quinta-feira, 22 de abril de 2010

Desordem

Eu odeio bagunça. Meu quarto nunca foi bagunçado, pelo contrário, eu achava tudo que eu queria em questão de segundos. Minha mãe é que pensava que estava tudo bagunçado, ela não percebia que as coisas estavam absolutamente no lugar, porque eu podia lembrar onde as tinha colocado e pegá-las na hora que eu quisesse. Acho que a única pessoa que entendia isso era o Paulinho. Ele ficava à vontade na minha bagunça, não mexia em nada, sentava, deitava, às vezes pegava um livro, mas depois colocava onde tinha encontrado. Eu lembro perfeitamente quando comecei a amá-lo, porque eu tinha levado um fora do Alessandro, e estava percebendo que o Caio também não queria nada comigo. Mas o Paulinho estava sempre lá em casa, a gente conversava sobre coisas legais, como seriados de televisão e livros de vampiro, e eu comecei a pensar que tudo seria mais fácil se eu amasse o Paulinho, se eu conseguisse ver um charme especial naquele jeito calado, naquela cara impassível que ele mantinha diante tudo, até das contrariedades. Fui aos poucos criando uma estratégia para me aproximar, até que um dia estávamos vendo televisão, e eu falei:

— Estou numa fase ótima para homem, tenho recebido um monte de cantada.
— É mesmo?
— Só você ainda não me cantou. Você se segura, bem, hem! Ha, ha, ha!
— É mesmo? — Ele era meio lerdo, mas pelo menos chegou a rir. Aí eu mandei essa:
— Me dá uma cantada só para eu ver como é o seu estilo.
— Como assim?
— Me dá uma cantada, seu tonto!
— Ah... Você é linda, ué!

Ele não era muito original, mas naquela hora eu percebi claramente que ele gostava de mim. Sei lá, a cantada saiu com um jeito tão sincero. Depois ele ficou me olhando sem graça, rindo de nervoso, e eu fiz aquela carinha de quem quer ser beijada, para facilitar para ele, mas como ele nem se mexeu, eu o agarrei e o beijei com força, com decisão, acho que até com raiva — não dele, mas de Deus, que não me mandava um homem melhor. Depois o beijo foi engrenando, e ficou até gostoso. Tenho certeza que ele queria me beijar naquele dia, mas ele era muito tímido, aos poucos fui entendendo isso melhor.


Aí veio aquela fase em que eu não pensava mais no Caio nem no Alessandro, porque eu ficava horas com o Paulo no meu quarto, beijando e curtindo aquela fissurinha. Quando ele tentava alguma coisa, tipo colocar a mão dentro da minha calça, eu falava: — Você ouviu esse barulho? Acho que minha mãe está subindo — mas não havia barulho nenhum, eu só queria me exercitar nessa arte de aceitar e rejeitar que eu estava descobrindo ser o maior e mais verdadeiro prazer feminino. O Paulo era bem comportado e não tentava nada muito ousado, e às vezes eu me perguntava se eu gostava realmente dele ou se ele não era só um estágio que eu estava fazendo antes de encontrar o homem da minha vida.

Mas a minha bagunça continuava a mesma, e a minha mãe já falava que não ia entrar nunca mais no meu quarto. É difícil explicar como eu achava chato tirar as coisas do lugar e colocar dentro de uma gaveta, do armário ou em cima da estante. Me parecia que eu estava traindo a minha própria ordem, e aderindo a um esquema externo que não tinha nada a ver comigo. Acho que foi por isso que passei a gostar bastante do Paulinho. Ele nunca reclamava da minha bagunça, pelo contrário, ficava lá, deitado no meio das minhas coisas jogadas, às vezes olhando para o teto, às vezes rabiscando num dos meus cadernos velhos. Ele integrava a minha bagunça e eu gostava disso. Aos poucos fui deixando que ele fizesse cada vez mais coisa, liberei os seios, deixei ele enfiar a mão na minha calcinha, e até comecei a explorar o corpo dele. No dia que eu o chupei, e o deixei gozar na minha boca, fiquei pensando que ele nem devia imaginar o quanto meu amor tinha a ver com aquele quarto desordenado onde a gente ficava. Mas em vez de falar sobre isso, eu acabei dizendo que o amava, e eu mesma não entendi por que a voz saiu fraca e meio trêmula. Ele me olhou com um olhar meio vazio, e eu achei que ele ia falar “eu também”, mas ele disse: — É mesmo?

Acho que foi a partir desse dia que começou a acontecer uma coisa estranha: eu não achava mais nada no meu quarto. Devia ser culpa da minha mãe, porque, quando eu era obrigada a guardar alguma coisa, eu não lembrava onde tinha guardado. Era um ato artificial, que não tinha partido de mim, e minha mente não registrava. Mas depois eu já não achava nem o que eu tinha deixado no chão. E também comecei a me incomodar com a sujeira que acumulava de baixo da cama, e passei a sentir com nitidez o cheiro do Paulo no lençol, e aquilo me desagradava, porque significava que ele passava semanas sem ser lavado. E o tonto do Paulinho continuava no centro daquela bagunça, olhando para o teto, rabiscando folhas velhas, costas de envelopes usados, ou até mesmo dormindo, como se fosse um gato de estimação e tivesse o direito de dormir em qualquer canto da casa.


Um dia eu estava procurando uma caneta, e como não a encontrava, perguntei ao Paulinho se ele não se incomodava com aquela bagunça toda. Ele respondeu que sabia que eu lembrava onde eu tinha deixado as coisas, e confessei que eu já não lembrava mais, que talvez precisasse aderir à maldita ordem da minha mãe para encontrar a minha própria tralha. Achei que ele ia me apoiar e dizer que aquilo ia passar ou qualquer coisa assim, mas ele disse: — É mesmo? — e foi aí que eu percebi que alguma coisa estava muito errada com o Paulinho. Não era certo ele me aceitar daquele jeito. Ele tinha que, pelo menos, tentar me transformar numa pessoa mais organizada, mais disciplinada, mais capaz de alguma atitude. Ele me aceitava do jeito que eu era, mas eu queria ser outra pessoa, por isso não aceitava que ele me aceitasse. Fiquei meio confusa, não sabia direito o que dizer, e acabei por pedir que ele fosse embora. Ele fez uma carinha meio triste, e eu pensei: “pelo menos isso! Pelo menos ele é capaz de fazer outra cara!” Naquele dia coloquei algumas coisas dentro do armário, depois pensei em ligar para o Paulinho e pedir desculpa, mas senti que eu podia segurar a vontade até o dia seguinte.

E no dia seguinte eu já me sentia melhor, porque vi que eu era capaz de colocar certa ordem nos meus impulsos. O Paulinho voltou com a sua cara habitual, e, no maior cinismo, me perguntou se eu estava mais calma. Fiquei com tanto ódio que respondi: — Claro que eu estou mais calma — e ainda o beijei com uma ternura fingida. Comecei a ver que eu podia não apenas controlar meus impulsos, mas decidir se eu ia demonstrá-los ou não. Fiquei mais introvertida, passei a pensar um pouco antes de falar, e pedia licença ao Paulinho para arrumar a cama e guardar minhas roupas. Então foi ficando mais claro para mim algo que eu já sabia, mas não gostava de admitir. Eu nunca havia amado o Paulinho, eu apenas me acostumara com ele. O homem da minha vida devia ser mais organizado, mais ativo, e ao mesmo tempo mais estrategista. Pensava antes de falar, e falava as coisas certas. Sabia impressionar uma mulher. Naquela mesma semana decidi que ia terminar com o Paulinho e, quando chegou sexta-feira, eu me arrumei toda e me maquiei como uma putinha, e o levei para dançar. Fiquei dançando e flertando com outros homens na frente dele, e aquilo me divertia, e me fazia sentir poderosa, mas acho que o sonso nem estava ligando. Fiz a mesma coisa outras semanas, depois ainda dei em cima de um amigo dele, e quando o cara finalmente soltou uma indireta, eu fui correndo contar para o Paulinho.

— Sabe quem fica jogando indireta para mim? Seu amigo, o Arsênio. Ele fica falando que eu sou bonita demais para ter um namorado só.

Pensei que ele ia dizer “é mesmo?”, mas ele disse: — Ah, o Arsênio, grande figura!

Então comecei a pensar que eu mesma ia ter que terminar, não ia ter outro jeito. Mas pensar é fácil, difícil é fazer. Eu não conseguia achar uma ocasião apropriada. Sempre que eu ia abordar o assunto, acontecia alguma coisa que me mostrava que o Paulinho, afinal, era um carinha legal, tranqüilo, sem muita neura. Além disso, ele estava começando a demorar mais para gozar, e até dava para gozar com ele. Às vezes eu lembrava do Caio e do Alessandro, e ficava com medo que os outros homens me desprezassem, e eu não conseguisse outro namorado. Aquilo me irritava, e eu gritava com o Paulinho, e o chamava de sonso, de preguiçoso, de mané. Ele abaixava a cabeça e começava a assobiar, e aquilo me fazia subir um ódio tão grande que eu quase vomitava. Mas depois comecei a ver que esse ódio podia se transformar em energia para arrumar o quarto. No início era só uma desculpa para mandar o Paulinho embora, mas depois fui descobrindo a delicadeza do ato de dobrar, de acomodar as coisas na gaveta, o prazer de varrer, de esticar o lençol. Descobri como era gostoso e gratificante ficar de quatro, e puxar a sujeita de baixo da cama. E tirar todas as teias de aranha, nos cantinhos mais imprevisíveis, me fazia sentir vitoriosa, feliz comigo mesma — era quase como ter um orgasmo.


Uma nova amizade começou a surgir entre mim e mamãe, e ela me apresentou à cozinha, com seus odores variados e ruídos metálicos. Fazer compras também era gostoso, apertar os legumes, sentir sua consistência, cheirar as frutas, perscrutar datas de validade. Fui descobrindo um mundo que não dependia do Paulinho, um mundo mais permanente e silencioso, que ele nem devia saber que existia. Passei a pensar menos nele, e vi que terminar não podia ser tão difícil. Eu era muito nova, provavelmente ainda teria uma porção de namorados antes de casar. Estava me acostumando a essa idéia quando resolvi trocar os móveis de lugar, só para tirar a poeira que acumulava em baixo, e me surpreendi com uma das folhas rabiscadas pelo Paulinho. Tentei ler a caligrafia canhestra dele, e descobri um poeminha todo bonitinho, falando de um cara que se sente à vontade no quarto desarrumado da namorada. Ainda lembro os versos finais, que diziam:


E ela nem deve suspeitar
Que seu mundo fora de lugar
Já tem um canto reservado
No sonho improvisado
Que eu sonhei para nós dois


Acho que fiquei vermelha, porque senti um calor forte no meu peito, que subia para o rosto e enchia meu olho de água. Me deu vontade de ligar para todas as minhas amigas e contar que o Paulinho tinha escrito um poema para mim, mas naquela tarde só consegui falar com a Flávia, a Vanessa, a Cláudia e a Samira. Elas disseram que seus namorados também escreviam para elas, e fiquei pensando: “Meu Deus, como elas são idiotas! Aposto que eles apenas copiam frases feitas de cartões de papelaria. Não são como o Paulinho, que escreveu uma coisa que tem tudo a ver comigo!”

Depois pensei em fazer um blogue para mostrar para todo mundo o poema lindo que meu namorado tinha escrito. Liguei para o celular do Paulinho e falei: — Vai para casa agora, e me liga! — E quando ele me ligou, eu mandei:


— Sabe o que achei aqui em casa?
— O quê?
— Olha só, vou ler os primeiros versos:


A ordem que eu procuro
Não está dentro de uma gaveta.
Não está fechada no escuro,
Morta, impassível, obsoleta.


Senti que ele ficou um pouco emocionado, porque fez um longo silêncio, e fiquei contente por tirar um silêncio daqueles do Paulinho. Eu ria por dentro, queria encontrar uma forma de dizer que o amava, mas não daquele jeito que eu tinha falado da outra vez. Só que não consegui encontrar uma frase melhor, e soltei: — Eu te amo, sabia? — E quando ele falou — Puxa, amor, eu também! — senti que eu já podia morrer, porque fiquei feliz feito uma passarinha! Depois eu perguntei se ele ia passar lá em casa, e ele falou — Olha, amor, pode ser amanhã? — mas eu nem liguei, porque eu queria mesmo fazer uma surpresa para ele.


No dia seguinte, acordei cedo, e comecei a desarrumar o quarto. Tirei as roupas do armário, joguei no chão e na cama. Depois fiz o mesmo com a cômoda. Deixei folhas e cadernos espalhados, para o caso de ele querer escrever, e ainda comi biscoito e fiz o farelo cair em cima do teclado do computador. Assim que ele chegou, eu o arrastei para o quarto, e acho que ele entendeu que aquilo era o meu poema para ele, aquilo era a minha declaração de amor, porque ele falou — Nossa! Que bagunça! — e me beijou de um jeito que nunca tinha beijado. Depois me jogou na cama, e enquanto tirava a minha roupa, eu fiquei pensando que era uma pena eu não poder colocar certas coisas no blogue.


Depois a gente ficou deitado de conchinha, e eu estranhei quando ele falou — Amor, lembra do Arsênio? — porque aquilo não era hora para pensar no Arsênio. Mas aí ele contou uma coisa que me deixou ainda mais surpresa. O Arsênio tinha uma banda, e os dois tinham feito uma música juntos. O Paulinho escreveu a letra e o outro pôs os acordes. Claro que eu fiquei encantada, e me deu vontade de falar outra vez que eu o amava, mas eu me segurei porque já tinha falado no dia anterior; não queria que o Paulinho ficasse se achando o cara. Depois, quando fui ao banheiro, fiquei pensando que eu era uma tonta. O Paulinho tinha essa veia artística, e eu nem tinha percebido, eu achava que ele era só um banana mesmo. Voltei para cama ainda mais entusiasmada, com vontade de ser todinha dele, de deixar ele fazer tudo que quisesse, até me amarrar e gozar na minha cara, mas ele já tinha colocado a roupa, e começou a me falar sobre o dia e o lugar onde a banda ia tocar. Eu achei legal, e pensei: “amanhã ele vai estar com mais vontade”. Mas quando ele foi embora, eu ainda estava sentindo uma energia vibrante, e me tranquei no quarto e me masturbei, pela primeira vez pensando no Paulinho. Imaginei que ele estava em cima do palco cantando e apontando para mim na hora que falasse “amor” ou “princesa”, depois fiquei especulando se eu devia contar para ele que eu às vezes me masturbava, depois não pensei em mais nada, porque fiquei exausta.


No dia do chou, o Paulinho não cantou, e a gente ficou só numa mesa vendo o Arsênio e a banda tocar. Fiquei me sentindo meio mal, porque eu já tinha jogado charme para cima do Arsênio, antes de saber que o Paulinho era um artista. Depois chegaram as minhas amigas e começaram a lhe dar os parabéns, e eu pensei: “Ah, Meu Deus, agora essas putinhas vão dar em cima dele!” Lembrei aquele dia que eu tinha levado o Paulo para uma boate e flertado com vários caras, e fiquei pensando que eu merecia mesmo que ele paquerasse outras meninas, talvez ele ia até me trair e eu ia ter que agüentar. Fiquei tão mal que nem entendi direito a música. Falava de amor de uma forma meio exagerada, e fiquei um pouco decepcionada, pensando que o Paulinho devia ser meio falso, porque me amar daquele jeito eu sei que ele não amava. Mas não liguei muito para isso. Se ele fizesse sucesso, para mim estava bom. No final da apresentação, o Arsênio chamou a gente para tirar foto com ele, e fiquei feliz como uma doida. Abracei os dois e tive até vontade de beijar os dois, mas claro que beijei só o Paulinho para não dar vexame. Depois o Paulo me levou em casa, e fiquei de novo me sentindo mal, pensando que eu era meio putinha, e ele era tão atencioso, tão gracinha comigo. Ele não merecia a namorada que tinha.


Na semana seguinte a minha situação piorou, porque o Paulinho me mandou por email um linque para um conto dele que tinha saído num saite de literatura. Levei um susto, eu nem sabia que ele escrevia. Não perguntem se estava bom — aliás, acho que não estava, não se parecia com nenhum texto da Anne Rice — mas eu adorei assim mesmo, porque percebi que o assunto mais uma vez era eu. Era a estória de um cara que adorava a namorada, bagunceira e destrambelhada, e de como ela tinha transformado a vida dele. Na mesma hora coloquei um linque para o conto no meu blogue, depois mandei um email para todas as minhas amigas. No dia seguinte, quando encontrei com elas na faculdade, todas falaram: “ainda não li, não tive tempo”, e me subiu aquele ódio mortal que me deixa até sem ar. Cheguei em casa e li o conto mais umas dez vezes, depois mandei emails para mais uns vinte amigos, divulgando o saite. Alguém ia ter que ler aquilo, nem que fosse à força.

Mas quando o Paulinho chegou lá em casa, fiquei me sentindo estranha. Lembrei que eu tinha pensado várias vezes em terminar, e tinha até achado que não o amava. E no entanto ele parecia realmente gostar de mim: tinha escrito o poema, falava súper bem de mim no continho. Fiquei pensando se ele não merecia uma namorada melhor, que o amasse de verdade, que tivesse algum talento como ele. O Paulinho era calado e meio sonso, mas quando fazia alguma coisa, era algo que valia a pena ver. Eu era destrambelhada, e sonsa também, mas da minha bagunça não saía nada que merecesse atenção. Eu era só uma burra mesmo! E o Paulinho estranhou que eu estivesse meio distante, e perguntou o que eu tinha, mas eu não consegui responder. Apenas levantei e comecei a arrumar o quarto. Quando ele desceu, eu fechei a porta e deixei o choro aflorar. Era triste ver que eu não o merecia. Ele era inteligente, carinhoso, fiel, eu não tinha metade dessas qualidades. Depois lavei o rosto e voltei para a cama. Mas tive que trocar o lençol, porque ainda estava com o cheiro do Paulinho. Quando o levei para a área de serviço, minha mãe me viu, e fez um elogio, tipo “olha como ela está ficando organizada”, e, não sei por quê, me deu vontade de voltar para o quarto e chorar de novo. Mas, assim que entrei no quarto, decidi escrever uma lista de tudo que eu ia fazer no dia seguinte: passar roupas, arrumar o quarto, começar a economizar para comprar um cachorro. Fiquei pensando que nome colocar no cachorro, e isso me ajudou a dormir.

No dia seguinte, fui fazendo algumas coisas da lista, e antes de acabar já fiquei louca para escrever outra. De noite escrevi mais uma, na outra noite também, depois chegou o fim de semana e eu deixei prontas as listas de segunda e terça-feira. Na segunda comprei uma agenda, na terça passei tudo a limpo, desde a primeira lista, porque eu queria registrar tudo que eu tinha feito. Assim fui descobrindo que eu adorava programar o meu dia. Agora eu arrumava o quarto, não porque gostasse de dobrar as roupas e colocá-las no lugar, mas porque era um item a cumprir da minha lista. Resolvi escrever tudo que eu tinha que fazer, até o fim do mês, e de repente apareceu o item “Terminar com o Paulinho”. Ele foi lá em casa nesse dia, e eu tinha guardado a agenda no fundo de uma gaveta. Fiquei pensando como era engraçado que eu já tivesse até data para terminar, e ele não fazia idéia, não podia nem suspeitar. Quando chegou o dia 27 de março de 2009, eu liguei para o Paulinho e disse: “A gente precisa conversar”. Ele perguntou: “Pode ser amanhã?”, e eu falei: “Não, não pode.”

Naquele mesmo dia a gente conversou, e eu achei que não ia sentir emoção nenhuma, porque já estava tudo programado. Mas ele ficou me olhando com aquela carinha de desorientado, e de repente eu chorei. Depois eu achei que precisava pedir desculpa, e falei:

— Desculpa, Paulo. Eu ainda não consigo ser totalmente organizada.


— Mas por que é que você cismou com esse negócio de ser organizada? — Ele perguntou, quase gritando. E eu pensei na minha mãe, pensei no Caio e no Alessandro, pensei no poema do Paulinho, e chorei de novo. Depois voltei para o quarto, e pensei que assim que eu começasse a fazer uma lista ia me sentir melhor.


Mas eu só fui me sentir melhor no dia seguinte, porque contei o dinheiro que estava juntando e vi que já quase dava para um cachorro. Depois eu estava descendo a rua, e o Caio passou de carro. Ele me ofereceu uma carona, e falou que tinha visto no meu Orkut que eu tinha voltado a ser solteira. Na mesma hora eu lembrei que o Caio era um traste. Ele era galinha, já tinha ficado com todas as minhas amigas, fumava maconha, era burro, tinha tentado direito, mas só passara em publicidade. Para piorar, ele estava namorando a Cátia, uma conhecida minha. Percebi de repente que um cara daqueles jamais ia me fazer sentir culpada. Qualquer besteira que eu fizesse, ele poderia fazer pior. A Cátia ia me desculpar, mas eu precisava tentar. Assim que eu cheguei na faculdade pensei em abrir a agenda e escrever umas coisas que eu estava pensando. Mas depois concluí que era melhor guardar aquilo apenas na memória. Tem coisa que é melhor ninguém saber que foi planejada.


No outro dia passei pelo mesmo lugar. No outro também, e persisti nessa tática até o Caio aparecer e me dar outra carona. Quando eu desci do carro, me inclinei diante da porta para me despedir, e percebi que ele meteu os olhos nos meus peitos. Era um traste mesmo, não havia como defendê-lo. Se, alguns dias depois, a gente acabou se beijando, não era porque eu gostava dele, mas só porque eu precisava mostrar para a Cátia que ela estava namorando um cretino. Depois que os dois terminaram, ele veio com um papo dengoso para cima de mim, e eu percebi que ele nem gostava de mim, nem sabia direito quem eu era, só queria alguém porque não agüentava ficar sozinho. Aí fiquei com ele sem culpa nenhuma, porque eu também já tinha visto que eu não gostava dele. E hoje eu sei que é melhor assim. Não quero passar por toda aquela humilhação que eu passei com o Paulinho. Se qualquer dia eu trair o Caio, não vou ficar me sentindo péssima. Aliás, eu nem penso muito sobre isso. Agora eu tenho minha agenda, e consigo fazer tudo que eu programo. No fim do ano vou comprar um cocker spaniel. E o poema do Paulinho, eu ainda não tive coragem de jogar fora. Às vezes eu releio aqueles versos, e me dá saudade de alguma coisa que eu não consigo compreender. Alguma coisa que parece que eu nunca mais vou ter, tipo a infância. Mas eu já tenho data para acabar com isso. Deixa chegar o dia trinta e um de maio, que esse maldito poeminha nunca mais vai existir! E eu vou continuar sendo organizada. Vou continuar fiel à minha agenda. Pelo menos nela eu sei que eu posso confiar.