segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Cidade dos Atores

O garçom que acaba de trazer a conta não é garçom. O taxista que me leva ao hotel não é taxista. O gerente que dá instruções a uma estagiária morena de cabelos longos nunca deve ter lido um livro sobre hotelaria. Na Cidade dos Atores todos são atores representando seus papéis. Estudaram e ensaiaram seus gestos, suas palavras, o sotaque, a surpresa ou a indiferença que revelam no olhar e no tom de voz. Muitos passaram anos na escola de arte dramática, debruçaram sua juventude sobre Shakespeare e Nélson Rodrigues. Alguns fizeram cursos mais rápidos, com ex-diretores ou atores famosos, mas esses cursos foram devidamente avaliados e certificados pela Secretaria de Cultura. Os intuitivos e autodidatas não são tolerados na cidade. Há profissionais estrangeiros, mas eles estudaram em seus países de origem e sabem imitar perfeitamente o sotaque local. Se alguém aparenta ser um americano ou um chinês, só pode ser um ator nacional desempenhando meticulosamente seu papel. Os atores estrangeiros não costumam representar estrangeiros; isso não seria nenhum desafio, nenhuma conquista excepcional.

Claro que há turistas, a cidade não sobreviveria sem eles. Mas há também atores representando turistas, para tornar a experiência do turismo mais saborosa e completa. Um dia passei quase uma hora assistindo uma velhinha a tomar seu chá, num café decorativo, próximo ao centro histórico. A interpretação não foi menos que magistral. Enquanto lia o cardápio, a atriz encenou a serenidade ancestral das velhinhas, encarnou uma lentidão despreocupada, sustentou uma elegância suave, casual. Com a chegada do cheesecake, assumiu certa voracidade, porém matizada com um prazer requintado junto com breves alusões a uma angústia sutilíssima. Na sequencia retomou a serenidade, mas agora com uma energia e uma concentração realisticamente hipnóticos, culminando numa surpresa vigorosa, quando reclamou da demora da conta. O garçom atuou adequadamente, desculpando-se de forma sumária, fingindo não ver que eu, duas mesas atrás, de câmera ligada, vivia a euforia silenciosa de um espectador feliz. Só no dia seguinte percebi que o vídeo não havia registrado nem de longe a vitalidade irrepetível daquele momento. Lamentei inutilmente; precisei de outras experiências para me conformar. A magia misteriosa da atuação parece não admitir o automatismo das câmeras. O gesto mais vibrante, o olhar mais preciso, indubitável, repetidos em vídeo, parecem fingidos, forçados, artificiais.

Faz anos que passo as férias na Cidade dos Atores, e minhas expectativas nunca foram frustradas. Um homem que barganha o preço das frutas com um camelô, meninas voltando da praia, balançando distraidamente os quadris, o motorista indignado que vocifera com o motoqueiro transgressor, tudo é feito com absoluta precisão e domínio. Um gesto atravessado, um mínimo exagero vocal deitaria a cena a perder, furtaria o prazer do espectador, perder-se-ia num caos tumultuoso de frases exclamativas e banais.

Por isso suponho que haja uma fiscalização severa; os atores incompetentes são rapidamente demitidos, talvez exilados. A Cidade não pode admitir o erro, o acaso, a intromissão perniciosa da realidade. Imagino galpões impenetráveis, nos subúrbios, onde os textos são ensaiados, repetidos, repassados ao limite exaustivo da perfeição. Os profissionais devem dormir muito pouco, e passar as folgas numa cidade vizinha, onde talvez sejam reconhecidos, porém tratados como homens normais, que precisam comer, descansar, esquecer, não como atores que atuam que estão comendo, descansando, esquecendo.

Certa vez fingi uma doença para assistir uma peça num hospital público. Me deliciei com as faces resignadas, o terror no rosto dos familiares, a impassibilidade altiva dos profissionais uniformizados. Naquele dia fui, muito brevemente, para justificar a cena do médico, um ator diletante e canastra. Aludi a uma vaga dor de coluna, tirei a camisa, deixei-me auscultar, medicar, aconselhar, apenas para me deleitar com um olhar de enfado, uma voz monótona, uma gesticulação frouxa, histrionicamente indiferente. Em busca de prazeres semelhantes, fui um passageiro de ônibus, um comprador de legumes, um homem comum, num bar, tentando esquecer sua solidão intragável. A bebida intensificou minha sensibilidade para a beleza de um momento programado e executado por mentes humanas. O garçom fingiu um vago interesse pelas minhas dores. O homem ao lado me contou um caso que seria mais pungente, mais dramático e cabal. Algumas mesas atrás um casal discutia furiosamente a intromissões frequente da sogra. Tencionei beber até a inconsciência, para ver como me tratariam no bar, se me levariam para o hotel, o que restaria da minha carteira, da minha dignidade. Meu estômago simplesmente me obrigou a desistir da ideia. O que fiz foi chegar cansado no quarto, imaginando como a atriz que representasse uma garota de programa teria fingido o orgasmo: o tom agudo dos seus gemidos, a pressão das pálpebras, a contração decidida das sobrancelhas. Farto de especular, deixei o espetáculo para outro dia.

Quando volto para minha cidade natal a vida me parece deformada e sem sentido. Já não faço mais que trabalhar e juntar dinheiro para as férias. Descobri que algumas pessoas da minha cidade, e até do meu bairro, também já visitaram a Cidade dos Atores. Devem saber mais ou menos o que sinto quando estou por lá. Claro, que nunca quis conversar com elas. Diriam que a cidade é maravilhosa, intensa, sobre-humana, ou seja, nenhuma novidade. E, se por acaso não tiverem gostado, não tiverem sabido apreciar o prazer de viver cercado pela encenação e pelo fingimento, eu não toleraria ouvir sua opinião, assim como nenhum homem deste mundo tolera ouvir um juízo negativo sobre o mar ou o pôr do sol.

Possuído por tais pensamentos, não seria natural que eu desejasse e pelo menos tentasse viver permanentemente na Cidade dos Atores? Essa ideia me ocorreu há alguns anos, perturbou meu trabalho e reduziu minhas horas de sono. Fui tantas vezes um turista no meio de profissionais. Não seria hora de ser um ator representando um turista? Esperei o tempo necessário, contando os dias e meses. Nas férias seguintes, voltei à cidade com um plano ousado, ambiciosamente teatral. Não fui para o hotel modesto, no centro, onde eu costumava me hospedar. Parti para um cinco estrelas, próximo a um monumento histórico, quatro vezes mais caro. Ao dar entrada, perguntei pelo menu do café da manhã; fingi certa perplexidade por não terem figos. O atendente, o ator, garantiu que tomariam providencias. No dia seguinte, encontrei os figos na mesa, mas não deixei que minhas pálpebras movessem um milímetro de surpresa. Acompanhei-os de queijo, caputino, broa de fubá. Mastigando a esponja adocicada, emiti uma aprovação gutural, fingi um prazer sublime. Só então me ocorreu que eu tinha espectadores. Nas mesas ao lado, os homens me observavam com uma atenção excitada, olhos fixos; eram turistas em busca do seu espetáculo. Nesse momento senti que eu havia exagerado. Os figos não justificavam um prazer tão elevado. Além disso eu havia dado a entender, no dia anterior, que estava acostumado a eles. Meu gemido, portanto, não devia expressar nenhum êxtase, nenhuma satisfação fora do comum. Tive que admitir: minha estréia fora um fracasso.

Voltei para o hotel. Ensaiei várias vezes a compra de um produto eletrônico. Decorei o texto, atuei a surpresa pelo preço, a indignação, a argumentação inútil, a derrota, a resignação, a submissão rancorosa. Quando me senti pronto, parti para a ação. Escolhi uma lojinha pequena, na zona norte, onde eu teria poucos espectadores. Selecionei um produto, espantei-me, questionei o vendedor, debati. Mas uma novidade deitou a perder minhas horas de ensaio. Naquela semana havia uma promoção, um imprevisível desconto de dez por cento. Confuso, tive que improvisar. Não sabia se o desconto deveria me levar ao contentamento, ou se eu deveria insistir, intensificar a revolta, alegando que o paliativo não tirava o preço da sua faixa exorbitante. Optei pela segunda via, mas não consegui expressar a intensidade necessária. A falta de ensaio me traiu. Minha voz saiu chocha, meus argumentos soaram capengas, falsos, teatrais. O balconista percebeu. Os outros consumidores perceberam. Na impossibilidade de pedir-lhes desculpas, apenas comprei o produto, paguei o preço, voltei para o hotel, derrotado. Meu plano naufragava. Talvez eu precisasse de mais observação, mais ensaios, mais tempo na Cidade dos Atores. Mas isso custaria caro. E agora muitos saberiam que eu não era ator. Talvez ninguém prestasse atenção quando eu entrasse num bar ou num cinema. Como última tentativa, desesperada, chamei uma garota de programa, com intenção de fingir absolutamente tudo. Fingir satisfação com seus seios grandes, fingir prazer com o aderente sexo oral, fingir um êxtase profundo com o alívio do orgasmo. Mas a menina quase não tinha seios, o oral foi com camisinha, e o orgasmo foi um alívio fraco e banal como um arroto.

Naquela tarde achei que eu não conseguiria dormir, me condenando e martirizando pelas péssimas atuações. E no entanto, dormi como um menino, talvez por ter compreendido o erro que eu vinha cometendo. Os atores tinham algo que me faltava completamente. Disciplina, dedicação e talvez o tal do talento. Acreditar que eu seria um deles tão facilmente foi uma ingenuidade absurda. No dia seguinte eu estaria livre dessa sina. Tomaria o que servissem à mesa. Perambularia pela cidade, desatento a tudo, pegaria um táxi para qualquer lugar. De noite, daria saída no hotel e voltaria para a minha cidade banal. Mas no ônibus de volta, ou talvez ainda na rodoviária, eu perceberia um homem feliz. Um homem que tentou ser outro, e agora sabe quem é. Um homem que se equivocou, quase usurpou, sem querer, um cargo legítimo, e agora reconhece seu lugar na plateia; sem ilusões, sem ressentimento.


Ronaldo Brito Roque