protestante. Mas também foi uma ótima oportunidade pr’eu aprender a me dominar. Cheguei a fazer alguns sinais para o moderador, pedindo ao menos um minuto. Se ele me desse trinta segundos eu já conseguiria demonstrar a incoerência brutal de algumas besteiras que o protestante defendia. Como alguém pode achar que existe religião cristã sem o sacramento da confissão? Mas o moderador fez um sinal relembrando a mesa redonda, e tive de me conter.

Até que veio a tal mesa redonda e aconteceu simplesmente o que eu já previa. Cada um repetiu mais ou menos o que tinha falado, sem dar a menor atenção às perguntas dos outros. O protestante, não podendo ser mais cínico, fingiu não ouvir meus argumentos sobre a confissão, e tratou de atacar unicamente o culto aos santos. O muçulmano, esse já não digo que me ignorou propositalmente, pois acho que ele nem chegava a me compreender. Enfim, as coisas que eu estou cansado de ver...

Quando nos despedimos, percebi que seria até um alívio reencontrar Cátia. Ela me envolveria em algum problema doméstico, falaria da necessidade de comprar alguma coisa, de mudar de empregada, de dar não sei que presente para mamãe, e por algum tempo eu esqueceria que existe tanta idéia falsa no mundo. Então me lembrei, com certo pesar, que havia alguns anos que ela estava tomando anticoncepcionais, portanto não éramos assim tão católicos (no início eu protestei, mas foi só ela falar nos gastos de um novo filho...). Fiquei me perguntando se isso nos deixaria muito tempo no purgatório, e estava absorto nessa interrogação quando cheguei à pracinha. Cátia estava conversando com uma mulher de lenço na cabeça. Flavinho brincava na areia com dois meninos e uma menina um pouco mais velha, que também tinha um pequeno lenço envolvendo os cabelos. Foi quando alguém chamou um dos meninos e descobri que ele tinha nome judeu. Era a peça que faltava pr'eu entender o que estava acontecendo. Ignorando nossas diferenças teológicas, os meninos brincavam juntos, com seus carrinhos e naves. Foi comovente a carinha que fizeram quando viram que teriam de se separar. Fiquei reparando na cena, enquanto meu peito se enchia de uma tristeza vaga e obscura. Por um momento invejei aquelas crianças, que ainda não tinham encontrado motivo para se odiar. Por um único momento, desejei viver no mundo delas: um mundo sem fronteiras, onde Deus ainda não tinha nome.
Cátia se aproximou, e logo me tirou da pequena epifania.

— Não é absurdo obrigarem a menina a usar um lenço na cabeça?!? Ela é tão novinha...
— É, amor... É absurdo.
Concordei sem hesitar. Por que discordaria? Para iniciar outro debate?

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