segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Amor sobre rodas



Intervenção de Ronaldo Brito Roque
em conto de Guilherme Preger


O que me fascinou em Nina não foi a juventude macia de sua pele ou a candura de seu rosto branco. Acho que me apaixonei por ela na primeira vez que a vi chegar de motocicleta, de vestido e salto alto. Também estava de capacete, mas antes de ver seu rosto eu já estava caído por ela. Era algo completamente inusitado ver uma mulher que, ao dirigir uma moto, não abria mão da sua maneira própria de se vestir e de ser. Aliás, Nina andava de moto de forma tão natural, que o veículo parecia fazer parte de sua personalidade.

Fiquei encantado com a facilidade e a tranquilidade do início de nosso namoro. Embora ela fosse vinte anos mais nova, e espiritualmente muito diferente, nos demos bem desde o começo. Nina era uma moça leve, de corpo e alma, e me transmitia essa leveza. Ela só se impacientava dentro de um automóvel. Eu tinha, é claro, um carro, mas Nina não suportava andar de carona em meio ao trânsito da cidade. Reclamava muito quando ficávamos engarrafados. Ela chegou a sugerir que eu tirasse carteira de motociclista, mas fui radicalmente contra, antes por pânico que por desejo de contrariá-la. Aliás, nunca fui uma pessoa teimosa ou orgulhosa, tampouco Nina, e isto era algo que tínhamos em comum.

Mas não houve jeito, e para o bom desenrolar de nosso relacionamento, comecei a andar na garupa da sua motocicleta. Ela tinha um capacete extra, que pertencera ao ex-namorado, mas me recusei a usá-lo. Comprei meu próprio capacete e lá ia eu, sentado na garupa, agarrado à minha namorada. Aliás, muito agarrado. Eu sentia simplesmente pavor. Nina, no entanto, era excelente motociclista e passeava pelo trânsito não exatamente com prudência, mas com extrema desenvoltura, como se só tivesse feito isso a vida inteira. Cortava os carros, como um surfista corta uma onda, e esta é certamente a melhor imagem que encontro para descrevê-la dirigindo. Nina simplesmente navegava no caótico trânsito da cidade, sem nunca demonstrar preocupação. Ela dizia que um anjo da guarda a protegia, pois nunca se acidentara, e eu me abraçava a ela para que pudéssemos caber juntos de baixo de sua asa.

Em breve, já pegávamos as estradas para viagens maiores e comecei a sentir certo prazer em viajar exposto ao vento ou a chuva, deslizando pelo asfalto quente, veloz e voluptuosamente pelas curvas do campo ou da serra. Meu medo foi se dissolvendo lentamente, e nosso relacionamento ia, por assim dizer, a favor do vento. Sempre me questionei da razão de Nina, tendo tantos amigos motoqueiros, ter se aproximado justamente por um homem que tivera tanto medo de motocicleta.

Talvez porque Nina quisesse dar a mim, na moto, a emoção e o prazer que certas mulheres dão aos homens na cama. Apesar de ser solta e desinibida sobre a motocicleta, na cama ela era tímida, contida, eu diria até passiva. O amor era bom, mas… apenas isto: bom.

Porém não era nada que afetasse realmente nosso relacionamento. Uma coisa, no entanto, começou a me inquietar. Eu comecei a me sentir um pouco constrangido quando encontrava amigos que me viam na garupa da moto, firmemente agarrado a Nina. Eu sei que é bobagem. Não sou um homem machista. Nunca fiz o gênero de machão com qualquer uma de minhas namoradas. Além do mais, Nina era uma moça muito bonita que envaideceria qualquer homem. Mas eu não me sentia bem, quando chegávamos a um lugar onde estavam os meus ou seus amigos, e nos viam estacionar a motocicleta comigo, seguro a ela como um menino medroso.

Certa vez, quando Nina cortou um carro no trânsito, da maneira natural e desenvolta como sempre fazia, mas tirando um fino de distância entre nossas pernas e a lataria, reclamei com ela. Foi, então, que ocorreu nossa primeira briga. A partir deste episódio desagradável, curiosamente meu velho medo de motocicleta retornou e passei a insistir que fôssemos de carro ou de táxi, quando saíamos juntos à noite. De dia, quando andávamos, eu, como sempre na garupa, ia ficando desesperado com as barbaridades de Nina no trânsito, movimentos temerários que ela fazia com a máquina, e eu não havia reparado antes.

Finalmente, quando nossa relação não ia bem, resolvemos fazer mais uma viagem de fim de semana para a serra, num chalé extremamente charmoso que havíamos curtido juntos ao pé da montanha. Foi a nossa última viagem de motocicleta. Fiquei inteiramente arrepiado quando Nina fez uma curva em que a moto quase andou na horizontal. Cheguei a sentir o calor do asfalto no meu ombro. Pedi que ela parasse para eu que pudesse respirar; fiquei sem fôlego. Em seguida, preferi pegar um ônibus e retornei à cidade, enquanto Nina descia a estrada na sua moto.

Quando cheguei em casa, fiquei pensando que eu tinha exagerado. Afinal, ela já havia me provado que era uma ótima motociclista. Durante aqueles anos, eu nunca a tinha visto sequer esbarrar num retrovisor. Tive que admitir que foi burrice minha. E quando o telefone começou a tocar, senti um princípio de esperança. Talvez Nina quisesse reatar. Talvez pudéssemos resolver tudo apenas indo cada um no seu veículo. A solução era muito simples, não havia motivo para terminar. Mas não era Nina, era a secretária de um hospital. Nina tinha sofrido um acidente e estava em coma. Eles estavam ligando para todos os números do seu celular. O meu foi simplesmente o primeiro que atendeu.

Fui correndo para o hospital. Providenciei uma transferência para a ala particular, inteiramente por minha conta. Ela tinha fraturado vários ossos, e havia indício de uma lesão na coluna. O médico disse que ela poderia sair do coma, mas fatalmente haveria seqüelas. Eu estava tão chocado que não sabia o que dizer. Só depois de alguns dias, minha cabeça voltou a funcionar, e fiquei estarrecido quando me peguei pensando que pelo menos ela ia concordar comigo. Ela ia finalmente largar aquela maldita motocicleta. De repente percebi o quanto eu era mesquinho, egoísta, controlador. Tive uma forte crise de culpa, e fiz uma promessa intimamente secreta. Se Nina saísse do coma, eu compraria outra moto para ela. Ainda que ela não quisesse mais ficar comigo; ainda que ela me odiasse para sempre. Nina jamais seria completa sem uma moto, e eu sabia disso melhor que ninguém. Dormi mais tranqüilo naquela noite.

Nos dias seguintes fiquei pensando como Nina reagiria se soubesse da minha promessa. Certamente ficaria contente, talvez chegasse a me admirar. Eu cuidaria dela e pagaria a fisioterapia. Ela se encantaria com essa demonstração de amor, e provavelmente me amaria de volta. A brutalidade daquele acidente talvez servisse para nos unir muito mais.

Infelizmente as coisas não foram assim tão simples. De fato Nina acordou, num dia em que sua mãe foi visitá-la. A velha falou sem pudor as frases que a muito custo eu tinha conseguido segurar: “Eu não te disse? Não falei que essa moto ia te trazer desgraça?!” Ao ouvir essas palavras, Nina recobrou imediatamente os sentidos, e deu um tapa na cara de sua mãe. Certamente foi o tapa mais feliz que a velha já ganhou; porém nos dias seguintes, ela descobriu que essa felicidade não era completa. O corpo de Nina não se recuperou por inteiro. A lesão na coluna não cicatrizou corretamente, impedindo que ela voltasse a andar.

Quando recordo aquela época, vejo que eu me adaptei até muito facilmente. Decidi não contar à Nina sobre a promessa que eu tinha feito. Deduzi que quanto mais ela pensasse em moto mais ficaria triste. Em vez disso pedi que ela me deixasse lhe pagar a cadeira de rodas. Para minha surpresa, ela não quis uma motorizada. Alegou que sua nova vida exigiria braços fortes, e era melhor se habituar. Paguei também uma reforma no seu apartamento. Fui cuidando dela, e, como eu esperava, acabamos por reatar. Um dia eu brinquei que ela ficaria até mais bonita de ombros largos. Ela me bateu, falou que eu não fazia ideia de como ela estava sofrendo. Depois me agarrou, me beijou, pediu desculpas exageradas. Disse que nunca teria como me agradecer. Eu falei que um beijo já estava bom, e estava mesmo. Mas ela quis me mostrar que sua boca podia muito mais.

Foi muito difícil admitir que eu estava feliz. Mas Nina estava a meu lado, o sexo estava ótimo, tudo corria bem. Não havia a loucura da moto, não havia mais o medo constante de perdê-la. Apesar de ter conquistado certa independência, ela ainda precisava muito de mim, inclusive financeiramente, porque a pensão que ela passou a receber era irrisória. Percebi que no passado eu havia me iludido. Eu me recusava a admitir, mas a independência, a liberdade e a segurança de Nina, no fundo sempre tinham me incomodado. Agora eu era necessário em sua vida. Quando eu empurrava sua cadeira, me sentia seguro, generoso, espiritualmente elevado. Passamos a freqüentar parques calmos e sossegados. Passávamos horas nos beijando e curtindo o entardecer. Era o namoro dos meus sonhos, eu estava serenamente feliz.

Até que Nina começou a ficar horas na internet. Entrou em comunidades de cadeirantes, conheceu outras pessoas com as mesmas dificuldades que ela. Eles planejavam manifestações coletivas, lutavam pela aprovação de certas leis (leis que obrigavam os prédios públicos a ter rampas e coisas do tipo). Trocavam informações sobre hotéis que tinham apartamentos para deficientes. E o pior: reuniam-se quinzenalmente num bar de Botafogo, cujo dono também era cadeirante. Minha insegurança voltou rapidamente. Comecei a temer que Nina talvez estivesse procurando um homem com o mesmo histórico que ela. Alguém que padecesse as mesmas dores, enfrentasse os mesmos problemas. Talvez ela se sentisse mais compreendida por um homem assim.

Meu temor me levou a freqüentar as manifestações com ela, a vociferar contra a falta de políticas públicas para deficientes, e a ficar sempre ao lado dela nas reuniões no bar de Botafogo. Consegui convencê-la a instalar um GPS na sua cadeira. Assim, a qualquer momento, eu poderia saber onde ela estava. Claro que isso era para sua segurança. Tudo que eu queria era protegê-la, eu não suportaria se houvesse outro acidente que limitasse ainda mais seus movimentos.

Um dia estávamos vendo um filme na sala, e tomando um vinhozinho — um fim de semana bem romântico como eu gostava — e de repente Nina me perguntou se eu sabia o que era hardcore sitting. A palavra hardcore me lembrava certos vídeos que eu via no trabalho, mas eu não fazia ideia do que podia ser um hardcore sitting. Seria um filme pornô feito por cadeirantes? Cheguei a ter um calafrio. Será que um pervertido tinha convidado Nina a fazer algum filme doentio com mulheres em cadeiras de rodas?! “Não amor, não faço ideia do que seja isso!”, respondi, tremendamente ansioso, louco para saber do que se tratava. Ela pegou o leptope e começou a me mostrar alguns vídeos. Disse que o hardcore sitting já era comum nos Estados Unidos e estava crescendo vertiginosamente no Brasil. Quando vi aquelas loucuras nem acreditei. Não era o que eu tinha pensado, mas era seguramente algo que aniquilaria minha paz. Cadeirantes faziam manobras radicais em pistas de esqueite e outras maluquices. Intuí imediatamente que Nina se juntaria a eles, e certamente faria aquelas manobras com a mesma leveza e naturalidade com que um dia pilotara sua moto. Me senti traído, não por Nina, mas pelo destino. O mundo novamente me tomava Nina, me tirava a tranqüilidade e a segurança que eu levara tanto tempo para encontrar. Passei alguns dias deprimido, de mal com o mundo. Me senti humilhado pelo deus no qual sempre tentei não acreditar. Mas ao mesmo tempo eu sabia que Nina precisava daquela aventura. Ela parecia ter nascido para adejar, para flutuar sobre alguma coisa móvel. A mera gravidade de alguma forma a ofendia.

Então recordei minha promessa secreta, e entendi que estava na hora de renová-la. Eu tinha jurado que, se Nina melhorasse, eu mesmo lhe daria outra moto. Agora ela estava prestes a melhorar. Não do jeito que eu tinha imaginado, mas ela ia conseguir retomar sua leveza, sua paixão pelo risco e pela velocidade. Comecei a pesquisar na internet, e descobri que havia cadeiras mais seguras para essas manobras, com rodas inclinadas e aro de titânio. Não demorei a perceber que eu precisava encomendar uma. Alguns dias depois pude fazer uma surpresa para Nina. Seus olhos úmidos confirmaram que eu estava certo. Um nova harmonia começava a se instalar entre nós. Uma harmonia que incluía o movimento e o risco.

Hoje vibro quando vejo suas manobras. Nina já apareceu em vários programas de televisão, o grupo que ela dirige tem patrocínio do estado, para orientar e motivar outros cadeirantes. Nunca deixei de acompanhá-la, dando todo o apoio e incentivo que ela merece. Nina reconquistou sua leveza, sua audácia, sua parceria com o risco. E acho que eu finalmente entendi qual é meu lugar na sua vida. Ela vai continuar flutuando, vai ser um permanente desafio contra a gravidade. E eu vou estar logo abaixo, protengendo-a do chão que a persegue incessantemente. Eu quero acertar onde o anjo dela falhou. Eu vou estar entre o chão e ela, como ela está, para mim, a um passo do céu.