sábado, 31 de outubro de 2009

A notícia do século

Meu último artigo havia suscitado uma péssima repercussão. Acho que os leitores não estavam preparados para o impacto do avanço biotecnológico sobre a vida moral. Muitos enviaram críticas ferozes à revista, dizendo que eu tinha deturbado o conceito de "direito natural" e, principalmente, o caráter sagrado da maternidade. Mas nada daquilo me surpreendia. As pessoas são assim mesmo: aponte a mínima possibilidade de mudança nos seus hábitos, e elas o acusam de ser uma espécie de demônio. Não toleram mudanças, não suportam o fato de que a vida como é agora é só uma das muitas vidas possíveis. Se tomarmos outros caminhos, o mundo que surge diante de nós pode ser tão belo e desejável quanto o anterior, o sofrimento está apenas na nossa resistência.


Mas eu havia estudado o assunto por mais de 10 anos, e minha opinião não era mero palpite. O custo das técnicas Cold Milltered já havia baixado bastante, facilitando a abertura de clínicas no terceiro mundo. Além disso, nos países pobres, era mais fácil encontrar mulheres dispostas a alugarem seus ventres para a geração de filhos alheios. Quando a prática se tornasse mais comum, haveria um efeito reverso, e ela se popularizaria também nos países ricos. O ato que atende as expectativas dos interessados sempre se alastra com rapidez e facilidade. Logo a prática da barriga de aluguel seria comum no mundo todo. As jovens alugariam seus ventres para pagarem a faculdade. As mulheres mais ricas gerariam seus filhos pelos ventres das mais pobres, e não apenas por motivos de saúde, mas também por razões estéticas. Quando o processo se tornasse mais fácil e mais comum, muitas mães optariam pela barriga de aluguel apenas para poupar as transformações do corpo e a dor do parto. Quem realmente estudasse o assunto veria que era apenas uma questão de tempo. Só retrógrados e ignorantes se opunham às minhas opiniões. Eu não estava dando a mínima para a enxurrada de críticas, pois sabia que ela não vinha de gente balizada.

Quando o doutor Chertrol me telefonou, encarei a situação com naturalidade. Eu era o jornalista que mais entendia desse assunto. Era normal que ele me chamasse para registrar e divulgar as mais novas técnicas da área. Não fiquei envaidecido, não me senti privilegiado. Eu havia dedicado grande parte da vida a compreender e divulgar as técnicas de fertilização artificial. Ele provavelmente queria anunciar uma técnica nova, algo que possibilitasse uma geração de aluguel mais barata e eficiente, e me escolhia para portador da notícia. Era um corolário dos meus anos de esforço. Compareci a sua clínica tranqüilo e preparado para o trabalho. Não tinha idéia de que sairia de lá tão chocado, tão estupefato, e ao mesmo tempo feliz.

Doutor Chertrol vinha se destacando na área de reprodução humana. Mulheres do mundo todo vinham contratá-lo para administrar suas complexas gestações transuterinas. É claro que elas vinham também pela facilidade de se encontrar uma barriga de aluguel no Brasil, mas tenho certeza que a competência e o renome do médico também pesavam na sua decisão. Ele tinha fama de ser um homem frio, um pouco rude, com um jeitão meio caipira. Diziam que havia estudado primeiro veterinária, porque não gostava muito de tratar gente — ouvir lamentações, lidar com neuroses — mas, quando vira o que poderia fazer na área de reprodução humana, regressara à faculdade e conseguira um diploma de medicina. E, de fato, o setor só melhorou com sua decisão. Desde que ele assumira a clínica Nova Gênesis, as notícias de aperfeiçoamento e barateamento operacional eram constantes. Eu estava ansioso por conversar um pouco com ele, conhecer sua personalidade, tentar entender suas motivações. Enquanto estava no táxi, cheguei a pensar numa possível biografia. Cairia muito bem na minha carreira de jornalista científico. Mas era uma idéia ainda muito fresca, e tocar nesse assunto talvez seria precipitar-me. De qualquer forma, eu ficaria atento às oportunidades. Estava tão entretido com esses pensamentos que não me aborreci por esperar quase duas horas antes que ele me recebesse com seu entusiasmo e bom humor.

— Não há desculpa para meu atraso. Não vou nem pedir, sei que não há...
— Ora, não se preocupe, doutor. Sei como é seu trabalho. Não há como prever quanto tempo certas coisas vão durar...
— Sem dúvida! Você não faz idéia de como tem razão. Podemos prever muitas coisas, mas não quanto tempo vão durar, às vezes não sabemos nem quando poderão começar.

Senti que ele não estava falando apenas sobre horários e atrasos.
— Prever nem sempre é fácil...
— Sim, sim! Prever não é fácil. E por falar em previsão, li seu artigo. Quer dizer, nós lemos! Todos aqui na clínica o leram, e comentamos muito.

Eu estava lisonjeado. A essência do meu trabalho é popularizar a ciência, mas confesso que nada me agrada mais que merecer o reconhecimento dos especialistas.

— Fico muito contente com isso, doutor. O que o senhor achou das previsões? Será que tenho chance de acertar? — Eu não esperava entrar nesse assunto tão cedo, mas o bom humor e o elogio do doutor Chertrol me deixaram confiante.

— Falaremos sobre isso, meu caro. Falaremos ainda sobre essas coisas. Por hora digo apenas que você é brilhante. Vejo como você acompanha com atenção o assunto da reprodução humana. Sua intuição lhe faz um enorme bem, pois de fato acho que esse tema vai render as mais importantes inovações científicas do século XXI.

Óbvio que fiquei bastante lisonjeado. Queria muito ter gravado o que ele havia dito, e me arrependi de não ter ligado um gravador escondido. Meus escrúpulos muitas vezes me fazem perder um pouco da glória que mereço.

— De fato, sempre achei que esse assunto tem potencial para uma verdadeira revolução na forma como concebemos a sociedade e a família. — Preferi não dizer que eu me interessara pelo assunto simplesmente porque tenho uma irmã de proveta.

— Sim, você está certo. Não gosto dessa palavra, “revolução”, mas você tem razão. As novas técnicas de reprodução poderão mudar a forma como pensamos o homem e a família. Falaremos mais sobre isso, oh, sim, falaremos...

Ele estava um tanto enigmático. Confesso que eu já estava me cansando daquela história de "falaremos mais..." mas minha ansiedade estava prestes a terminar. Ele me encaminhou para um enorme salão cheio de aparelhos e pessoas trabalhando. Trajavam aqueles jalequinhos brancos, provavelmente eram veterinários ou enfermeiros. No centro havia uma espécie de jardim interno, cercado por barras de ferro, iluminado por uma grande cúpula de vidro. Quando me aproximei, tive a primeira surpresa de nossa entrevista. Vi uma cabra, deitada num gramado artificial, ligada a uma série de aparelhos por fiozinhos de capa transparente. Tive um momento de grande decepção, pois percebi que o motivo da visita não era a reprodução humana, como eu havia imaginado. Doutor Chertrol provavelmente voltara à veterinária e queria divulgar alguma nova descoberta, talvez ligada a clones. O assunto não me interessava muito, mas resolvi não reclamar. Se a coisa fosse realmente nova, pelo menos eu teria um furo, e isso faria bem à minha imagem recém abalada na revista.

Alguns enfermeiros ou veterinários, passavam um emplastro transparente na barriga da cabra. Ela estava estranhamente desanimada, provavelmente dopada. Pelo tamanho de suas tetas e barriga, supus que estava prenha.

O doutor Chertrol não se deu ao trabalho de me explicar inteiramente a situação.

— Vamos fazer uma ultrassonografia. Logo teremos uma imagem.

— Alguma técnica de clonagem? — Perguntei, um pouco ansioso.

— Logo teremos a imagem! — Ele respondeu, sem tirar os olhos do vídeo.

Senti que a imagem era algo definitivo, mais importante que uma explicação. Pus meus olhos no pequeno monitor preto e fiquei atento aos vultos que se formavam. Não consegui enxergar nada demais. Minha mente esperava encontrar alguns cabritinhos nebulosos, algo como as formas que vemos nas nuvens quando somos crianças. Mas eu não via nada parecido com isso, as manchas brilhantes do ultrassom não estavam fazendo muito sentido para mim.

— Você vê o coração? Está vendo o coraçãozinho do bebê? — Doutor Chertrol me apontou entusiasmado uma pequena bolinha pulsante. De fato reconheci algo parecido com um coração, pelo menos dava para ver que batia.

— Aqui está a cabeça... Sim, a pequena cabecinha do bebê, não é lindo?!?

— Não consegui ver a cabeça, talvez por que não fazia idéia de como devia ser a cabeça de um feto de cabra; se tinha chifres, se já era alongada, com um princípio de focinho, etc. Mas fiquei impressionado com a forma carinhosa com que ele se referia ao pequeno animal. Não dizia cabrito ou feto, mas bebê. Pensei em anotar isso para a reportagem, o Doutor Chertrol era de fato um homem emocionalmente envolvido com seu trabalho.

— Desculpe a pergunta, doutor, mas os fetos de cabra já têm chifres? Não estou reconhecendo a cabeça.

Uma risada alta e contagiante encheu o salão. Todos começaram a rir com ele.

— Chifres?! Você está procurando chifres, ha, ha, ha!

Fiquei imaginando o quanto minha pergunta era ridícula. Assim como nascemos sem dentes, as cabras deviam nascer sem chifres. Era óbvio, como pude ser tão idiota!

— Perdoe minha ignorância, doutor Chertrol. Minha especialidade é reprodução humana, não tenho acompanhado nada sobre veterinária.

— O que é isso, amigo! Não se desculpe. Eu é que devo me desculpar. Acho que confiei demais naquela história de que uma imagem vale mais que mil palavras.

— De fato, doutor, olhar para esse ultrassom é como olhar para uma nuvem. Você não enxerga nada, se não souber o que está procurando.

— Oh, meu rapaz, quanta sabedoria! Você não sabe o que está dizendo, suas palavras são mais precisas que imagina... Além disso, tem toda razão, não adianta ficar aqui olhando para esse ultrassom. Vamos voltar para a minha sala. Pessoal, mantenham a diploptamina. Vou voltar logo.

Fiquei envergonhado. Certamente ele esperava que eu tivesse entendido algo só de olhar para o ultrassom. Talvez algo filosófico, sublime, que não tivesse nada a ver com uma simples cabra prenha. Fiquei me questionando enquanto o acompanhava cabisbaixo, evitando os olhares de decepção dos veterinários, que certamente também esperavam algo de mim.

Assim que entramos ele me serviu uma pequena dose de cachaça. Fiquei encantado com sua autenticidade. Um médico medíocre certamente teria uísque importado em sua sala. Agradeci e bebi com prazer o primeiro gole.

— Sabe, Lucas, eu sempre achei um pouco difícil lidar com gente. As pessoas são emotivas demais, não conseguem agir racionalmente...

Eu não tinha idéia de onde ele queria chegar.

— Veja esse caso das mães de aluguel, por exemplo. As mulheres aceitam as condições, assinam um contrato, depois voltam atrás começam a nos encher de processos.

— Muitas não fazem isso por uma emoção verdadeira. São mal intencionadas, querem explorar o casal que as contrata.

— Exato, meu rapaz! Você é a pessoa certa para conversar, você entende minhas dificuldades. Não é fácil trabalhar neste ramo, ainda mais com o atraso da legislação, que insiste em não legalizar a coisa. Os contratos ficam à mercê da confiança mútua, e, você sabe, confiança é algo raro hoje em dia...

— Sei, sei, claro que sei. — Eu conhecia bem o assunto, sabia que algumas mães de aluguel tentavam extorquir o casal contratante ou a clínica, ameaçando processos e ações judiciais diversas para ficar com o bebê.

— Pois é isto, meu caro. Não é fácil lidar com gente. — Enquanto falava, ele ia bebericando sua cachaça. — Então fiquei pensando se não seria possível criar uma espécie de gestação artificial. Um feto crescendo e se desenvolvendo fora da mãe, mas que não fosse numa outra mulher, que não dependesse de outro ser humano, entende? Uma gestação que dependesse exclusivamente de nós, profissionais. Pessoas que não iriam interferir no processo, pessoas que não iam mudar de idéia no meio do caminho...

— Um dia aconteceu uma coincidência, um evento que me ajudou a ter essa idéia. Fui passar as férias na fazenda de um amigo, em Mato Grosso do Sul. Ele tinha uma criação de caprinos, e uma cabra resolveu entrar em trabalho de parto no meio da noite. O veterinário mais próximo estava a uns duzentos quilômetros de distância, e meu amigo me pediu para supervisionar o parto. Ah, foi uma experiência ótima! Não só relembrei minha juventude, minha perambulação de fazenda em fazenda, o cheiro de mato, de esterco, os rugidos dos bichos... mas revivi mais uma vez a magia da vida. Não precisamos fazer muito para que a vida se reproduza, basta lhe dar boas condições e ela faz o resto. Isso não é maravilhoso, rapaz? A vida faz mais vida, precisamos apenas dar uma mãozinha!... — Eu ainda não sabia onde ele queria chegar, mas seu entusiasmo era algo bonito de se ver.

— Ah, meu amigo, essa é a beleza da minha profissão: ver a vida se reproduzir... — o álcool fazia seu efeito. Ele estava sorridente: — Mas, voltando às cabras, voltando àquela noite imprevista, na fazenda do meu amigo, eu fiquei encantado ao ver aqueles bichinhos escapando do ventre da mãe, escapando para o mundo, para a vida! Depois, enquanto ajudava a limpar a pobre fêmea, que estava exausta, reparei numa coisa interessante. O feto humano é relativamente pequeno. Ele caberia com facilidade em outro animal. Numa vaca, Numa porca, talvez até numa cabra... Então, meu amigo... então... acho que você está me acompanhando... Uma cabra não pode processar uma clínica, pode? Você percebe, percebe a grandeza da idéia que estava me ocorrendo naquele momento? O resto, meu amigo, são detalhes técnicos... Proteínas, hormônios, anti-soros... enfim, essas coisinhas sobre as quais debrucei minha juventude.

Eu estava atônito. Sabia exatamente o que ele queria dizer, mas não acreditava. É difícil explicar tudo que passou pela minha cabeça naquele momento. Fiquei zonzo, cheguei a pensar que eu estava passando mal. Doutor Chertrol não pôde deixar de notar:

— Você está bem, meu rapaz?

Mas logo me recuperei: — Estou bem, doutor. Vamos voltar ao salão. Acho que estou preparado para a imagem que vale mais que mil palavras.

Enquanto eu caminhava, ainda estava dominado pela dúvida. De alguma forma eu sabia que aquilo estava acontecendo, um profissional como o doutor Chertrol não iria me falar tudo aquilo em vão. Mas ao mesmo tempo eu parecia estar vivendo um sonho. Algo naquela história era fantástico demais para eu aceitar como realidade. Mesmo assim parei diante do vídeo e esperei. Agora eu sabia o que deveria enxergar, e a imagem logo faria sentido em minha cabeça. De fato, os pontinhos brilhantes foram formando um contorno nítido. Vi os bracinhos retorcidos para dentro, o dorso, a cabeça. Julguei ver até uma pequena orelha. A cabra estava deitada no gramado artificial, indiferente a toda emoção que me perpassava. Ainda em certo estado de choque, olhei para o doutor Chertrol. Ele sorria, parecia ter previsto todo o espanto que me ocorreria com aquela visão. Eu também sorri, na verdade comecei a gargalhar, quase sem controle. De repente percebi que tudo que eu havia previsto estava errado. A barriga de aluguel não se popularizaria, não se tornaria uma prática comum, não geraria renda para estudantes e mulheres mais pobres. Eu era um péssimo profeta. E no entanto estava completamente feliz, pois eu era o portador da notícia científica mais importante do século. Não sabia como agradecer ao doutor Chertrol, e de fato não havia como agradecê-lo. Há homens que simplesmente nasceram para alargar o horizonte do possível. É graças a eles que chegamos até aqui. É graças a eles que cada geração pode fazer muito mais que a anterior. Eu era apenas um jornalista. Tudo que eu podia fazer era contar. Minha tarefa era simplesmente colocar em palavras aquela imagem valiosa que eu havia testemunhado, e que valia infinitamente mais do que elas. Ali mesmo, ainda atordoado pela surpresa, pensei num título para a reportagem: “Barriga de aluguel está com os dias contados”. O resto são apenas detalhes da profissão.


domingo, 4 de outubro de 2009

A mesma tatuagem


Danilo evitava pegá-la de quatro, porque a maldita tatuagem de cruz lhe arrefecia o desejo. Quem tatuaria um crucifixo daquele tamanho no meio das costas? Que ele soubesse, Amanda não tinha religião, não ia à missa, não devia saber sequer um dia de santo, mas tinha estampado a própria pele com aquele enorme crucifixo gótico. Se ela não fosse bonita, se não tivesse seios grandes e firmes, Danilo talvez tivesse terminado ao descobrir a tatuagem. Mas na época ele também descobria que não podia se dar ao luxo de muitas escolhas. Tinha uns trinta anos quando conhecera Amanda. Magro, pálido, ligeiramente calvo no cocuruto, suas opções com as mulheres começavam a escassear. Amanda, apesar de bonita, era uma mulher um tanto banal, sem originalidade, sem muita cultura, educada pela televisão e pelas canções populares. Os homens agüentavam seus papos chatos — reclamações da mãe e do emprego — até conseguirem o segundo orgasmo; em geral, depois sumiam. Os dois tinham fracassado em conseguir parceiros melhores, e esse fracasso foi a força que os uniu e que eles chamaram de amor.
Uma aliança mais definitiva surgiu quando descobriram o preço de um apartamento. Nenhum deles podia pagá-lo sozinho, dividir era uma necessidade. Mas como rachar as prestações sem algum documento que garantisse a posse mútua do imóvel? Foi assim que compreenderam o que era uma certidão de casamento, chamaram testemunhas e assinaram os papéis. Depois puderam dormir tranqüilos. Tinham encontrado alguém para dividir as contas, e aliviar o desejo que os oprimia nas noites de lua cheia. Continuavam meio solitários, mas escreviam excelentes cartões de amor.
Na cama Danilo preferia o papai-e-mamãe, para não ter que encarar o frustrante crucifixo gótico. Mas tinha a delicadeza de nunca conversar a respeito. Sabia que uma tatuagem é algo permanente em uma pessoa, e criticar uma parte integrante é criticar o todo. Os sentimentos dos dois provavelmente não sairiam ilesos se ele abordasse o assunto com sinceridade. Quando Amanda queria ficar de quatro, ele resolvia o problema apagando a luz.
Só não era tão fácil resolver o tédio dos domingos, quando ela ia para a casa da mãe, ou das madrugadas de insônia, quando ele já não podia ligar a televisão, porque a mulher estava dormindo. Para não pensar em bobagens, para não recordar Cláudia e Heloísa, que eram mais bonitas e inteligentes que Amanda — por isso tinham encontrado homens mais bonitos e ricos que ele — Danilo se permitia algumas horas de internet. Os videozinhos pornôs eram apenas parte do repertório que o entretinha nesses momentos, junto com as piadas sobre bichas, as notícias sobre esportes e atores famosos. De madrugada ele evitava os vídeos de cacetadas, para não acordar Amanda com as risadas agudas e inevitáveis. No auge do tédio, no seio da vidinha pacata de recém casado, onde só faltava um cachorro de raça, Danilo não podia imaginar que o destino lhe atiraria na cara um fato inédito; muito menos que o fato fosse sobre o passado da mulher sossegada e bem comportada que ele agora chamava de esposa.
Mas aconteceu que uma madrugada ele se divertia com um videozinho proibido para menores — os fones de ouvido resguardavam o sono da mulher — quando a câmera se afastou do ato maquinal, e focou nas costas da atriz. Danilo contraiu as sobrancelhas ao ver um crucifixo gótico na tela. Depois sentiu uma estranha pressão no peito, e constatou um tremor incômodo nas mãos. Sua respiração mudou de ritmo enquanto ele se perguntava quem tatuaria uma cruz daquele tamanho no meio das costas, uma pergunta menos urgente que a necessidade de salvar aquele vídeo, de o rever trezentas vezes, pelo menos naquela noite.
Já amanhecia quando ele passou a ter certeza que a atriz era absolutamente igual a uma Amanda cinco anos mais nova, exceto por uma ridícula peruca cor de rosa e pelo rosto que só aparecia de viés, quase de costas, não dando margem para um reconhecimento seguro. A perplexidade contudo não impediu que ele despistasse muito bem ao notar a presença da mulher, que, por sua vez, perguntaria sobre a noite ao computador, já suspeitando de uma amante virtual. Danilo explicou pacientemente sobre a necessidade de digitar certos contratos em casa e os levar prontos pela manhã, para reuniões com clientes de São Paulo que ainda iam pegar o avião. Amanda não se deu ao trabalho de duvidar e, enquanto passava o café e carregava a torradeira, nem reparou que o marido também tinha ido à cozinha. Mas ele reparava atentamente nas suas curvas generosas e na tatuagem por trás da camisola que a transparência do tecido fazia parecer uma grande marca d'água. Estranhou que uma ereção convicta lhe brotasse àquela hora da manhã, tanto mais porque tinha passado a noite em claro, e Amanda estranhou o beijo de língua e as carícias ousadas que recebia enquanto ouvia a torradeira apitar. Nenhum dos dois compreendeu aquela urgente necessidade de fazer amor, mas Danilo talvez entendesse por que mirava com fascínio a tatuagem gótica, enquanto possuía sua mulher por trás, reclinada sobre a mesa, quase na mesma posição do vídeo. Depois do agito, uma satisfação pacífica impediu que ela fizesse qualquer pergunta, e um misto de orgulho e cansaço ocupou Danilo o bastante para que ele não se preocupasse em criar uma desculpa. Despediram-se falando em amor, mas dessa vez o que sentiam estava mesmo bem perto disso. Porém, durante o dia, Amanda não conseguiu abandonar a idéia de que o súbito apetite do marido tivesse algo a ver com o computador, e a suspeita de uma amante virtual voltou a fustigar seus pensamentos.
Nos dias seguintes as suspeitas aumentariam, porque Danilo não apenas passou a procurá-la mais vezes, mas também inovou nas posições, nos lugares da casa, e no repertório de frases que usava nos momentos íntimos. Lisonjeada com esse entusiasmo, ela logrou controlar a curiosidade, e não contaminou os momentos de prazer com perguntas desconfiadas e talvez fatais. O sexo floresceu entre os dois, ainda mais vívido e saboroso que nos primeiros dias, e o amor pareceu acompanhá-lo, nas carícias matinais, nas frases quase românticas e sobretudo numa nova cumplicidade que germinava lentamente entre eles, mais profunda e permanente que o mero acordo de dividir contas e problemas domésticos.
Mas Amanda era mulher e a curiosidade dos gatos borbulhava em sua cabeça como gordura ao fogo. As pequenas investigações não tardaram a começar, primeiro no computador, em busca de fotos, depois na pasta executiva, no celular, no lixo, e em tudo que estivesse a seu alcance enquanto o marido dormia ou tomava banho ou estava longe o bastante para não ver a batida. Cada fracasso era um pequeno alívio, mas também um motivo para recomeço. Depois de alguns dias de buscas frustradas, a jovem esposa se assustou ao perceber que seu maior medo não era descobrir uma amante, mas ter que admitir que ela fizera bem ao casamento. Essa conclusão fez que as buscas parassem por alguns dias, mas depois voltaram com redobrada força, com tentativas de descobrir a senha do email, com planos para surpreender o marido na hora do almoço, com um gravador ligado em baixo da cama para averiguar que nomes o homem resmungava durante o sono. A mulher gastou tanta energia na investigação, que estranhamente passou a desejar que a outra realmente existisse para justificar ao menos uma aparência de vitória. Se uma amante pode ser motivo de vergonha para a esposa, sua descoberta por meios tão astutos e engenhosos pode dar ensejo a um orgulho triunfante, patente, memorável. Toda essa agitação fazia também aumentar seu desejo sexual, seu prazer em realizar os pedidos do marido, seu carinho ao se despedir e ao recebê-lo à noite, com frases que pela primeira vez pareciam não vir de cartões de papelaria, mas de alguma parte viva e eficiente do seu cérebro que ela mesma não suspeitara existir. Cada um vivia — por razões que o parceiro nem sequer imaginava — um novo casamento, mais romântico, candente, quase sublime.
Amanda já estava desistindo de encontrar a suposta rival quando resolveu expor o assunto a uma amiga. Queria ao mesmo tempo se gabar das recentes aventuras e encontrar um possível motivo que as explicasse. A amiga, que sempre fora, na opinião de Amanda, meio irreverente, excêntrica, original (às vezes até vulgar), veio com uma sugestão ousada que nunca teria ocorrido a uma mulher recatada e prudente.
Por que você não pergunta para ele?
Considerando-se superior em assuntos diplomáticos, Amanda sentia até preguiça em se explicar.
Se ele tiver uma amante, claro que não vai admitir. E o que será pior: sabendo de minha desconfiança, terá mais motivos para se precaver. 
Surpreendida por tamanha astúcia, a amiga apenas concordou: — Então continue as buscas. Uma hora alguma coisa vai aparecer.
Mas a idéia tinha ganhado vida, e Amanda já não podia se livrar dela com facilidade. Quando se via a sós com o marido, a pergunta coçava sua garganta, e ela, que não era boa em conter impulsos, embora não os tivesse muito fortes, acabou por usar uma tarde íntima de domingo para introduzir o assunto. De forma discreta e dissimulada, tentou fazer o marido falar sem formular uma pergunta específica. Abordou o recente aumento na libido dele. A causa seria alguma mudança na alimentação? Alguma vitamina recomendada por amigos?
Você não era assim quando a gente namorava...
Como assim, amor? — Danilo se divertia em desconver-sar. Mas no fundo reconhecia que, de alguma maneira, havia aguardado ansiosamente aquela pergunta. Não haveria sentido em ser um homem moderno, em aceitar piedosamente o passado da esposa, se ela não soubesse do feito, não o admirasse, não o louvasse caudalosamente, e o considerasse motivo das melhores recompensas. Com certa hesitação, buscando, como podia, demonstrar cumplicidade e condescendência, Danilo revelou:
Tudo bem, amor. Eu vi o vídeo. Sei de tudo.
Amanda ficou estupefata. — Que vídeo, amor! Do que você está falando?! 
— Quero que você saiba que não fiquei magoado. Foi uma aventura de juventude, eu compreendo perfeitamente.
Compreende o quê?! 
— Sei que você vai achar estranho, mas acho até que gostei. Não me interprete mal, amor, mas sempre achei você muito quietinha... não sei, muito convencional, sabe? Agora sei que eu estava enganado. Vi o vídeo! Ah, você aprontou na juventude, hem, amor!
Continuo sem entender.
— Não precisa agir assim, querida. Já disse que acho até legal. Foi coisa de juventude, já passou, não é? Se já passou, não me importo. Acho normal que você tenha aprontado das suas. Você acha que não aprontei também? Você acha que sempre fui esse homem certinho, que cumpre todos os horários e nunca bebe mais que uma caipivodca? Não me olhe assim, eu descobri o vídeo, mas não estou aborrecido, juro. Não precisava esconder, você podia ter me contado.
Amanda estava muito assustada, mas não tardou a pensar numa saída.
Onde está esse vídeo? Me mostra, amor, por favor! Preciso ver esse troço para entender o que você está falando.
Danilo não se opôs, e a levou ao computador. Amanda franzia as sobrancelhas, alternava os olhos entre a tela e o olhar de Danilo, até que a enorme tatuagem apareceu, e ela — Ah! — deduziu tudo que se passava na cabeça dele.
É por causa dessa tatuagem?!
Danilo ficou um pouco confuso.
Já disse, amor. Pode me contar tudo. Eu compreendo e não estou bravo. Foi uma aventura de juventude, não foi? O que é que tem demais? Você era levadinha, estou até contente em saber disso.
Eu não era levadinha! Como você pode pensar isso de mim, amor!
Linda, não vá fazer esse papel comigo. O formato da panturrilha, das ancas, essa estriazinha aqui em cima da cintura, ó! Está tudo aí. Pode admitir que é você, já falei que gostei da descoberta.
Ah! O quê? Não acredito! Não posso acreditar que isso esteja acontecendo! Você está achando que sou essa mulher!? Está achando que sou essa vagabunda por causa de uma tatuagem e uma estria na cintura? Meu Deus, quantas mulheres no mundo devem ter a mesma tatuagem e a mesma estria! Por que isso está acontecendo logo comigo, meu próprio marido me confundindo com uma piranha!
Danilo olhou novamente para a tela. Ficou em silêncio. O vídeo acabou, e ele o recomeçou, sem saber o que dizer. Estava acima de tudo decepcionado. Se sua esposa não era aquela atriz, ela voltava a ser a mulher certinha e banal que ele antes imaginava. Sabia que devia pedir desculpas, mas isso, que tantas vezes já fora difícil, agora não era sua maior preocupação. O que o incomodava era voltar a ver na mulher apenas uma fiel cumpridora de regras, uma pessoa convencional, sem nada fora do comum.
Amor, acho que te devo um pedido de desculpa.
Claro que deve!
Me perdoa, amor. Realmente achei que fosse você.
— É claro que não sou eu! — Amanda mantinha os braços cruzados, o nariz ligeiramente erguido.
— Desculpa, amor. Desculpa mesmo. É por causa da tatuagem... Você entende... — Desanimado e confuso, o homem sentou no sofá e ligou a televisão. Estava terrivelmente decepcionado, mas não queria pensar no assunto. No dia seguinte teria o trabalho, os ho-rários a cumprir. Calculou que no máximo em duas semanas teria esquecido tudo. Sentia-se um imbecil por ter fantasiado o passado da mulher, mas intimamente se absolvia, pois sabia que a culpa era dela. Amanda tinha uma vida tão comum, tão sem graça, que ele se divertira em fantasiar-lhe um passado minimamente interessante. Mas agora era melhor esquecer. Aumentou o volume da televisão, tentou prestar atenção ao jogo de tênis. Nunca tinha se interessado por tênis, mas qualquer coisa era melhor que aquela vidinha estúpida. Amanda foi arrumar a cozinha. Também pensava que em breve teriam esquecido tudo, e que seria melhor assim.
Mas a libido do marido não voltou a ser a mesma, e depois de duas semanas de abstinência, Amanda estava um pouco arrependida. Por um lado estava satisfeitíssima, pois acreditava ter representado brilhantemente seu papel. O homem nem sequer a questionara; um argumento e uma cara de indignação bastaram para que ele acreditasse inteiramente nela. Gabava-se de ser uma ótima atriz, de ter o delicioso poder de fazer o marido acreditar mais nela que nos fatos. Mas também sentia que tinha perdido alguma coisa fundamental. Danilo voltara a falar com ela daquele jeito seco e maquinal — oi, amor, tchau, amor, vou sim, amor, tudo bem, amor, pode deixar, amor — e agora que tinha experimentado algo diferente, Amanda não conseguia mais se satisfazer com um rol de frases feitas. Tentou algumas reaproximações, mas elas resultaram no sexo ordinário de sempre: a luz apagada, Danilo por cima, de olhos fechados, apenas esperando o momento do alívio.
Nenhum deles se preocupara em apagar o vídeo, e Amanda começou a assisti-lo, quando chegava em casa antes do marido. Não sabia exatamente o que pensar: ficava desconsertada, tensa, arrependida, estranhamente humilhada. Revia o vídeo pensando em domar esses sentimentos, mas eles retornavam, às vezes com lembranças desagradáveis e confusas. A idéia de contar a verdade a Danilo passou a persegui-la, não como obrigação que devesse a ele, mas como forma de se livrar daquelas lembranças desconfortáveis que eram agora recorrentes e torturantes como nunca foram antes do casamento. No dia que orava, pedindo forças para enfrentar a situação, surpreendeu-se pensando que tudo seria mais fácil se ele apenas tivesse uma amante. O casamento talvez estivesse mais seguro que agora, e ela não teria de passar pela tortura da confissão.
Escolheu um domingo para a revelação. Mas no sábado, quando o marido assistia ao campeonato de sinuca, ela foi ficando nervosa, excitada, estranhamente revoltada com a paz que ele encontrava na televisão. Acabou não se contendo.
Amor, preciso falar uma coisa com você.
Agora? — Danilo não esperava mais nenhuma surpresa da esposa. Estranhou que ela desligasse a televisão, e intuindo a importância do momento, achou que ela ia noticiar uma gravidez. Já começava a sentir um pequeno entusiasmo quando a mulher falou:
Olha, aquele vídeo...
O quê? — Ele quase não lembrava do assunto.
Você estava completamente errado.
O vídeo da mulher com a tatuagem?
Eu não podia admitir, você estava fazendo uma idéia totalmente errada de mim, entende?
Claro que entendo, amor. Você já me explicou, já falou que não era você.
Pois é, não era eu. Quer dizer, não fui eu que escolhi, não foi uma decisão minha, então era como se fosse outra pessoa.
Como assim?!
Você não sabe o que aconteceu quando meu pai morreu...
Amor... — Danilo não esperava esse assunto. Achou que havia alguma coisa errada, mas se aproximou da mulher, abraçou-a carinhosamente. — Pode me falar. Você nunca me contou nada dessa época.
— De repente eu tive que sair da faculdade e agüentar um empreguinho de balconista. Não era fácil para mim. Sempre fui sustentada, meu pai bancava tudo, pagava a conta do meu celular. De repente eu tinha que suportar um emprego daqueles, ficar sem a faculdade, pegar ônibus lotado... Você não imagina o baque que foi para mim... — Ela não conseguia conter as lágrimas. O homem estava emocionado, ainda não tinha visto a esposa naquele estado.
Então minha amiga me falou desse gringo que fazia uns vídeos com brasileiras.
O estupor gelou o corpo de Danilo. Seus olhos também estacaram.
Gringo? Que gringo, amor?!
Você acha que eu ia topar se fosse com brasileiro?! Se minha mãe visse uma coisa dessas!
Então era você!
Ele me garantiu que o filme nunca ia sair no Brasil, aquele cretino, ele garantiu! — O choro convulso e sincero deixava Danilo pasmo. Ele não sabia o que era mais assustador: se a revelação que acabava de ouvir ou a farsa exagerada que Amanda tinha encenado, não apenas o convencendo, mas humilhando-o, envergonhando-o por suas especulações. Ficou algum tempo em silêncio, olhando para o nada. Amanda continuava chorando, mas agora suavemente, tentando adivinhar o que o marido estava pensando. Porém, se adivinhasse, não ficaria contente. Pior do que maçante e convencional, agora ela se revelava uma mera vítima das circunstâncias, sem convicções, sem nenhuma fidelidade a seu íntimo. Fizera o filme por dinheiro, não por audácia. Depois escondera a verdade por necessidade de manter as aparências. E agora a revelava por falta de força para sustentar a mentira. Era uma fraca, não seguia nenhum princípio interior, era movida apenas pela oscilação dos acontecimentos. Com uma pachorra e uma hipocrisia que ainda não conhecia em si, Danilo abraçou-a, consolou-a, garantiu que tudo ia ficar bem. Amanda se acalmou, e quase riu da pergunta imprevista que o marido lhe fez.
— Amor, me diga apenas uma coisa. Por que você fez essa tatuagem de cruz?
A mulher se viu aliviada por não ter de explicar nada sobre o filme. Tudo indicava que Danilo não tinha visto a outra cena, com os dois atores negros.
Bem, amor. Minhas amigas todas já tinham tatuagem, e eu não queria ser a única a não ter. Mas minha mãe era católica, aí você já sabe: ela ia falar no meu ouvido até caírem os dentes. Então pensei em fazer algo que pudesse lhe agradar. Pensei que uma cruz talvez tivesse mais a ver com o mundo dela... Não sei se acertei. Ela reclamou do mesmo jeito, mas talvez não tanto quanto se fosse um dragão ou uma cobra.
Você é bem espertinha, hem, amor!
Os olhos e um sorriso maroto demonstraram certo orgulho. De fato Amanda se julgava esperta por seu hábito de tentar agradar a todos que a cercavam. 
Ele pediu um café. Ela ficou contente por ter como ocupar aquele momento constrangedor. Quando retornou à sala, sentiu como se as coisas começassem a voltar ao normal. Danilo elogiou o café, manteve a atenção compenetrada na televisão, enquanto se perguntava silenciosamente como seus amigos tinham conseguido amantes. Nos próximos dias, tentaria descobrir. Não poderia prescindir de alguém para dividir as prestações do apartamento, mas sua libido precisaria de uma nova ilusão. Amanda, sentando-se a seu lado, começou a pensar em parar com os anticoncepcionais. Sentia que havia decepcionado terrivelmente o marido, e, não havendo uma nova necessidade externa, o casamento poderia estar acabado. Juntos no mesmo sofá, traçavam planos completamente diferentes, mas permaneceriam unidos, até que as circunstâncias determinassem o contrário.