quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Estranha São Paulo

Sinceramente, eu gosto de São Paulo. Muitos reclamam da chuva, mas há ótimos restaurantes, as pessoas são educadas, as garotas de programa são carinhosas e bem humoradas, apesar do sotaque caipira. Porém confesso que não lembro o que vim fazer aqui. Eu queria estar na Cidade do México, para fugir do calor torturante do Rio. E de repente acordo neste apartamento em São Paulo, descalço, todo amarrotado, embrulhado numa roupa de ontem. Da janela vejo prédios pequenos e carros velhos, certamente não estou nos Jardins, nem no Sumaré. Noto que os outros que dormiram na sala também começam a acordar. Aguardo alguns segundos, e pergunto:
— Quem me trouxe para cá?

Eles se olham intrigados, as duas garotas riem. São morenas de olhos pequenos, mas estranhamente corpulentas para descendentes de japoneses. Faço outras perguntas que só causam mais risadas. Então surge do corredor uma figura conhecida. É o Maurício, já está calçado, certamente acordou há mais tempo.
— Não fale em português, eles não entendem com facilidade.
O que será que ele quer dizer?, me pergunto um segundo antes de começar a entender. Volto para a janela e vejo uma placa no prédio em frente: "Ferreteria Reina - Accessorios para muebles". Começo a recordar algumas cenas, o pequeno restaurante em Santa Fe, depois a cervejaria na Plaza de Toros. Uma canção em espanhol me vêm à cabeça, mas provavelmente não a ouvi no bar, onde só se tocava música americana. Deve ter sido no avião. Maurício me dá um café, e o sabor me confirma a localização geográfica. Mas eu preferia estar no hotel, assim poderia tomar um banho e me recompor mais à vontade. Fico olhando para as duas morenas, estão abotoando as calças e as sandálias. São bonitas, apesar das sobrancelhas grossas. Conversam sobre alguma coisa engraçada, que não chego a compreender. Eu falo espanhol, mas não o entendo bem, principalmente quando pronunciado assim, entre risos e onomatopéias. Noto que uma delas é mais agitada e falante. A outra é introspectiva e serena. Penso que seria bom se essa fosse a minha.
— Qué harás esta noche? — Pergunto depois de alguns rodeios.
— Encontraré a mi marido, ya lo sabes. — Ela responde quase sem me olhar, e percebo que é uma cretina. Me dá vontade de sair daquele lugar. O cara que acordou com elas está num canto lendo jornal. Talvez seja o marido da metida, e tenha dormido na sala só para garantir que não rolasse nada. No táxi penso em perguntar ao Maurício quem eram aquelas pessoas, mas ele zombaria de mim, e espalharia a história para metade do Rio de Janeiro. Procuro falar de outra coisa:
— Eu queria comprar aquele rum venezuelano que tomei na sua casa.
— Vai ser difícil encontrar. A Venezuela está meio brigada com a Colômbia.
— Ah, odeio política.
— Por falar nisso, comprei ingressos para uma luta de boxe.
— Boxe? Mas eu queria ver uma tourada.
— Não tem tourada de noite.
— Mas não está amanhecendo?
— Você está ruim mesmo, hem. Está anoitecendo. Você deve estar confundindo por causa do fuso-horário.

Vejo que isso torna ainda mais difícil entender como fui parar naquele apartamento. Aceito humildemente o boxe, e deixo de pensar no assunto. Aposto no americano só para ser do contra. Na platéia, deduzo que o negro seja o americano, e começo a torcer por ele. Chega uma hora em que ele dá uma porrada tão bem dada no queixo do branco, que este fica com os braços caídos e os olhos arregalados, como se estivesse tentando lembrar o que foi fazer ali. Quando ele finalmente cai, vibro e digo que sabia que a noite era do negão. Maurício me olha intrigado:
— Então por que você apostou no branco?

Depois me bate aquela fome e lembro que a última vez que almocei foi em outro meridiano. Maurício está cansado e diz que vai para o hotel. Mas, quando entro no táxi, fico me perguntando quando foi minha última trepada. Se foi há mais de dois dias, já posso procurar uma bela garota de programa. Explico a situação ao taxista, que parece compreender, e me leva a um bar cheio de morenas com cabelo amarelo. Mas escolho uma beleza local, com cabelos negros e pequenos olhos de índia. Ela me lembra Catalina, minha agente em Bogotá. Se meus livros venderem bem na Colômbia, pretendo comprar uma jóia cara e levar Catalina para jantar. Meus amigos dizem que sou muito antiquado com as mulheres. Eles são pobres, não fazem idéia de como essa tática funciona.

A garota compete comigo pelas arepas. Depois me explica por que devemos ir a um hotel mais afastado, distante da agitação do centro. Não estou seguro de ter entendido, mas posso ir a qualquer lugar que aceite cartão de crédito. No quarto noto que ela tem seios meio ovalados, tipo os da ex-mulher do Gustavo. Então recordo que transei há pouco tempo com essa mulher, pode ter sido há menos de dois dias. Mas percebo, aliviado, que isso não prejudicará minha performance. O corpo jovem da garota já acionou minha virilidade. Enquanto abro a camisinha, ela mantém minha ereção com os lábios e as mãos. É uma mulher compreensiva, deve ter mais que os vinte anos que aparenta. Quando começa a me cavalgar, fico pensando em Catalina, se ainda está casada, se é católica, se isso fará muita diferença. Depois trocamos de posição e reparo mais na garota. Ela geme delicadamente, tem uma doçura jovial que a profissão ainda não estragou. Fecho os olhos e me entrego ao prazer seguro das batidas. Depois saio de cima dela e me enrosco nos cobertores. Volto a pensar em Catalina, e recordo uma coisa que ela me disse quando nos conhecemos. "Detesto llegar al fin de tus libros. Me gustaria leerlos para siempre." Sei que é mentira, as mulheres odeiam meus livros. Mas eu saco um pequeno estojo aveludado e digo que é só uma lembrança, que quero que ela pense mais em mim que em meus personagens. Ela o abre avidamente, e seus olhos brilham como os pequenos diamantes incrustrados na platina. Seguro firme uma de suas mãos. "He esperado tanto para decírtelo, e ahora no me salem las palabras." Assim vou passando da imaginação ao sonho. Catalina me acaricia, suas mãos são leves e frescas como uma brisa marinha. Mas logo se tornam quentes e ásperas, e um buzinaço vindo da rua me faz abrir os olhos e dar de cara com o sol. A garota não está no quarto, pego minhas roupas e as apalpo em busca do passaporte. Felizmente, tudo em ordem. Pela janela, vejo que o hotel fica ao lado de um cemitério. Me divirto pensando que, se eu escrevesse isso, todos tentariam — e conseguiriam — enxergar alguma bobagem simbólica neste trecho.

A água do chuveiro demora um pouco a se aquecer, mas saio do banho renovado, lamentando apenas ter de vestir uma camisa que já começa a feder. Penso em ligar para o Maurício, deve haver ao menos uma tourada marcada para hoje. Encontro, amassado no bolso de trás da calça, o cartão de um hotel em Rosales. Quando lhe passam a ligação, ele me parece ligeiramente desesperado:
— Onde você está?
— Estou num hotelzinho em Las Mártires, em frente ao cemitério.
— Que diabo você está fazendo aí? Por que não veio para o hotel que reservamos?
Agora lembro vagamente de uma conversa sobre um hotel com vista para um braço dos Andes.
— Bem... encontrei uma garota...
— Tudo bem! Me dá o endereço, passo aí para te pegar.
— Você sabe de alguma tourada?
— Depois a gente fala sobre tourada. Sua palestra começa em quinze minutos.

Que diabo será isso de Palestra? Só pode ser idéia da Catalina. Essa gente formada em Letras realmente acredita em palestras. Mas talvez haja tempo para o café. Fico um pouco decepcionado quando me servem os mesmos bolinhos que comi no jantar de ontem. Peço ovos mexidos, e ouço, do saguão, um espanhol arrastado, cheio de vogais abertas. É o Maurício que já me descobriu. Está com uma cara afetada, como se realmente se importasse com um atraso de cinco minutos. No táxi, tento pensar em algo para dizer. Não quero contar pela milésima vez que meus pais queriam que eu fosse advogado, e que depois, quando ganhei o Jaburu, mudaram de idéia e me deram um apartamento na zona sul. De repente chegamos a uma sala escura e sem mobília, com um pé direito monumental. Deduzo ser a coxia de um anfiteatro. Entre ecos, reconheço a voz de Catalina. Parece estar dizendo que meu último livro vendeu cem mil exemplares na Colômbia. Será que ouvi direito?! Quando verei esse dinheiro? Um sujeito de terno claro me indica um corredor. Chego ao palco e sento à mesa que deve ser para mim, pois é a única vazia. As palmas me ensurdecem por alguns segundos, mas logo cessam, ao contrário de uma luz ofuscante que jogam na minha cara. Sinto que é hora de dizer alguma coisa, quero fazer um gracejo qualquer, mas nada me vem à cabeça. A luz decai lentamente e começo a ver os olhinhos pequenos que me fitam ansiosos; parecem realmente esperar que eu diga alguma coisa.
— Minha mãe queria que eu fosse advogado — começo, sem muita convicção.
— Quando encaro uma platéia desse tamanho, fico me perguntando por que a contrariei.

Todos riem, e rio com eles. Ainda não sei o que dizer, mas estou relaxado, talvez até feliz. De repente, como um relâmpago, lembro perfeitamente o que aconteceu quando cheguei a Bogotá. Tudo começou numa livraria, onde uma jovem me perguntou se eu era aquele escritor brasileiro que tinha dado uma entrevista ao Espectador. Sim, eu sou aquele escritor brasileiro. Nunca conseguir ser outra coisa, e agora tenho cem mil testemunhas. Olho para Catalina, ela está aflita, certamente já percebeu que não preparei nada para dizer. Começo a ter uma idéia mais definida da jóia que vou lhe dar. Cem mil exemplares! Será que dá para uma casa em Cartagena? Não, melhor levar Catalina para o Rio. Lá ela não conhece ninguém, dependerá totalmente de mim. Será apenas preciso fazê-la desistir do marido, mas agora isso me parece mais fácil que nunca.