quarta-feira, 3 de março de 2010

Como me tornei o marido de Heloísa

Eu amo Heloísa, e nisso definitivamente não sou original. Qualquer homem entre dezoito e cinqüenta anos pode amá-la sem dificuldade, pricipalmente se notar que ela não consegue levantar a voz — nem quando quer. Loira, alta, de olhos claros, sua beleza seria trivial, não fosse por um nariz exagerado e duas narinas pontiagudas que parecem vírgulas de cabeça para baixo. Aliás acho que foi esse nariz que a fez pensar, por um tempo, que poderia ser uma espécie de atriz cult. Embora formada em direito, ela acabou grudando nesse pessoal metido a artista, tão comum aqui no Rio, e que no fundo não passa de um bando de desempregados. Mas, quando eles apareceram com a idéia de um curta-metragem, ela ficou tão entusiasmada que acabei concordando em usar nossa poupança conjunta para bancar parte do filme. Dava gosto vê-la tão animada, e o roteiro, no fim das contas, não era dos piores. O protagonista descobre que sua mulher já havia trabalhado em filmes pornôs. Ele passa por alguns conflitos antes de perdoá-la, e chega a traí-la com a cunhada, numa vingança desesperada e inútil, tentando atenuar seu enorme sentimento de humilhação. Acho que gostei do filme porque ele me ajudou a compreender essa estranha adoração que eu sentia por Heloísa. Mesmo que ela me traísse, mesmo que me humilhasse marcantemente, eu me sentia impotente para deixá-la. As outras mulheres que passaram pela minha vida eram feias, ou de uma beleza banal, ou meio burras. Heloísa não era inteligente, mas tinha certo dom para fazer frases espirituosas que fascinavam a todos. Além disso, era divertida e capaz de me surpreender; e eu, que sou um homem rotineiro e pacato, preciso de alguém assim para me animar um pouco.

O curta-metragem acabou não dando muito certo, mas rendeu a Heloísa o convite para uma peça — que também teríamos de ajudar a produzir. Eu a incentivei bastante, pois naquela época cheguei mesmo a acreditar que ela queria ser atriz. Mas, assim que começou a ensaiar, ela não pôde deixar de perceber que o teatro exigia dedicação, autodomínio e alguma outra coisa misteriosa, que talvez seja o que chamam de talento. Isso a desanimou bastante, e ela acabou por providenciar, algumas semanas antes da estréia, uma sinusite, uma bronquite alérgica e não sei que outra "ite" que a salvaram de um vexame maior. Um dia cheguei em casa mais cedo e a surpreendi chorando no nosso quarto, encolhida na borda da cama, na posição fetal. Eu nunca entendi se ela chorava por ter perdido uma boa oportunidade ou por se dar conta que não tinha nascido para o palco. Mas fiquei feliz em estar lá para consolá-la. Sua carreira de atriz me causava certa aflição que eu já não estava conseguindo controlar. Quase chorei com ela, mas por dentro eu sentia alívio, e até certa alegria. Foi a primeira vez que pensei que, apesar de tanto tempo juntos, ainda sentíamos os acontecimentos de forma bem diferente.

Depois desse episódio, Heloísa foi ficando mais quieta, mais conformada com seu trabalho administrativo na Justiça Federal. Comecei a pensar que talvez fosse o momento de falar num filho. Mas esperei que a iniciativa viesse dela, porque, em todos os filmes que eu tinha visto, era a mulher que falava nessas coisas, e o homem até fingia contrariar, nem que fosse só para manter a pose. No entanto ela acabou não falando em filho, e, em vez disso, começou a escrever certos textos confusos que ela chamava de contos. Passou a frenqüentar um evento ainda mais confuso, chamado Clube da Leitura, e eu, com aquele receio incômodo de perdê-la, comecei a ir com ela. Nunca entendi direito como o evento funcionava — as regras eram bem complexas — mas os textos dela eram lidos em voz alta, e, quando tudo acabava, sempre aparecia alguém para dizer que tinha gostado deles. Mesmo sem compreender, eu ficava feliz, contagiado pela felicidade dela. Acho que passei a ser assim desde que a conheci: meu riso sempre vinha por tabela, provocado pelo riso dela, que por sua vez era provocado por coisas cada vez mais imprevisíveis. Quando ela não estava por perto, eu não sabia direito o que sentir, e falava a primeira banalidade que me viesse à cabeça. Talvez por isso eu tenha concordado tão prontamente quando falaram num livro de contos que seria rateado pelos membros do clube. Nossa poupança foi ficando cada vez menor, e o filho dos meus sonhos foi envelhecendo, aprendeu a falar, e já me chamava para jogar playstation, antes de passar pelo ventre da mãe.

O livro teve um lançamento bacana, com um bifê de comida árabe, e muita gente pedindo autógrafo. Heloísa me fez uma dedicatória bonita, dizendo que não conseguiria escrever uma linha sem meu amor e minha compreensão. Fiquei tão feliz que não liguei a mínima para a falta de retorno financeiro. Durante algumas semanas me senti muito próximo dela, cheguei a ler alguns de seus textos, e até desejei ter mais dinheiro para bancar seus sonhos. Comecei a fantasiar que, se ela se tornasse escritora, seria uma mãe mais dedicada, talvez lesse poesia para os filhos, talvez lhes ensinasse francês, que ela sabia um pouco, mas não falava na minha frente por insegurança. Imaginei uma Heloisinha delicada, introspectiva, cercada de livros e diários, falando em francês com a mère os segredinhos que desejasse esconder do pai. Nessa época ela andava escrevendo uns contos de mulheres tresloucadas que queriam abandonar o emprego e o marido, e nem sequer sabiam por quê — nem sequer tinham amantes. Claro que eu não compreendia nada daquilo, e logo comecei a sugerir, sorrateiramente, que ela escrevesse sobre filhos. Talvez fosse interessante abordar o tema de uma mulher que a princípio tem certo receio da maternidade, mas aos poucos acaba sendo conquistada pela fragilidade e delicadeza de seu bebê.

Fiquei surpreso e feliz quando vi que minha sugestão fazia efeito. Ela começou a escrever sobre um homem que adorava a vida de solteiro, a independência, a liberdade, e ainda tinha vontade de conhecer Las Vegas. Esse pobre diabo descobre que tem um filho com uma mulher do seu passado, e o moleque já passa dos oito anos quando os dois se conhecem. Então vão surgindo uma série de situações engraçadas nas quais ele vai aprendendo a aceitar e a gostar do filho. Pode não ser uma idéia original, mas eu vibrei a cada página. Não entendo de literatura, e não saberia dizer se estava bem escrito, mas eu ficava pensando que Heloísa, afinal, começava a aceitar a idéia da maternidade. Acreditei que aquele menino atrevido e inteligente, com que eu tanto sonhava, estaria agora morando também nos sonhos dela. Daí até ele mudar para o nosso apartamento seria só um pulo.

Adorei a forma como o livro terminava. Os dois tinham uma discussão, e o menino demonstrava uma astúcia fora do comum. O homem acabava por dizer: "Você é mesmo bem parecido com seu pai, hem!", tentando salvar sua autoestima. "Então você conhece meu pai?", o menino perguntava. E só nesse momento o protagonista e o leitor percebiam que a mulher ainda não tinha contado a verdade para o filho. O sujeito descobre que tem a chance de sumir, de desaparecer da vida dos dois, e o menino ia se lembrar dele apenas como o amigo da mamãe que o ensinou a jogar damas. Mas, após alguma hesitação, o personagem responde: "Sim, eu conheço seu pai. Graças a você, eu o estou conhecendo cada vez melhor", e depois disso fica implícito que ele decidiu aceitar definitivamente o papel de pai.

Poucas vezes chorei com um livro, e durante muito tempo esse choro me fez acreditar que Heloísa era mesmo uma ótima escritora. Foi com enorme prazer que a ajudei na revisão, depois imprimimos várias cópias e começamos a mandar para as editoras. Ela parecia muito feliz, e pensei que seria apenas questão de semanas até ela me dizer que parou com os anticoncepcionais. Mas essa notícia acabou não vindo. Em vez disso, ela passou a perguntar sempre: "Você olhou a correspondência? Nada ainda?" Depois ela se fechava no quarto, ou ficava horas absorta, olhando para o nada, e mexendo nos cabelos. Eu sentia sua angústia por tabela, e me perguntava o que estaria faltando. Afinal, a estória era bem pensada, comovente. O que mais as editoras queriam? Essa aflição não demorou a passar. Logo começaram a chegar as respostas.

"Concluída a avaliação do original em referência, informamos que sua publicação não foi indicada, ainda que apresente evidentes qualidades."

ou

"Apesar de apresentar qualidades literárias", etc, etc. "Os originais serão destruídos conforme as normas da editora", etc.

Todas as cartas diziam mais ou menos a mesma coisa. Heloísa as lia, depois as passava para mim, com um olhar resignado: "Não foi dessa vez, amor".

Às vezes tentava ser mais leve: "Não tem jeito, não não dá para enganar profissionais". Mas eu sentia o quanto ela estava desapontada e intimamente revoltada. Notei que ela nunca falava a respeito, e procurei também evitar comentários. Imaginei que lhe seria mais fácil esquecer se não conversássemos sobre o assunto. De vez em quando ela dizia alguma coisa como "Esse pessoal só está publicando estórias sobre prostitutas", e eu dizia: "É verdade, é uma vergonha". Um dia ela brincou: "Se eu me tornasse garota de programa e fizesse um diário, aposto que eles publicariam!" Eu respondi "Por que você não inventa um diário? Os escritores costumam ter uma imaginação bem fértil". Mas ela desconversou, e senti que alguma coisa nesse argumento não lhe agradava. Ao mesmo tempo fiquei pensando: será que ela seria capaz disso? Seria capaz de fazer programa só para escrever um livro? Logo concluí que não. Minha mulher podia ser excêntrica, mas quebrar as regras não era seu forte.

Algum tempo depois ela já não falava sobre livros, e fiquei pensando que de repente a fase de escritora tinha sido como a de atriz: uma dessas aventuras de juventude que vivemos apenas para ter o que contar aos netos. A idéia de um filho voltou a me seduzir, principalmente quando vi que meus amigos já estavam com seus pequenos Tiagos e Daniéis. Passei a convidá-los incessantemente à nossa casa, e adorava quando eles perguntavam à Heloísa: "E vocês, quando vão encomendar um?" Mas eu notei que ela andava meio desanimada, calada, sisuda. Fiquei com medo de ela inventar uma nova moda; talvez agora quisesse aprendar a cavalgar, ou pilotar avião. Felizmente, nada disso se passou. Acho que Heloísa estava apenas envelhecendo.

Uma noite eu voltava de uma sinuca  com amigos, e me surpreendi com uma cena realmente trágica. Heloísa tinha tirado seus vestidos do armário, e os estava picotando, reduzindo-os a tiras e retalhos, formando uma massa caótica de tecido pelo quarto. Fiquei pasmo. Eram vestidos caros, que imitavam cortes dos anos cinqüenta, com golas e botões enormes. Ela pagava metade do seu salário num vestido daqueles, por que agora estava se empenhando em destruí-los? Num primeiro momento suspeitei que estivesse pensando numa carreira de estilista. Mas notei que ela ria nervosamente, jovaga as tiras para o alto, chegou a atirar algumas pela janela, "Está gostando, amor? Está vendo como eu mudei?" Depois teve um brusco ataque de choro. Soluçava, sacudindo os ombros e a cabeça, chorando com o corpo inteiro. Percebi imediatamente que se tratava de um ataque nervoso. Abracei-a com carinho, procurei tranqüilizá-la. Encarnei rapidamente o papel de marido compreensivo que tanto me agradava.

— Não fique assim, linda. Eu te amo. Apenas me diga o que está acontecendo. Me deixe cuidar de você.
— São esses vestidos! — Ela gritou. — Nunca mais vou usar esses malditos vestidos!

Obviamente não entendi, e deduzi que era caso para um psiquiatra, ou pelo menos um analista. Fiquei ali, abraçado nela, pensando em como eu era bom, amável, paciente. Talvez ela estivesse descobrindo que também não queria ser escritora. Queria apenas alguma profissão que justificasse o uso daqueles vestidos exóticos. Ou talvez começasse a perceber que era uma pessoa medíocre, sem nenhum talento fora do normal. Mesmo que fosse escritora ou atriz, teria uma carreira discreta, sem nada que destacasse seu nome. Seu nariz excêntrico não bastava para lhe dar uma personalidade autêntica.

Em contrapartida, eu descobria em mim algo realmente descomunal. Era essa capacidade para adorar Heloísa, para amá-la mesmo no fracasso, para servi-la sem compreendê-la. O que antes me parecia uma fraqueza agora eu via claramente como um talento raro e especial. Qualquer homem no meu lugar teria pensado imediatamente em divórcio. Mas eu estava disposto a cuidar de Heloísa, a pagar um tratamento, a perder os amigos, e encarar a reprovação da minha família se fosse preciso. Eu aceitava — e acho que até desejava — que ela fosse uma espécie de destino elevado e inevitável ao qual eu me entregaria com a bravura dos guerreiros e a convicção dos mártires.

Depois de algumas semanas ela começou com a análise. Os remédios eram apenas ansiolíticos fracos, e isso me surpreendeu menos que o fato de ela passar a usar terninhos de poliéster. Ainda mais estranha foi a notícia de que ia fazer uma plástica no nariz. Eu nunca gostei realmente daquele nariz, mas gostava de ser um homem capaz de aceitar uma mulher com nariz feio. Conversei com ela, falei que não precisava renunciar à sua originalidade para se encaixar em nenhum padrão de beleza. Eu a aceitava do jeito que era, eu a amava. Não previ que eu me decepcionaria tanto com sua resposta.
— Renunciar à minha originalidade? Que originalidade?

De fato ela parou com suas pequenas extravagâncias. Não falou mais em livros, não comprou vestidos estranhos. Quando chegava do trabalho, ligava a televisão, conversava sobre previdência privada, planos de saúde, drenagem linfática, férias em Cabo Frio. Alguma coisa me incomodava naquilo tudo, mas eu não sabia o que era. Às vezes ficava contente, planejava com ela um cruzeiro até Buenos Aires, uma viagem à Itália, ou alguma outra coisa que nossos amigos já tinham feito. Mas depois ia para o quarto, ficava olhando para o teto, me perguntando o que estava errado afinal. Por que eu me sentia tão vazio?

Um dia arrisquei abordar o assunto. Estávamos num barzinho, a bebida me deu coragem para falar sobre algo real.

— O que está acontecendo, amor? Você não sente que está faltando alguma coisa?
— Eu sei o que você quer dizer — ela falou num tom resignado, sem nenhuma emoção. — Se você quiser, eu paro com os anticoncepcionais.

Fiquei muito assutado, não com essa resposta, mas com a súbita percepção de aquilo parecia não me importar.
— Claro, amor. Por que não? Minha mãe sempre me cobra um neto.
— A minha também...

E em poucos meses tínhamos a notícia para nossas mães. Elas pareceram realmente contentes, ao contrário de Heloísa, que continuava meio amuada, e agora estava até mais pálida — mas eu não arriscava comentar, porque talvez fosse algum efeito da plástica. Quando comecei a falar sobre nomes, ela disse que ainda era muito cedo. Eu sabia que era cedo, mas queria preencher aquele silêncio incômodo que tinha se instalado entre nós. Decidi não contar de imediato para meus amigos. A coisa estava ainda muito recente, e eu queria esperar pelo menos um ultrassom. Hoje me pergunto se essa decisão não foi fruto de algum pressentimento. Quando a levei ao hospital, naquela noite confusa, de alguma forma eu já sabia o que estava acontecendo. Quanto mais eu lhe dizia que era só um sangramento, uma coisa normal em qualquer gravidez, mais eu me preparava para a notícia fatídica. Estranhei que ela não parecesse triste, e isso até me incomodou. "Meu Deus, será que é isso que ela quer?", me perguntei, assutado. Mas evitei pensar no assunto. Sempre preferi enxergá-la com outros olhos.

Estávamos no quarto quando o médico chegou com a notícia. Vi que ela ficou com os olhos marejados, e ansiei que ficássemos a sós. O médico disse ainda algumas palavras de praxe, "Você é jovem, saudável, poderá tentar muitas outras vezes". Ela levou as mãos ao rosto, e eu assumi um ar grave, logrando esconder que não sabia como agir. Mas quando o homem saiu do quarto, tudo foi ficando mais claro e confortável. Abracei Heloísa, falei de como ela era importante para mim, mais importante que um filho, mais importante que qualquer outra coisa que eu pudesse encontrar na vida. E logo fui me sentindo mais à vontade, sabendo como agir e o que dizer. As palavras vinham quase espontaneamente à minha cabeça, e depois que as pronunciava, eu ficava satisfeito com a sonoridade, a elegância. Eu aprovava minha índole generosa, minha paixão constante e elevada. Acho que foi nesse dia que percebi com mais clareza que não era propriamente Heloísa que eu amava, era esse homem generoso e compreensivo que eu havia me tornado. Um marido compassivo, protetor, fiel. Quando chegamos em casa, levei-a para a cama no colo, e fiquei pensando: meu Deus, que homem eu construí! Que homem eu sou! Nessa noite percebi que a situação que sempre havia durado entre nós agora tinha se invertido. Eu não a amava mais em primeiro lugar. Amava primeiro a mim mesmo, depois a Heloísa, pelo homem que ela me permitia ser. A partir desse dia me senti preenchido por uma paz quase sobrenatural. Nunca mais temi que ela me traísse, nem que me deixasse. Essas coisas pareciam simplemente não me atingir. Também não a atormentei com a idéia de filhos. O posto de marido passou a me satisfazer completamente.

Poucas semanas depois, ela voltou à idéia dos livros. Mas agora queria escrever uma estória infantil. Obviamente não contrariei, dei todo o apoio necessário. Cheguei a dizer que bancarei a edição do livro, se as editoras não se interessarem. Quem sabe ela não faça sucesso com um público menos exigente? Quanto a mim, estou feliz com minha descoberta. Agora vejo que meu amor é algo muito maior que eu tinha pensado — é como uma matriz que justifica e define minha vida. A decisão de ficar com ela de certa forma me deixa imune às adversidades, imune até à própria Heloísa. Não temo mais o que ela possa fazer. Tenho a satisfação de ser algo que ela ainda não conseguiu alcançar, algo que eu mesmo construí. Um dia talvez ela se dê conta disso, e quem sabe resolva escrever um livro sobre mim. Por hora me contento em ser meu próprio personagem.