quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Controle Remoto

Quando surgiu o controle remoto, no final dos anos setenta, Macaulay não deu muita bola. Achou que levantar para mudar de canal era no mínimo um bom exercício, e não valia a pena pagar o dobro numa televisão, só para ter o prazer de comandá-la à distância. Porém, com o tempo, o preço caiu bastante, e o número de canais só aumentou. Mac, como o chamava sua mulher, acabou cedendo, e aderiu à moda sem maiores dificuldades. Desde então, seu entusiasmo pela tecnologia não parou de crescer. Quando o microcomputador surgiu, nos anos oitenta, ele foi um dos primeiros compradores. Também foi pioneiro quando os telefones celulares começaram a tocar nos restaurantes e cinemas, no final dos noventa. Em 2004 fez um curso de webdesign e, quando se aposentou, em 2009, trabalhava criando aplicativos para smartphones. Na velhice havia se tornado um entusiasta de novas tecnologias, e assinava revistas especializadas, que tratavam desde livros digitais até viagens intergalácticas. Foi por meio delas que descobriu o que era criogenia, e, para desespero de Zelda, nunca mais conseguiu pensar em outra coisa. Chegou a mudar seu círculo de amigos, porque os retrógrados não adeririam à idéia nem depois que o preço caiu para menos que o de um condicionador de ar. Sua maior decepção, sem dúvida, foi não ter convencido a mulher, e, depois de inúmeras discussões, ficou decidido que os dois não falariam mais no assunto, para evitar aborrecimentos. Afeita a seitas esotéricas e idéias orientais, que Macaulay chamava simplesmente de superstição, Zelda fazia questão de defender seu direito a morrer em paz. Argumentava que: ou haveria vida após a morte – e essa seria um pouco melhor – ou haveria o descanso eterno, sem nenhum espaço para saudade. As duas opções seriam melhores que acordar num mundo assombrado por andróides e infestado de aparelhinhos irritantes que seus donos já nem lembrassem para que serviam.

Macaulay respeitou o direito da mulher, mas sempre que se encontrava com os amigos não deixava de expressar sua profunda frustração: – Ela não acompanha o progresso da medicina, não vê que é apenas questão de tempo até conseguirem fazer um transplante de cérebro!

Os amigos concordavam. Sim, era absurdo. Ela preferia morrer a dar um pouco de crédito à ciência. E agora estava tão barato, apenas quatrocentos dólares por ano! Que mulher mesquinha.

Mas Zelda também respeitou a decisão do marido, e guardou com cuidado o telefone da equipe de criogenização. Um dia Mac sentiu uma palpitação e lembrou à mulher: – Quando minha hora chegar, não vá esquecer de chamá-los, hem! Depois tomou seu comprimido para pressão, e ficou estranhamente taciturno. Sua mulher logo se preocupou: – O que foi, querido? Por que esse silêncio todo? O homem resmungou um pouco, depois desabafou: – Zelda, você vai casar de novo? – O quê?! – Quando eu for criogenizado, você vai arrumar outro marido? A mulher ficou até lisonjeada. – Ora, o que é isso, Mac! Eu tenho sessenta e quatro anos, você acha que eu ainda penso nessas coisas! – Sei lá, de repente você encontra um velho que nem você, que goste dessas bobagens orientais. – Ora, Mac, não seja bobo!

Zelda cortou o assunto, mas naquela noite dormiu até melhor. Nos dias seguintes começou a considerar a criogenização com mais simpatia. Mac, afinal, era um bom marido, sempre trabalhara e arcara com as maiores despesas do lar. Não era justo deixá-lo sozinho. Devia ser muito triste passar anos trancado naquele tanque de nitrogênio líquido. E se ele acordasse mesmo no tal futuro, será que se acostumaria a falar com andróides? Como ele se sustentaria? Sua aposentadoria se tornaria vitalícia? Dúvida e compaixão se alternaram no coração da velha, e ela concluiu que, se o marido insistisse mais um pouquinho, ela acabaria indo para o tanque com ele. Não por ela, que detestava qualquer aparelho com mais de quatro botões, mas pelo seu velho Macaulay, que sozinho não conseguia nem achar os óculos. Alguém tinha que cuidar dele, e se fosse preciso passar séculos imersa em nitrogênio líquido, ela estava disposta a fazer esse sacrifício. Decidiu que explicaria tudo ao marido assim que ele viesse com mais uma especulação cansativa sobre o futuro.

Não podia imaginar que o destino lhe negaria essa oportunidade. No dia seguinte, Macaulay estava vendo televisão, quando de repente o controle remoto parou de funcionar. As pilhas se esgotaram, e ele teve que se levantar para mudar de canal. Mas seu coração, muito desgastado, não suportou o pequeno trajeto. A dor no peito foi até fraca, comparada às outras que vieram após a queda. Contudo Macaulay lamentou mesmo foi a perda da fala, porque o rosto de Zelda, nos momentos finais, parecia mais consternado que ele esperava. O velho te
meu que ela tivesse perdido o telefone da equipe. Mas seu receio não durou nem dez segundos. Logo ele mergulharia numa calma profunda, sem sonoridade, sem luz, sem nada que pudesse deixar uma lembrança.

Quando acordou, a primeira coisa que viu foi um teto branco, depois notou que ele não era branco, seus olhos é que estavam se acostumando à iluminação. Parecia estar num hospital, e chegou a lamentar que tivesse apenas passado por mais um infarto. Uma voz de mulher o saudou – Bom dia, senhor Smithson. Em breve uma de nossas enfermeiras falará com o senhor – e ele ficou mais aliviado, porque pelo menos era um hospital moderno, com dispositivos eletrônicos que sabiam que ele tinha acordado. A enfermeira era linda, e Macaulay quase não entendeu o que ela dizia, de tanto que ficou vidrado no movimento suave e ritmado dos seus lábios. Quando ela parou de falar, ele arriscou um comentário engraçadinho.

– Ah, minha querida, se eu tivesse apenas uns dez anos a menos, não saía daqui sem o seu telefone. 
– A resposta da garota acelerou seu batimento cardíaco, que ele podia acompanhar num pequeno monitor ao lado da cama.

– Senhor, devo avisá-lo que sou uma andróide. Neste pequeno panfleto o senhor encontrará informações sobre minha companhia. Caso tenha interesse, poderemos fabricar uma andróide com noventa e nove por cento de semelhança com a senhora Smithson, inclusive no sotaque e nos hábitos mentais.

Em seguida a beldade abriu um pequeno armário, e informou: – Esses são os pertences que a senhora Smithson considerou que seriam de interesse pessoal do senhor. Aqui está o cartão de outra companhia que poderá reconstruí-los caso algum deles venha a se desfazer. Ainda em estado de choque, Macaulay perguntou: – Quando ela morreu? – O senhor se refere à Sra. Smithson? – Claro que me refiro à minha mulher, sua máquina estúpida. De quem mais eu estaria falando? – Me desculpe, senhor. Eu precisava confirmar. Ela morreu em 2021. Fará exatamente 218 anos no dia 21 de outubro de 2239.

Ele ia perguntar quanto tempo ficou dentro da câmara de criogenização, mas as palavras simplesmente não saíram. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro talvez não fosse tão hospitaleiro quanto ele tinha pensado. Ficou alguns segundos contemplando seus objetos pessoais, que eram um leptop, um chapéu de caubói, algumas fotos de Zelda e um controle remoto de televisão.

Os dias seguintes foram de descobertas paradoxais. Quanto mais Macaulay conhecia coisas novas, mais lhe parecia que o mundo no fundo continuava o mesmo de sempre. Havia mais jardins, as pessoas trajavam estranhos macacões de plástico. Óculos inteligentes – chamados smartglasses – substituíam a televisão, os jornais e quase tudo relacionado a informação. Mas continuava a haver pobres e ricos, e o velho descobriu que precisaria voltar a trabalhar. Depois de alguns meses de treinamento, ele não teve dificuldade em se adaptar, e se tornou inspetor de qualidade numa fábrica de petbots (eram robôs que acompanhavam as pessoas filmando e gravando tudo que elas faziam, para consulta pessoal ou para servir de prova em caso de processos judiciais). Sua maior dificuldade era parar de pensar no passado. Quando ficava sozinho, punha-se a olhar suas fotos antigas, e como não lembrava muito bem dos seus sentimentos, começou a pensar – e até mesmo a acreditar – que tinha sido feliz. A Zelda das fotos tinha seios firmes e um sorriso encantador, não lembrava em nada a mulher rabugenta e entediante que havia se tornado mais tarde. Ele mesmo parecia contente entre os amigos, tinha um riso modesto e franco, um rosto descontraído, parecia um homem realizado. O futuro, por outro lado, era apenas um conjunto de rotinas maçantes que intensificavam sua sensação de vazio e solidão. Um dia recordou os argumentos de sua mulher sobre a morte, e se pegou pensando que, afinal, ela podia ter razão. 
Morrer não seria mais fácil que se cercar de atividades cada vez mais complexas para conservar a vida?

Daí para a tentativa de suicídio foi apenas um passo. Se Macaulay ainda está vivo é porque ressuscitar uma pessoa agora é tão banal quanto acender um fósforo. Depois de muita terapia e alguns órgãos substituídos, ele acabou consentindo em tentar de novo. O problema, como lhe explicaram os psicanalistas, era sua tendência a idealizar o passado como um estado paradisíaco, sem conflitos e contrariedades. Parece que Macaulay fazia agora com o passado o que no passado fizera com o futuro.

Foi também na terapia que ele descobriu uma forma criativa de lidar com essa tendência. Começou a escrever romances de época, que logo cativaram a todos pela riqueza de detalhes históricos. No futuro, familiarizados com os comandos por movimento de íris, todos adoram ouvir uma boa história sobre controles remotos. O próprio exemplar de Macaulay valeria uma fortuna se ele quisesse vender. Mas ele garante que nunca se desfará do objeto. Depois de duas ressurreições, ele começou a acreditar que certas coisas têm, para além de sua função imediata, um imensurável valor sentimental.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A menina 2D

Quando a menina do espelho começou a conversar comigo, meu tio já tinha sofrido aquela crise, e fui esperta o bastante para não falar dela para ninguém. Eu não estava nem um pouco a fim de passar semanas numa clínica, depois viver entupida de comprimidos, e ser tratada feito criança por todo mundo. Aliás, eu estava entrando na adolescência e tudo que eu queria era ser tratada como adulta. Falar sobre a menina do espelho, contar que ela me dava uns conselhos maneiros — embora às vezes meio radicais — seria praticamente pedir que me internassem. Eu acabaria que nem o pobre do tio Sélton, que agora não tinha emprego e ficava falando que era artista. Por isso eu trancava a porta para conversar com ela, e não contei nem para a Josilene, minha melhor amiga, que a menina do espelho existia.

O que mais me impressionava nem era que ela morasse no espelho, mas que ela acertasse todas as suas previsões. Ela foi a primeira a falar que minha mãe ia acabar pedindo o divórcio e que minha irmã ia voltar do exterior ainda mais pobre que antes. Também previu que meu pai ia ficar muito solitário depois da separação, e acabaria gostando bem mais de mim. Eu ficava súper contente em ter uma amiga daquelas, e morria de vontade de contar para as meninas, mas aí eu lembrava do tio Sélton, e tratava de ficar calada. Eu adorava minha amiga secreta, e o silêncio era o sacrifício que eu tinha que fazer para a gente continuar se vendo.

Depois eu fui crescendo, e comecei a consultá-la para coisas cada vez mais sérias. Quando fiz dezoito anos, por exemplo, todas as minhas amigas já tinham silicone, e eu sentia que também já estava precisando. O que não tinha crescido até os dezoito, provavelmente não ia crescer depois. Meu pai, naquela época, andava um amor comigo, adorava me encontrar nas baladas e ser apresentado às minhas amigas. Claro que elas não queriam nada com ele, mas eu falava que elas o achavam uma gracinha, um coroa muito fofo, e ele ficava todo feliz, rindo que nem sambista de televisão. Para minha surpresa, ele não se opôs à cirurgia, apenas perguntou se dava para parcelar no cartão de crédito. Minha mãe é que ficou contrariada, e começou a jogar uma conversa pessimista para cima de mim. Tentou me fazer medo, disse que o silicone podia estourar, que ia prejudicar a produção de leite, que podia tirar a sensibilidade da pele. Hoje sei que era tudo mentira, mas na época eu fiquei assustada, e fui correndo consultar a menina do espelho. Como sempre, ela foi bastante lúcida. Explicou que minha mãe estava era morrendo de inveja, porque meu pai pagava tudo para mim, e não queria nem conversar com ela. Falou que os meninos me dariam muito mais atenção, e isso ia botar minha auto-estima lá nas alturas. Não demorei a perceber que ela tinha toda razão. Coloquei apenas trezentos mililitros em cada seio, mas isso bastou para que mil garotos pedissem meu telefone, e falassem de mim o tempo todo, como se eu fosse uma dessas mulheres do Big Brother. Todo dia eu agradecia à menina do espelho, e ela ficava me elogiando e me olhando com tanta atenção que até fiquei especulando se ela não era bi. Mas eu não tinha que me preocupar com isso, afinal, ela morava no espelho, e de lá de dentro não dava nem para me passar a mão.

Mas foi só eu pensar nisso que comecei a sentir pena dela. A coitada ficava enclausurada naquele espelho, não podia ir para a balada, não pegava ninguém, não conversava com ninguém a não ser comigo. Sinceramente, eu morria de dó. Às vezes, no meio de uma balada ou de uma festinha, eu ia para o banheiro e contava para ela tudo que estava acontecendo, só para ela se distrair um pouco. De início ela gostava, me ouvia com atenção, e fazia observações interessantes sobre as minhas aventuras. Mas, depois de um tempo, ela começou a falar umas coisas estranhas, ficava me depreciando, enxergava defeito em tudo. Quando eu contava que algum carinha estava me cantando, ela perguntava:

— Você ainda gosta disso? Não está cansada desses joguinhos?

Quando eu contava alguma briguinha com a minha mãe, ela apelava:
— Você ainda não percebeu que ela quer você saia de casa? Você já não está muito velha para morar com a mamãe?

Eu achei que ela estava ficando muito amarga, por isso nem comentei quando conheci o Fernando. Ele era mais velho, tinha um Audi, e trabalhava de executivo numa importadora. Eu não sabia direito o que era executivo, mas nem quis saber quando vi o apartamento lindo que ele tinha no Leblon. Era um quarto-e-sala súper espaçoso. No quarto tinha cama de casal, e no banheiro tinha até bidê. No dia que a gente transou no sofá, eu fique pensando: “Nossa, como essa sala é grande! Se eu morasse aqui, com certeza poderia trazer minhas amigas para ver um filme.” Quando a gente transou na cama de casal, eu estiquei bem os braços e fiquei passando as mãos no lençol. Ele deve ter achado que eu estava gozando, mas eu estava medindo a largura da cama, e pensando que dava tranqüilo para a gente dormir ali sem incomodar um ao outro. Minha alegria culminou no dia que dei uma desculpa para ir à cozinha, e abri a geladeira dele. Meu Deus, tinha tudo que eu adorava comer: palmito, tomate seco, mussarela de búfala! Desde aquele dia foi como se eu estivesse apaixonada, porque comecei a pensar só no Fernando, a sonhar com o Fernando, e a tentar fazer absolutamente tudo para agradar o Fernando — incluindo engolir um bocado de sêmen. Não importava se ele não fosse o homem da minha vida, ele era a porta para o apartamento da minha vida!

Mas não fui boba de contar essas coisas para a menina do espelho, porque, do jeito que ela andava amarga, com certeza ia me encher de críticas. Ia falar que eu não amava o Fernando e via nele só uma solução para sair da casa da minha mãe. Ia inventar que ele também não me amava, e estava apenas obcecado pelo prazer que eu lhe dava na cama. Para evitar essas discussões, passei a só cumprimentar a menina do espelho, e quando ela me perguntava alguma coisa mais íntima, eu dava uma desculpa, e virava as costas. Eu já era uma adulta, já estava na hora de tomar minhas decisões sozinha.

Fiquei um tempão sem falar com ela, e não contei como foi o meu casamento, nem como minha mãe ficou contente quando eu me mudei. Não confessei minha enorme decepção com a minha mãe, que nem queria saber se eu estava feliz, só estava louca que eu achasse outro lugar para morar. Não falei das inúmeras piadas que minha irmã ficou fazendo, só porque o Fernando era quase vinte anos mais velho que eu. E também enfrentei calada o preconceito das minhas amigas, que diziam que, se elas quisessem coroa, era só estalar o dedo que vinham duzentos. Mas eu não me ofendia com esse papo. Elas até podiam pegar coroa, mas quantos queriam levá-las para morar com eles? Eram uma burras, umas fúteis, não sabiam fazer um ravióli ao molho de funghi ou um petit gateau com sorvete. Tinham nascido para aqueles burros malhados que só serviam para motobóis. Mas não comentei nada disso com a menina do espelho, porque eu sabia que ela ia me chamar de arrogante, e talvez até insinuar que eu não era assim tão diferente das minhas amigas.

Fui perdendo o contato com elas, e comecei a gostar de literatura. Passei a ler uns livros antigos e demorados que não tinham nada a ver com vampiros ou lobisomens. Fui descobrindo um monte de mulheres que tinham vivido os mesmos problemas que eu, e aquilo me dava um tremendo alívio. Ler era bem mais seguro que falar com o espelho, porque eu podia ver os problemas dos outros, sem que ninguém visse os meus. Acho que esqueci completamente a menina do espelho, de tão fascinada que eu ficava com aquelas estórias de jovens que queriam casar, e casadas que queriam ter amantes.

Nessa época, o Fernando adorava a minha comida, e falava que eu não precisava trabalhar, que eu devia ficar só cozinhando e cuidando da casa. Se eu aceitava essa idéia, era porque queria ler cada vez mais, e depois fazer uma faculdade de psicologia ou letras. Mas, às vezes, a leitura ficava chata, e eu comecei a entrar na internet, e puxar assunto com estrangeiros. Pensei que o Fernando nunca ia ter ciúme de estrangeiro, porque um cara que estivesse do outro lado do mar podia até me cantar, mas não poderia nem me encostar a mão. Eu só conversava com eles para praticar meu inglês e pedir dicas de livros. O problema é que pintavam uns caras meio depravados, que ficavam pedindo para eu fazer umas coisas indecentes. Uns queriam que eu ficasse só de calcinha, outros pediam que eu me masturbasse na frente da câmera. Claro que eu me recusava. Eu confesso que algumas propostas chegaram a me excitar, mas eu não estava nem um pouco a fim de entrar em crise com o Fernando, e ter que voltar a morar com minha mãe. Quando eles vinham com aquele papo estranho, eu desconversava e começava a falar sobre livros. Foi assim que eu fiquei sabendo da Jane Austen, da Emily Brönte, e de outras mulheres que pareciam bem mais infelizes que eu. Depois alguém me indicou umas autoras iranianas, e quando li os livros delas, aí sim, me senti satisfeitíssima com a vida! Meu Deus, como tinha mulher infeliz no mundo. E eu tinha aquele apartamento arrumadinho, morava no Leblon, ia ao cinema todo sábado. Só sentia falta de sair para dançar, mas isso eu resolvia colocando uma música bem alta para arrumar a casa. Comecei a me sentir bem comigo mesma, e até pensei em voltar a falar com a menina do espelho, só para ter uma companhia.

Mas eu não devia ter pensado nisso, porque umas coisas muito estranhas começaram a acontecer. Já no dia seguinte recebi uns emails de caras da internet, agradecendo minha perfórmance, dizendo que eu tinha arrasado, que tinha sido incrível para eles, e não sei mais o quê. Eu não fazia idéia do que eles estavam falando, e achei que eles tinham pirado de ficar tanto tempo na internet. Mas toda semana chegavam mais emails, pedindo para eu fazer mais, alguns oferecendo até dinheiro, e fiquei feito louca perguntando o que estava acontecendo, de que diabo eles estavam falando. Quando um cara me contou, eu simplesmente não acreditei! Lógico que não era eu! Ou eles estavam me confundindo ou era uma puta alucinação coletiva! Mas logo me bateu uma intuição de que a menina do espelho podia ter alguma coisa a ver com aquilo, e fui correndo no banheiro tirar satisfação com ela.

— Pode aparecer, e me explicar tudo que está acontecendo — eu mandei.

O que mais me impressionou foi que ela admitiu tudo sem a menor vergonha. Eu fiquei súper chocada, não conhecia esse lado pervertido dela.

— Coitados desses moleques — ela alegou. — Eles são uns nerdes, nunca devem ter visto uma mulher pelada. Quê que custa mostrar um pouquinho para eles?
— Ah, você é louca, é?! Você vai me dizer que usou a minha imagem para ficar se exibindo pela internet?!
— Lamento, minha filha, mas a imagem que eu tenho é essa. Não posso usar outra.

Mas ela falou aquilo de um jeito que quase me matou. Uma espécie de satisfação maldosa, misturada com escárnio. Eu percebi que ela tinha prazer em se passar por outra, em poder ser uma completa fraude, sem levar culpa nenhuma por isso. Me subiu uma raiva tão grande que, se ela não estivesse fechada dentro daquele espelho, eu tinha enfiado a mão na cara dela! Foi aí que eu lembrei que ela morava dentro do espelho. Como é que a safada tinha entrado na minha webcam? Perguntei na mesma hora, e tive que engolir um papo suspeito.

— Eu não moro só no espelho — ela falou. — Eu posso me projetar em qualquer superfície plana que produza uma imagem dotada de sentido. Os monitores são superfícies planas, e produzem imagens que... bem, você entendeu, não é?

Mas eu não tinha entendido direito. Que papo era aquele? Superfície plana, imagem dotada de sentido?! Além de safada, a putinha agora era filósofa?!

Fiquei meio transtornada, e passei dias sem usar o computador. Meu medo era que o Fernando descobrisse alguma coisa, e achasse que a culpa era minha. Passei a ter ódio da menina do espelho. Não era justo que essa loucura toda pudesse acontecer. Ela podia aparecer em qualquer tela por aí, e todo mundo ia achar que era eu. Comecei a ficar súper tensa quando pensava nisso, e passei a buscar mais e mais sexo com o Fernando, para me aliviar, e para ver se eu parava de pensar no assunto. Aliás, depois que a gente se casou, ele já não fazia muito, e aquilo às vezes me incomodava. Não que eu gostasse de sexo, porque eu não gostava, mas era uma das poucas coisas que me deixavam com uma sensação de dever cumprido. Eu não trabalhava, não estudava, passava os dias lendo e acessando a internet. Quando fazíamos sexo, eu pensava: “Pelo menos isso eu sei fazer. Pelo menos consigo satisfazer meu marido.” Mas o problema é que ele já não estava querendo, e aquilo acabava me deixando nervosa. Um dia insinuei que de vez em quando ele bem que podia tomar um viagra. Eu não conhecia tanto os homens, e não sabia que isso era suicídio. A partir daquele dia, tudo mudou no nosso casamento. O Fernando passou a ser ciumento, me ligava toda hora, perguntava onde eu estava. Quando a gente ia numa festa, ele ficava me olhando de longe, depois falava que eu tinha olhado para fulano ou ciclano. Claro que era tudo loucura da cabeça dele, e eu ficava puta de ter que me explicar mil vezes, falar que eu o amava, pedir perdão o tempo todo pelo papo do viagra. Fui ficando cansada dele, e me sentindo cada vez mais incompreendida. Agora eu não tinha nem a menina do espelho para me entender. Mas o pior era que eu nem podia me separar. O apartamento era dele, se eu pedisse o divórcio, ia ter que voltar a morar com minha mãe. Tudo era aceitável, menos conviver de novo com minha mãe, principalmente agora que ela tinha arrumado um namorado mais novo e estava matando a família de vergonha. O jeito era tentar um emprego, e eu sabia que nunca ia conseguir um bom salário, porque não tinha faculdade. Mas era a única alternativa que me restava. Talvez juntando por uns dez anos, eu conseguisse comprar um apartamento, e ter uma vida só minha. Eu queria esquecer o Fernando, com aquele ciúme doentio, e minha mãe, com aquele egoísmo, sei lá, doentio também. Aí entrei na internet e comecei a me inscrever nos saites de emprego. De repente, quem apareceu no meu monitor e começou a falar comigo? Sim, ela mesma, a garota de espelho. Lembrei daquele papo sobre superfície plana, e falei que era melhor começar a chamá-la de menina 2D.

— É mais apropriado mesmo — ela falou. — E mais contemporâneo também.

Não sei de onde a putinha tirava essas palavras. Eu ainda estava meio irada com ela, mas não estava muito a fim de brigar. Minha situação era deprimente, e talvez ela pudesse ser de alguma ajuda. E acho que ela adivinhou esse pensamento, porque do nada resolveu me passar o endereço de alguns saites.

— Entra neste aqui ó: “stripweb.com” E neste: “meancams.com”.

Quando entrei nos saites, me arrependi na hora de ter dado papo para aquela putinha. Era só mais uma das idéias pervertidas que ela tinha.

— Você acha que eu sou que nem você, sua louca?! Acha que eu vou ficar fazendo strip pela internet, só para ganhar dinheiro?

— Não é só strip — ela falou. — Tem que se masturbar também.

Eu nem respondi. Desliguei o computador e fui para a cama chorar. Meu casamento era um fracasso, eu não tinha uma carreira, e minha única amiga, que me conhecia desde criança, estava sugerindo que eu me tornasse uma espécie de prostituta. Chorei sem parar, depois fiz uma maquiagem meio trash, para o Fernando não descobrir que eu passei a tarde chorando. Mas justamente nessa hora ele me ligou, para falar que tinha um lance complicado rolando lá no trabalho, e ele ia chegar súper tarde. Aí voltei para o computador e olhei de novo aqueles saites. Meu marido bem que estava merecendo um chifrezinho. Ele não me amava, não ligava nem um pouco para meu estado emocional. Quando vi que uma menina podia ganhar uns trezentos por dia, só fazendo aquelas bobagens, eu quase caí para trás. Meu Deus, trezentos reais por dia! Em quanto tempo daria para comprar um apartamento?! Mas eu não podia fazer aquelas coisas, não tinha nada a ver comigo. Mostrar os peitos e me masturbar na frente da câmera?... Eu nem gostava de me masturbar! Foi então que me veio aquela idéia incrível. A idéia redentora, a idéia perfeita, que me mostrava como eu podia me aproveitar completamente daquela situação. Eu não era safada, não gostava daquelas indecências, mas ela gostava. Se eu entrasse no saite, e ficasse só conversando com os meninos, aposto que a menina 2D ia se excitar, e fazer um monte de loucuras! Ela podia se dar ao luxo desses descaramentos, porque a culpa sempre cairia em cima de mim. Mas a culpa agora era uma transferência bancária para a minha conta corrente. Vasculhei os saites, e peguei todas as informações. No dia seguinte, abri a conta. Mas continuo com a minha política, e não faço nada daquelas bobagens. Eu só entro no saite, e fico conversando sobre Jane Austen e mulheres iranianas. E ela faz o que gosta de fazer. Voltamos a ser amigas, e nunca estive tão feliz por conhecê-la. Acho que a menina 2D finalmente se tornou, para mim, uma imagem dotada de sentido.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Desordem

Eu odeio bagunça. Meu quarto nunca foi bagunçado, pelo contrário, eu achava tudo que eu queria em questão de segundos. Minha mãe é que pensava que estava tudo bagunçado, ela não percebia que as coisas estavam absolutamente no lugar, porque eu podia lembrar onde as tinha colocado e pegá-las na hora que eu quisesse. Acho que a única pessoa que entendia isso era o Paulinho. Ele ficava à vontade na minha bagunça, não mexia em nada, sentava, deitava, às vezes pegava um livro, mas depois colocava onde tinha encontrado. Eu lembro perfeitamente quando comecei a amá-lo, porque eu tinha levado um fora do Alessandro, e estava percebendo que o Caio também não queria nada comigo. Mas o Paulinho estava sempre lá em casa, a gente conversava sobre coisas legais, como seriados de televisão e livros de vampiro, e eu comecei a pensar que tudo seria mais fácil se eu amasse o Paulinho, se eu conseguisse ver um charme especial naquele jeito calado, naquela cara impassível que ele mantinha diante tudo, até das contrariedades. Fui aos poucos criando uma estratégia para me aproximar, até que um dia estávamos vendo televisão, e eu falei:

— Estou numa fase ótima para homem, tenho recebido um monte de cantada.
— É mesmo?
— Só você ainda não me cantou. Você se segura, bem, hem! Ha, ha, ha!
— É mesmo? — Ele era meio lerdo, mas pelo menos chegou a rir. Aí eu mandei essa:
— Me dá uma cantada só para eu ver como é o seu estilo.
— Como assim?
— Me dá uma cantada, seu tonto!
— Ah... Você é linda, ué!

Ele não era muito original, mas naquela hora eu percebi claramente que ele gostava de mim. Sei lá, a cantada saiu com um jeito tão sincero. Depois ele ficou me olhando sem graça, rindo de nervoso, e eu fiz aquela carinha de quem quer ser beijada, para facilitar para ele, mas como ele nem se mexeu, eu o agarrei e o beijei com força, com decisão, acho que até com raiva — não dele, mas de Deus, que não me mandava um homem melhor. Depois o beijo foi engrenando, e ficou até gostoso. Tenho certeza que ele queria me beijar naquele dia, mas ele era muito tímido, aos poucos fui entendendo isso melhor.


Aí veio aquela fase em que eu não pensava mais no Caio nem no Alessandro, porque eu ficava horas com o Paulo no meu quarto, beijando e curtindo aquela fissurinha. Quando ele tentava alguma coisa, tipo colocar a mão dentro da minha calça, eu falava: — Você ouviu esse barulho? Acho que minha mãe está subindo — mas não havia barulho nenhum, eu só queria me exercitar nessa arte de aceitar e rejeitar que eu estava descobrindo ser o maior e mais verdadeiro prazer feminino. O Paulo era bem comportado e não tentava nada muito ousado, e às vezes eu me perguntava se eu gostava realmente dele ou se ele não era só um estágio que eu estava fazendo antes de encontrar o homem da minha vida.

Mas a minha bagunça continuava a mesma, e a minha mãe já falava que não ia entrar nunca mais no meu quarto. É difícil explicar como eu achava chato tirar as coisas do lugar e colocar dentro de uma gaveta, do armário ou em cima da estante. Me parecia que eu estava traindo a minha própria ordem, e aderindo a um esquema externo que não tinha nada a ver comigo. Acho que foi por isso que passei a gostar bastante do Paulinho. Ele nunca reclamava da minha bagunça, pelo contrário, ficava lá, deitado no meio das minhas coisas jogadas, às vezes olhando para o teto, às vezes rabiscando num dos meus cadernos velhos. Ele integrava a minha bagunça e eu gostava disso. Aos poucos fui deixando que ele fizesse cada vez mais coisa, liberei os seios, deixei ele enfiar a mão na minha calcinha, e até comecei a explorar o corpo dele. No dia que eu o chupei, e o deixei gozar na minha boca, fiquei pensando que ele nem devia imaginar o quanto meu amor tinha a ver com aquele quarto desordenado onde a gente ficava. Mas em vez de falar sobre isso, eu acabei dizendo que o amava, e eu mesma não entendi por que a voz saiu fraca e meio trêmula. Ele me olhou com um olhar meio vazio, e eu achei que ele ia falar “eu também”, mas ele disse: — É mesmo?

Acho que foi a partir desse dia que começou a acontecer uma coisa estranha: eu não achava mais nada no meu quarto. Devia ser culpa da minha mãe, porque, quando eu era obrigada a guardar alguma coisa, eu não lembrava onde tinha guardado. Era um ato artificial, que não tinha partido de mim, e minha mente não registrava. Mas depois eu já não achava nem o que eu tinha deixado no chão. E também comecei a me incomodar com a sujeira que acumulava de baixo da cama, e passei a sentir com nitidez o cheiro do Paulo no lençol, e aquilo me desagradava, porque significava que ele passava semanas sem ser lavado. E o tonto do Paulinho continuava no centro daquela bagunça, olhando para o teto, rabiscando folhas velhas, costas de envelopes usados, ou até mesmo dormindo, como se fosse um gato de estimação e tivesse o direito de dormir em qualquer canto da casa.


Um dia eu estava procurando uma caneta, e como não a encontrava, perguntei ao Paulinho se ele não se incomodava com aquela bagunça toda. Ele respondeu que sabia que eu lembrava onde eu tinha deixado as coisas, e confessei que eu já não lembrava mais, que talvez precisasse aderir à maldita ordem da minha mãe para encontrar a minha própria tralha. Achei que ele ia me apoiar e dizer que aquilo ia passar ou qualquer coisa assim, mas ele disse: — É mesmo? — e foi aí que eu percebi que alguma coisa estava muito errada com o Paulinho. Não era certo ele me aceitar daquele jeito. Ele tinha que, pelo menos, tentar me transformar numa pessoa mais organizada, mais disciplinada, mais capaz de alguma atitude. Ele me aceitava do jeito que eu era, mas eu queria ser outra pessoa, por isso não aceitava que ele me aceitasse. Fiquei meio confusa, não sabia direito o que dizer, e acabei por pedir que ele fosse embora. Ele fez uma carinha meio triste, e eu pensei: “pelo menos isso! Pelo menos ele é capaz de fazer outra cara!” Naquele dia coloquei algumas coisas dentro do armário, depois pensei em ligar para o Paulinho e pedir desculpa, mas senti que eu podia segurar a vontade até o dia seguinte.

E no dia seguinte eu já me sentia melhor, porque vi que eu era capaz de colocar certa ordem nos meus impulsos. O Paulinho voltou com a sua cara habitual, e, no maior cinismo, me perguntou se eu estava mais calma. Fiquei com tanto ódio que respondi: — Claro que eu estou mais calma — e ainda o beijei com uma ternura fingida. Comecei a ver que eu podia não apenas controlar meus impulsos, mas decidir se eu ia demonstrá-los ou não. Fiquei mais introvertida, passei a pensar um pouco antes de falar, e pedia licença ao Paulinho para arrumar a cama e guardar minhas roupas. Então foi ficando mais claro para mim algo que eu já sabia, mas não gostava de admitir. Eu nunca havia amado o Paulinho, eu apenas me acostumara com ele. O homem da minha vida devia ser mais organizado, mais ativo, e ao mesmo tempo mais estrategista. Pensava antes de falar, e falava as coisas certas. Sabia impressionar uma mulher. Naquela mesma semana decidi que ia terminar com o Paulinho e, quando chegou sexta-feira, eu me arrumei toda e me maquiei como uma putinha, e o levei para dançar. Fiquei dançando e flertando com outros homens na frente dele, e aquilo me divertia, e me fazia sentir poderosa, mas acho que o sonso nem estava ligando. Fiz a mesma coisa outras semanas, depois ainda dei em cima de um amigo dele, e quando o cara finalmente soltou uma indireta, eu fui correndo contar para o Paulinho.

— Sabe quem fica jogando indireta para mim? Seu amigo, o Arsênio. Ele fica falando que eu sou bonita demais para ter um namorado só.

Pensei que ele ia dizer “é mesmo?”, mas ele disse: — Ah, o Arsênio, grande figura!

Então comecei a pensar que eu mesma ia ter que terminar, não ia ter outro jeito. Mas pensar é fácil, difícil é fazer. Eu não conseguia achar uma ocasião apropriada. Sempre que eu ia abordar o assunto, acontecia alguma coisa que me mostrava que o Paulinho, afinal, era um carinha legal, tranqüilo, sem muita neura. Além disso, ele estava começando a demorar mais para gozar, e até dava para gozar com ele. Às vezes eu lembrava do Caio e do Alessandro, e ficava com medo que os outros homens me desprezassem, e eu não conseguisse outro namorado. Aquilo me irritava, e eu gritava com o Paulinho, e o chamava de sonso, de preguiçoso, de mané. Ele abaixava a cabeça e começava a assobiar, e aquilo me fazia subir um ódio tão grande que eu quase vomitava. Mas depois comecei a ver que esse ódio podia se transformar em energia para arrumar o quarto. No início era só uma desculpa para mandar o Paulinho embora, mas depois fui descobrindo a delicadeza do ato de dobrar, de acomodar as coisas na gaveta, o prazer de varrer, de esticar o lençol. Descobri como era gostoso e gratificante ficar de quatro, e puxar a sujeita de baixo da cama. E tirar todas as teias de aranha, nos cantinhos mais imprevisíveis, me fazia sentir vitoriosa, feliz comigo mesma — era quase como ter um orgasmo.


Uma nova amizade começou a surgir entre mim e mamãe, e ela me apresentou à cozinha, com seus odores variados e ruídos metálicos. Fazer compras também era gostoso, apertar os legumes, sentir sua consistência, cheirar as frutas, perscrutar datas de validade. Fui descobrindo um mundo que não dependia do Paulinho, um mundo mais permanente e silencioso, que ele nem devia saber que existia. Passei a pensar menos nele, e vi que terminar não podia ser tão difícil. Eu era muito nova, provavelmente ainda teria uma porção de namorados antes de casar. Estava me acostumando a essa idéia quando resolvi trocar os móveis de lugar, só para tirar a poeira que acumulava em baixo, e me surpreendi com uma das folhas rabiscadas pelo Paulinho. Tentei ler a caligrafia canhestra dele, e descobri um poeminha todo bonitinho, falando de um cara que se sente à vontade no quarto desarrumado da namorada. Ainda lembro os versos finais, que diziam:


E ela nem deve suspeitar
Que seu mundo fora de lugar
Já tem um canto reservado
No sonho improvisado
Que eu sonhei para nós dois


Acho que fiquei vermelha, porque senti um calor forte no meu peito, que subia para o rosto e enchia meu olho de água. Me deu vontade de ligar para todas as minhas amigas e contar que o Paulinho tinha escrito um poema para mim, mas naquela tarde só consegui falar com a Flávia, a Vanessa, a Cláudia e a Samira. Elas disseram que seus namorados também escreviam para elas, e fiquei pensando: “Meu Deus, como elas são idiotas! Aposto que eles apenas copiam frases feitas de cartões de papelaria. Não são como o Paulinho, que escreveu uma coisa que tem tudo a ver comigo!”

Depois pensei em fazer um blogue para mostrar para todo mundo o poema lindo que meu namorado tinha escrito. Liguei para o celular do Paulinho e falei: — Vai para casa agora, e me liga! — E quando ele me ligou, eu mandei:


— Sabe o que achei aqui em casa?
— O quê?
— Olha só, vou ler os primeiros versos:


A ordem que eu procuro
Não está dentro de uma gaveta.
Não está fechada no escuro,
Morta, impassível, obsoleta.


Senti que ele ficou um pouco emocionado, porque fez um longo silêncio, e fiquei contente por tirar um silêncio daqueles do Paulinho. Eu ria por dentro, queria encontrar uma forma de dizer que o amava, mas não daquele jeito que eu tinha falado da outra vez. Só que não consegui encontrar uma frase melhor, e soltei: — Eu te amo, sabia? — E quando ele falou — Puxa, amor, eu também! — senti que eu já podia morrer, porque fiquei feliz feito uma passarinha! Depois eu perguntei se ele ia passar lá em casa, e ele falou — Olha, amor, pode ser amanhã? — mas eu nem liguei, porque eu queria mesmo fazer uma surpresa para ele.


No dia seguinte, acordei cedo, e comecei a desarrumar o quarto. Tirei as roupas do armário, joguei no chão e na cama. Depois fiz o mesmo com a cômoda. Deixei folhas e cadernos espalhados, para o caso de ele querer escrever, e ainda comi biscoito e fiz o farelo cair em cima do teclado do computador. Assim que ele chegou, eu o arrastei para o quarto, e acho que ele entendeu que aquilo era o meu poema para ele, aquilo era a minha declaração de amor, porque ele falou — Nossa! Que bagunça! — e me beijou de um jeito que nunca tinha beijado. Depois me jogou na cama, e enquanto tirava a minha roupa, eu fiquei pensando que era uma pena eu não poder colocar certas coisas no blogue.


Depois a gente ficou deitado de conchinha, e eu estranhei quando ele falou — Amor, lembra do Arsênio? — porque aquilo não era hora para pensar no Arsênio. Mas aí ele contou uma coisa que me deixou ainda mais surpresa. O Arsênio tinha uma banda, e os dois tinham feito uma música juntos. O Paulinho escreveu a letra e o outro pôs os acordes. Claro que eu fiquei encantada, e me deu vontade de falar outra vez que eu o amava, mas eu me segurei porque já tinha falado no dia anterior; não queria que o Paulinho ficasse se achando o cara. Depois, quando fui ao banheiro, fiquei pensando que eu era uma tonta. O Paulinho tinha essa veia artística, e eu nem tinha percebido, eu achava que ele era só um banana mesmo. Voltei para cama ainda mais entusiasmada, com vontade de ser todinha dele, de deixar ele fazer tudo que quisesse, até me amarrar e gozar na minha cara, mas ele já tinha colocado a roupa, e começou a me falar sobre o dia e o lugar onde a banda ia tocar. Eu achei legal, e pensei: “amanhã ele vai estar com mais vontade”. Mas quando ele foi embora, eu ainda estava sentindo uma energia vibrante, e me tranquei no quarto e me masturbei, pela primeira vez pensando no Paulinho. Imaginei que ele estava em cima do palco cantando e apontando para mim na hora que falasse “amor” ou “princesa”, depois fiquei especulando se eu devia contar para ele que eu às vezes me masturbava, depois não pensei em mais nada, porque fiquei exausta.


No dia do chou, o Paulinho não cantou, e a gente ficou só numa mesa vendo o Arsênio e a banda tocar. Fiquei me sentindo meio mal, porque eu já tinha jogado charme para cima do Arsênio, antes de saber que o Paulinho era um artista. Depois chegaram as minhas amigas e começaram a lhe dar os parabéns, e eu pensei: “Ah, Meu Deus, agora essas putinhas vão dar em cima dele!” Lembrei aquele dia que eu tinha levado o Paulo para uma boate e flertado com vários caras, e fiquei pensando que eu merecia mesmo que ele paquerasse outras meninas, talvez ele ia até me trair e eu ia ter que agüentar. Fiquei tão mal que nem entendi direito a música. Falava de amor de uma forma meio exagerada, e fiquei um pouco decepcionada, pensando que o Paulinho devia ser meio falso, porque me amar daquele jeito eu sei que ele não amava. Mas não liguei muito para isso. Se ele fizesse sucesso, para mim estava bom. No final da apresentação, o Arsênio chamou a gente para tirar foto com ele, e fiquei feliz como uma doida. Abracei os dois e tive até vontade de beijar os dois, mas claro que beijei só o Paulinho para não dar vexame. Depois o Paulo me levou em casa, e fiquei de novo me sentindo mal, pensando que eu era meio putinha, e ele era tão atencioso, tão gracinha comigo. Ele não merecia a namorada que tinha.


Na semana seguinte a minha situação piorou, porque o Paulinho me mandou por email um linque para um conto dele que tinha saído num saite de literatura. Levei um susto, eu nem sabia que ele escrevia. Não perguntem se estava bom — aliás, acho que não estava, não se parecia com nenhum texto da Anne Rice — mas eu adorei assim mesmo, porque percebi que o assunto mais uma vez era eu. Era a estória de um cara que adorava a namorada, bagunceira e destrambelhada, e de como ela tinha transformado a vida dele. Na mesma hora coloquei um linque para o conto no meu blogue, depois mandei um email para todas as minhas amigas. No dia seguinte, quando encontrei com elas na faculdade, todas falaram: “ainda não li, não tive tempo”, e me subiu aquele ódio mortal que me deixa até sem ar. Cheguei em casa e li o conto mais umas dez vezes, depois mandei emails para mais uns vinte amigos, divulgando o saite. Alguém ia ter que ler aquilo, nem que fosse à força.

Mas quando o Paulinho chegou lá em casa, fiquei me sentindo estranha. Lembrei que eu tinha pensado várias vezes em terminar, e tinha até achado que não o amava. E no entanto ele parecia realmente gostar de mim: tinha escrito o poema, falava súper bem de mim no continho. Fiquei pensando se ele não merecia uma namorada melhor, que o amasse de verdade, que tivesse algum talento como ele. O Paulinho era calado e meio sonso, mas quando fazia alguma coisa, era algo que valia a pena ver. Eu era destrambelhada, e sonsa também, mas da minha bagunça não saía nada que merecesse atenção. Eu era só uma burra mesmo! E o Paulinho estranhou que eu estivesse meio distante, e perguntou o que eu tinha, mas eu não consegui responder. Apenas levantei e comecei a arrumar o quarto. Quando ele desceu, eu fechei a porta e deixei o choro aflorar. Era triste ver que eu não o merecia. Ele era inteligente, carinhoso, fiel, eu não tinha metade dessas qualidades. Depois lavei o rosto e voltei para a cama. Mas tive que trocar o lençol, porque ainda estava com o cheiro do Paulinho. Quando o levei para a área de serviço, minha mãe me viu, e fez um elogio, tipo “olha como ela está ficando organizada”, e, não sei por quê, me deu vontade de voltar para o quarto e chorar de novo. Mas, assim que entrei no quarto, decidi escrever uma lista de tudo que eu ia fazer no dia seguinte: passar roupas, arrumar o quarto, começar a economizar para comprar um cachorro. Fiquei pensando que nome colocar no cachorro, e isso me ajudou a dormir.

No dia seguinte, fui fazendo algumas coisas da lista, e antes de acabar já fiquei louca para escrever outra. De noite escrevi mais uma, na outra noite também, depois chegou o fim de semana e eu deixei prontas as listas de segunda e terça-feira. Na segunda comprei uma agenda, na terça passei tudo a limpo, desde a primeira lista, porque eu queria registrar tudo que eu tinha feito. Assim fui descobrindo que eu adorava programar o meu dia. Agora eu arrumava o quarto, não porque gostasse de dobrar as roupas e colocá-las no lugar, mas porque era um item a cumprir da minha lista. Resolvi escrever tudo que eu tinha que fazer, até o fim do mês, e de repente apareceu o item “Terminar com o Paulinho”. Ele foi lá em casa nesse dia, e eu tinha guardado a agenda no fundo de uma gaveta. Fiquei pensando como era engraçado que eu já tivesse até data para terminar, e ele não fazia idéia, não podia nem suspeitar. Quando chegou o dia 27 de março de 2009, eu liguei para o Paulinho e disse: “A gente precisa conversar”. Ele perguntou: “Pode ser amanhã?”, e eu falei: “Não, não pode.”

Naquele mesmo dia a gente conversou, e eu achei que não ia sentir emoção nenhuma, porque já estava tudo programado. Mas ele ficou me olhando com aquela carinha de desorientado, e de repente eu chorei. Depois eu achei que precisava pedir desculpa, e falei:

— Desculpa, Paulo. Eu ainda não consigo ser totalmente organizada.


— Mas por que é que você cismou com esse negócio de ser organizada? — Ele perguntou, quase gritando. E eu pensei na minha mãe, pensei no Caio e no Alessandro, pensei no poema do Paulinho, e chorei de novo. Depois voltei para o quarto, e pensei que assim que eu começasse a fazer uma lista ia me sentir melhor.


Mas eu só fui me sentir melhor no dia seguinte, porque contei o dinheiro que estava juntando e vi que já quase dava para um cachorro. Depois eu estava descendo a rua, e o Caio passou de carro. Ele me ofereceu uma carona, e falou que tinha visto no meu Orkut que eu tinha voltado a ser solteira. Na mesma hora eu lembrei que o Caio era um traste. Ele era galinha, já tinha ficado com todas as minhas amigas, fumava maconha, era burro, tinha tentado direito, mas só passara em publicidade. Para piorar, ele estava namorando a Cátia, uma conhecida minha. Percebi de repente que um cara daqueles jamais ia me fazer sentir culpada. Qualquer besteira que eu fizesse, ele poderia fazer pior. A Cátia ia me desculpar, mas eu precisava tentar. Assim que eu cheguei na faculdade pensei em abrir a agenda e escrever umas coisas que eu estava pensando. Mas depois concluí que era melhor guardar aquilo apenas na memória. Tem coisa que é melhor ninguém saber que foi planejada.


No outro dia passei pelo mesmo lugar. No outro também, e persisti nessa tática até o Caio aparecer e me dar outra carona. Quando eu desci do carro, me inclinei diante da porta para me despedir, e percebi que ele meteu os olhos nos meus peitos. Era um traste mesmo, não havia como defendê-lo. Se, alguns dias depois, a gente acabou se beijando, não era porque eu gostava dele, mas só porque eu precisava mostrar para a Cátia que ela estava namorando um cretino. Depois que os dois terminaram, ele veio com um papo dengoso para cima de mim, e eu percebi que ele nem gostava de mim, nem sabia direito quem eu era, só queria alguém porque não agüentava ficar sozinho. Aí fiquei com ele sem culpa nenhuma, porque eu também já tinha visto que eu não gostava dele. E hoje eu sei que é melhor assim. Não quero passar por toda aquela humilhação que eu passei com o Paulinho. Se qualquer dia eu trair o Caio, não vou ficar me sentindo péssima. Aliás, eu nem penso muito sobre isso. Agora eu tenho minha agenda, e consigo fazer tudo que eu programo. No fim do ano vou comprar um cocker spaniel. E o poema do Paulinho, eu ainda não tive coragem de jogar fora. Às vezes eu releio aqueles versos, e me dá saudade de alguma coisa que eu não consigo compreender. Alguma coisa que parece que eu nunca mais vou ter, tipo a infância. Mas eu já tenho data para acabar com isso. Deixa chegar o dia trinta e um de maio, que esse maldito poeminha nunca mais vai existir! E eu vou continuar sendo organizada. Vou continuar fiel à minha agenda. Pelo menos nela eu sei que eu posso confiar.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Como me tornei o marido de Heloísa

Eu amo Heloísa, e nisso definitivamente não sou original. Qualquer homem entre dezoito e cinqüenta anos pode amá-la sem dificuldade, pricipalmente se notar que ela não consegue levantar a voz — nem quando quer. Loira, alta, de olhos claros, sua beleza seria trivial, não fosse por um nariz exagerado e duas narinas pontiagudas que parecem vírgulas de cabeça para baixo. Aliás acho que foi esse nariz que a fez pensar, por um tempo, que poderia ser uma espécie de atriz cult. Embora formada em direito, ela acabou grudando nesse pessoal metido a artista, tão comum aqui no Rio, e que no fundo não passa de um bando de desempregados. Mas, quando eles apareceram com a idéia de um curta-metragem, ela ficou tão entusiasmada que acabei concordando em usar nossa poupança conjunta para bancar parte do filme. Dava gosto vê-la tão animada, e o roteiro, no fim das contas, não era dos piores. O protagonista descobre que sua mulher já havia trabalhado em filmes pornôs. Ele passa por alguns conflitos antes de perdoá-la, e chega a traí-la com a cunhada, numa vingança desesperada e inútil, tentando atenuar seu enorme sentimento de humilhação. Acho que gostei do filme porque ele me ajudou a compreender essa estranha adoração que eu sentia por Heloísa. Mesmo que ela me traísse, mesmo que me humilhasse marcantemente, eu me sentia impotente para deixá-la. As outras mulheres que passaram pela minha vida eram feias, ou de uma beleza banal, ou meio burras. Heloísa não era inteligente, mas tinha certo dom para fazer frases espirituosas que fascinavam a todos. Além disso, era divertida e capaz de me surpreender; e eu, que sou um homem rotineiro e pacato, preciso de alguém assim para me animar um pouco.

O curta-metragem acabou não dando muito certo, mas rendeu a Heloísa o convite para uma peça — que também teríamos de ajudar a produzir. Eu a incentivei bastante, pois naquela época cheguei mesmo a acreditar que ela queria ser atriz. Mas, assim que começou a ensaiar, ela não pôde deixar de perceber que o teatro exigia dedicação, autodomínio e alguma outra coisa misteriosa, que talvez seja o que chamam de talento. Isso a desanimou bastante, e ela acabou por providenciar, algumas semanas antes da estréia, uma sinusite, uma bronquite alérgica e não sei que outra "ite" que a salvaram de um vexame maior. Um dia cheguei em casa mais cedo e a surpreendi chorando no nosso quarto, encolhida na borda da cama, na posição fetal. Eu nunca entendi se ela chorava por ter perdido uma boa oportunidade ou por se dar conta que não tinha nascido para o palco. Mas fiquei feliz em estar lá para consolá-la. Sua carreira de atriz me causava certa aflição que eu já não estava conseguindo controlar. Quase chorei com ela, mas por dentro eu sentia alívio, e até certa alegria. Foi a primeira vez que pensei que, apesar de tanto tempo juntos, ainda sentíamos os acontecimentos de forma bem diferente.

Depois desse episódio, Heloísa foi ficando mais quieta, mais conformada com seu trabalho administrativo na Justiça Federal. Comecei a pensar que talvez fosse o momento de falar num filho. Mas esperei que a iniciativa viesse dela, porque, em todos os filmes que eu tinha visto, era a mulher que falava nessas coisas, e o homem até fingia contrariar, nem que fosse só para manter a pose. No entanto ela acabou não falando em filho, e, em vez disso, começou a escrever certos textos confusos que ela chamava de contos. Passou a frenqüentar um evento ainda mais confuso, chamado Clube da Leitura, e eu, com aquele receio incômodo de perdê-la, comecei a ir com ela. Nunca entendi direito como o evento funcionava — as regras eram bem complexas — mas os textos dela eram lidos em voz alta, e, quando tudo acabava, sempre aparecia alguém para dizer que tinha gostado deles. Mesmo sem compreender, eu ficava feliz, contagiado pela felicidade dela. Acho que passei a ser assim desde que a conheci: meu riso sempre vinha por tabela, provocado pelo riso dela, que por sua vez era provocado por coisas cada vez mais imprevisíveis. Quando ela não estava por perto, eu não sabia direito o que sentir, e falava a primeira banalidade que me viesse à cabeça. Talvez por isso eu tenha concordado tão prontamente quando falaram num livro de contos que seria rateado pelos membros do clube. Nossa poupança foi ficando cada vez menor, e o filho dos meus sonhos foi envelhecendo, aprendeu a falar, e já me chamava para jogar playstation, antes de passar pelo ventre da mãe.

O livro teve um lançamento bacana, com um bifê de comida árabe, e muita gente pedindo autógrafo. Heloísa me fez uma dedicatória bonita, dizendo que não conseguiria escrever uma linha sem meu amor e minha compreensão. Fiquei tão feliz que não liguei a mínima para a falta de retorno financeiro. Durante algumas semanas me senti muito próximo dela, cheguei a ler alguns de seus textos, e até desejei ter mais dinheiro para bancar seus sonhos. Comecei a fantasiar que, se ela se tornasse escritora, seria uma mãe mais dedicada, talvez lesse poesia para os filhos, talvez lhes ensinasse francês, que ela sabia um pouco, mas não falava na minha frente por insegurança. Imaginei uma Heloisinha delicada, introspectiva, cercada de livros e diários, falando em francês com a mère os segredinhos que desejasse esconder do pai. Nessa época ela andava escrevendo uns contos de mulheres tresloucadas que queriam abandonar o emprego e o marido, e nem sequer sabiam por quê — nem sequer tinham amantes. Claro que eu não compreendia nada daquilo, e logo comecei a sugerir, sorrateiramente, que ela escrevesse sobre filhos. Talvez fosse interessante abordar o tema de uma mulher que a princípio tem certo receio da maternidade, mas aos poucos acaba sendo conquistada pela fragilidade e delicadeza de seu bebê.

Fiquei surpreso e feliz quando vi que minha sugestão fazia efeito. Ela começou a escrever sobre um homem que adorava a vida de solteiro, a independência, a liberdade, e ainda tinha vontade de conhecer Las Vegas. Esse pobre diabo descobre que tem um filho com uma mulher do seu passado, e o moleque já passa dos oito anos quando os dois se conhecem. Então vão surgindo uma série de situações engraçadas nas quais ele vai aprendendo a aceitar e a gostar do filho. Pode não ser uma idéia original, mas eu vibrei a cada página. Não entendo de literatura, e não saberia dizer se estava bem escrito, mas eu ficava pensando que Heloísa, afinal, começava a aceitar a idéia da maternidade. Acreditei que aquele menino atrevido e inteligente, com que eu tanto sonhava, estaria agora morando também nos sonhos dela. Daí até ele mudar para o nosso apartamento seria só um pulo.

Adorei a forma como o livro terminava. Os dois tinham uma discussão, e o menino demonstrava uma astúcia fora do comum. O homem acabava por dizer: "Você é mesmo bem parecido com seu pai, hem!", tentando salvar sua autoestima. "Então você conhece meu pai?", o menino perguntava. E só nesse momento o protagonista e o leitor percebiam que a mulher ainda não tinha contado a verdade para o filho. O sujeito descobre que tem a chance de sumir, de desaparecer da vida dos dois, e o menino ia se lembrar dele apenas como o amigo da mamãe que o ensinou a jogar damas. Mas, após alguma hesitação, o personagem responde: "Sim, eu conheço seu pai. Graças a você, eu o estou conhecendo cada vez melhor", e depois disso fica implícito que ele decidiu aceitar definitivamente o papel de pai.

Poucas vezes chorei com um livro, e durante muito tempo esse choro me fez acreditar que Heloísa era mesmo uma ótima escritora. Foi com enorme prazer que a ajudei na revisão, depois imprimimos várias cópias e começamos a mandar para as editoras. Ela parecia muito feliz, e pensei que seria apenas questão de semanas até ela me dizer que parou com os anticoncepcionais. Mas essa notícia acabou não vindo. Em vez disso, ela passou a perguntar sempre: "Você olhou a correspondência? Nada ainda?" Depois ela se fechava no quarto, ou ficava horas absorta, olhando para o nada, e mexendo nos cabelos. Eu sentia sua angústia por tabela, e me perguntava o que estaria faltando. Afinal, a estória era bem pensada, comovente. O que mais as editoras queriam? Essa aflição não demorou a passar. Logo começaram a chegar as respostas.

"Concluída a avaliação do original em referência, informamos que sua publicação não foi indicada, ainda que apresente evidentes qualidades."

ou

"Apesar de apresentar qualidades literárias", etc, etc. "Os originais serão destruídos conforme as normas da editora", etc.

Todas as cartas diziam mais ou menos a mesma coisa. Heloísa as lia, depois as passava para mim, com um olhar resignado: "Não foi dessa vez, amor".

Às vezes tentava ser mais leve: "Não tem jeito, não não dá para enganar profissionais". Mas eu sentia o quanto ela estava desapontada e intimamente revoltada. Notei que ela nunca falava a respeito, e procurei também evitar comentários. Imaginei que lhe seria mais fácil esquecer se não conversássemos sobre o assunto. De vez em quando ela dizia alguma coisa como "Esse pessoal só está publicando estórias sobre prostitutas", e eu dizia: "É verdade, é uma vergonha". Um dia ela brincou: "Se eu me tornasse garota de programa e fizesse um diário, aposto que eles publicariam!" Eu respondi "Por que você não inventa um diário? Os escritores costumam ter uma imaginação bem fértil". Mas ela desconversou, e senti que alguma coisa nesse argumento não lhe agradava. Ao mesmo tempo fiquei pensando: será que ela seria capaz disso? Seria capaz de fazer programa só para escrever um livro? Logo concluí que não. Minha mulher podia ser excêntrica, mas quebrar as regras não era seu forte.

Algum tempo depois ela já não falava sobre livros, e fiquei pensando que de repente a fase de escritora tinha sido como a de atriz: uma dessas aventuras de juventude que vivemos apenas para ter o que contar aos netos. A idéia de um filho voltou a me seduzir, principalmente quando vi que meus amigos já estavam com seus pequenos Tiagos e Daniéis. Passei a convidá-los incessantemente à nossa casa, e adorava quando eles perguntavam à Heloísa: "E vocês, quando vão encomendar um?" Mas eu notei que ela andava meio desanimada, calada, sisuda. Fiquei com medo de ela inventar uma nova moda; talvez agora quisesse aprendar a cavalgar, ou pilotar avião. Felizmente, nada disso se passou. Acho que Heloísa estava apenas envelhecendo.

Uma noite eu voltava de uma sinuca  com amigos, e me surpreendi com uma cena realmente trágica. Heloísa tinha tirado seus vestidos do armário, e os estava picotando, reduzindo-os a tiras e retalhos, formando uma massa caótica de tecido pelo quarto. Fiquei pasmo. Eram vestidos caros, que imitavam cortes dos anos cinqüenta, com golas e botões enormes. Ela pagava metade do seu salário num vestido daqueles, por que agora estava se empenhando em destruí-los? Num primeiro momento suspeitei que estivesse pensando numa carreira de estilista. Mas notei que ela ria nervosamente, jovaga as tiras para o alto, chegou a atirar algumas pela janela, "Está gostando, amor? Está vendo como eu mudei?" Depois teve um brusco ataque de choro. Soluçava, sacudindo os ombros e a cabeça, chorando com o corpo inteiro. Percebi imediatamente que se tratava de um ataque nervoso. Abracei-a com carinho, procurei tranqüilizá-la. Encarnei rapidamente o papel de marido compreensivo que tanto me agradava.

— Não fique assim, linda. Eu te amo. Apenas me diga o que está acontecendo. Me deixe cuidar de você.
— São esses vestidos! — Ela gritou. — Nunca mais vou usar esses malditos vestidos!

Obviamente não entendi, e deduzi que era caso para um psiquiatra, ou pelo menos um analista. Fiquei ali, abraçado nela, pensando em como eu era bom, amável, paciente. Talvez ela estivesse descobrindo que também não queria ser escritora. Queria apenas alguma profissão que justificasse o uso daqueles vestidos exóticos. Ou talvez começasse a perceber que era uma pessoa medíocre, sem nenhum talento fora do normal. Mesmo que fosse escritora ou atriz, teria uma carreira discreta, sem nada que destacasse seu nome. Seu nariz excêntrico não bastava para lhe dar uma personalidade autêntica.

Em contrapartida, eu descobria em mim algo realmente descomunal. Era essa capacidade para adorar Heloísa, para amá-la mesmo no fracasso, para servi-la sem compreendê-la. O que antes me parecia uma fraqueza agora eu via claramente como um talento raro e especial. Qualquer homem no meu lugar teria pensado imediatamente em divórcio. Mas eu estava disposto a cuidar de Heloísa, a pagar um tratamento, a perder os amigos, e encarar a reprovação da minha família se fosse preciso. Eu aceitava — e acho que até desejava — que ela fosse uma espécie de destino elevado e inevitável ao qual eu me entregaria com a bravura dos guerreiros e a convicção dos mártires.

Depois de algumas semanas ela começou com a análise. Os remédios eram apenas ansiolíticos fracos, e isso me surpreendeu menos que o fato de ela passar a usar terninhos de poliéster. Ainda mais estranha foi a notícia de que ia fazer uma plástica no nariz. Eu nunca gostei realmente daquele nariz, mas gostava de ser um homem capaz de aceitar uma mulher com nariz feio. Conversei com ela, falei que não precisava renunciar à sua originalidade para se encaixar em nenhum padrão de beleza. Eu a aceitava do jeito que era, eu a amava. Não previ que eu me decepcionaria tanto com sua resposta.
— Renunciar à minha originalidade? Que originalidade?

De fato ela parou com suas pequenas extravagâncias. Não falou mais em livros, não comprou vestidos estranhos. Quando chegava do trabalho, ligava a televisão, conversava sobre previdência privada, planos de saúde, drenagem linfática, férias em Cabo Frio. Alguma coisa me incomodava naquilo tudo, mas eu não sabia o que era. Às vezes ficava contente, planejava com ela um cruzeiro até Buenos Aires, uma viagem à Itália, ou alguma outra coisa que nossos amigos já tinham feito. Mas depois ia para o quarto, ficava olhando para o teto, me perguntando o que estava errado afinal. Por que eu me sentia tão vazio?

Um dia arrisquei abordar o assunto. Estávamos num barzinho, a bebida me deu coragem para falar sobre algo real.

— O que está acontecendo, amor? Você não sente que está faltando alguma coisa?
— Eu sei o que você quer dizer — ela falou num tom resignado, sem nenhuma emoção. — Se você quiser, eu paro com os anticoncepcionais.

Fiquei muito assutado, não com essa resposta, mas com a súbita percepção de aquilo parecia não me importar.
— Claro, amor. Por que não? Minha mãe sempre me cobra um neto.
— A minha também...

E em poucos meses tínhamos a notícia para nossas mães. Elas pareceram realmente contentes, ao contrário de Heloísa, que continuava meio amuada, e agora estava até mais pálida — mas eu não arriscava comentar, porque talvez fosse algum efeito da plástica. Quando comecei a falar sobre nomes, ela disse que ainda era muito cedo. Eu sabia que era cedo, mas queria preencher aquele silêncio incômodo que tinha se instalado entre nós. Decidi não contar de imediato para meus amigos. A coisa estava ainda muito recente, e eu queria esperar pelo menos um ultrassom. Hoje me pergunto se essa decisão não foi fruto de algum pressentimento. Quando a levei ao hospital, naquela noite confusa, de alguma forma eu já sabia o que estava acontecendo. Quanto mais eu lhe dizia que era só um sangramento, uma coisa normal em qualquer gravidez, mais eu me preparava para a notícia fatídica. Estranhei que ela não parecesse triste, e isso até me incomodou. "Meu Deus, será que é isso que ela quer?", me perguntei, assutado. Mas evitei pensar no assunto. Sempre preferi enxergá-la com outros olhos.

Estávamos no quarto quando o médico chegou com a notícia. Vi que ela ficou com os olhos marejados, e ansiei que ficássemos a sós. O médico disse ainda algumas palavras de praxe, "Você é jovem, saudável, poderá tentar muitas outras vezes". Ela levou as mãos ao rosto, e eu assumi um ar grave, logrando esconder que não sabia como agir. Mas quando o homem saiu do quarto, tudo foi ficando mais claro e confortável. Abracei Heloísa, falei de como ela era importante para mim, mais importante que um filho, mais importante que qualquer outra coisa que eu pudesse encontrar na vida. E logo fui me sentindo mais à vontade, sabendo como agir e o que dizer. As palavras vinham quase espontaneamente à minha cabeça, e depois que as pronunciava, eu ficava satisfeito com a sonoridade, a elegância. Eu aprovava minha índole generosa, minha paixão constante e elevada. Acho que foi nesse dia que percebi com mais clareza que não era propriamente Heloísa que eu amava, era esse homem generoso e compreensivo que eu havia me tornado. Um marido compassivo, protetor, fiel. Quando chegamos em casa, levei-a para a cama no colo, e fiquei pensando: meu Deus, que homem eu construí! Que homem eu sou! Nessa noite percebi que a situação que sempre havia durado entre nós agora tinha se invertido. Eu não a amava mais em primeiro lugar. Amava primeiro a mim mesmo, depois a Heloísa, pelo homem que ela me permitia ser. A partir desse dia me senti preenchido por uma paz quase sobrenatural. Nunca mais temi que ela me traísse, nem que me deixasse. Essas coisas pareciam simplemente não me atingir. Também não a atormentei com a idéia de filhos. O posto de marido passou a me satisfazer completamente.

Poucas semanas depois, ela voltou à idéia dos livros. Mas agora queria escrever uma estória infantil. Obviamente não contrariei, dei todo o apoio necessário. Cheguei a dizer que bancarei a edição do livro, se as editoras não se interessarem. Quem sabe ela não faça sucesso com um público menos exigente? Quanto a mim, estou feliz com minha descoberta. Agora vejo que meu amor é algo muito maior que eu tinha pensado — é como uma matriz que justifica e define minha vida. A decisão de ficar com ela de certa forma me deixa imune às adversidades, imune até à própria Heloísa. Não temo mais o que ela possa fazer. Tenho a satisfação de ser algo que ela ainda não conseguiu alcançar, algo que eu mesmo construí. Um dia talvez ela se dê conta disso, e quem sabe resolva escrever um livro sobre mim. Por hora me contento em ser meu próprio personagem.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Estranha São Paulo

Sinceramente, eu gosto de São Paulo. Muitos reclamam da chuva, mas há ótimos restaurantes, as pessoas são educadas, as garotas de programa são carinhosas e bem humoradas, apesar do sotaque caipira. Porém confesso que não lembro o que vim fazer aqui. Eu queria estar na Cidade do México, para fugir do calor torturante do Rio. E de repente acordo neste apartamento em São Paulo, descalço, todo amarrotado, embrulhado numa roupa de ontem. Da janela vejo prédios pequenos e carros velhos, certamente não estou nos Jardins, nem no Sumaré. Noto que os outros que dormiram na sala também começam a acordar. Aguardo alguns segundos, e pergunto:
— Quem me trouxe para cá?

Eles se olham intrigados, as duas garotas riem. São morenas de olhos pequenos, mas estranhamente corpulentas para descendentes de japoneses. Faço outras perguntas que só causam mais risadas. Então surge do corredor uma figura conhecida. É o Maurício, já está calçado, certamente acordou há mais tempo.
— Não fale em português, eles não entendem com facilidade.
O que será que ele quer dizer?, me pergunto um segundo antes de começar a entender. Volto para a janela e vejo uma placa no prédio em frente: "Ferreteria Reina - Accessorios para muebles". Começo a recordar algumas cenas, o pequeno restaurante em Santa Fe, depois a cervejaria na Plaza de Toros. Uma canção em espanhol me vêm à cabeça, mas provavelmente não a ouvi no bar, onde só se tocava música americana. Deve ter sido no avião. Maurício me dá um café, e o sabor me confirma a localização geográfica. Mas eu preferia estar no hotel, assim poderia tomar um banho e me recompor mais à vontade. Fico olhando para as duas morenas, estão abotoando as calças e as sandálias. São bonitas, apesar das sobrancelhas grossas. Conversam sobre alguma coisa engraçada, que não chego a compreender. Eu falo espanhol, mas não o entendo bem, principalmente quando pronunciado assim, entre risos e onomatopéias. Noto que uma delas é mais agitada e falante. A outra é introspectiva e serena. Penso que seria bom se essa fosse a minha.
— Qué harás esta noche? — Pergunto depois de alguns rodeios.
— Encontraré a mi marido, ya lo sabes. — Ela responde quase sem me olhar, e percebo que é uma cretina. Me dá vontade de sair daquele lugar. O cara que acordou com elas está num canto lendo jornal. Talvez seja o marido da metida, e tenha dormido na sala só para garantir que não rolasse nada. No táxi penso em perguntar ao Maurício quem eram aquelas pessoas, mas ele zombaria de mim, e espalharia a história para metade do Rio de Janeiro. Procuro falar de outra coisa:
— Eu queria comprar aquele rum venezuelano que tomei na sua casa.
— Vai ser difícil encontrar. A Venezuela está meio brigada com a Colômbia.
— Ah, odeio política.
— Por falar nisso, comprei ingressos para uma luta de boxe.
— Boxe? Mas eu queria ver uma tourada.
— Não tem tourada de noite.
— Mas não está amanhecendo?
— Você está ruim mesmo, hem. Está anoitecendo. Você deve estar confundindo por causa do fuso-horário.

Vejo que isso torna ainda mais difícil entender como fui parar naquele apartamento. Aceito humildemente o boxe, e deixo de pensar no assunto. Aposto no americano só para ser do contra. Na platéia, deduzo que o negro seja o americano, e começo a torcer por ele. Chega uma hora em que ele dá uma porrada tão bem dada no queixo do branco, que este fica com os braços caídos e os olhos arregalados, como se estivesse tentando lembrar o que foi fazer ali. Quando ele finalmente cai, vibro e digo que sabia que a noite era do negão. Maurício me olha intrigado:
— Então por que você apostou no branco?

Depois me bate aquela fome e lembro que a última vez que almocei foi em outro meridiano. Maurício está cansado e diz que vai para o hotel. Mas, quando entro no táxi, fico me perguntando quando foi minha última trepada. Se foi há mais de dois dias, já posso procurar uma bela garota de programa. Explico a situação ao taxista, que parece compreender, e me leva a um bar cheio de morenas com cabelo amarelo. Mas escolho uma beleza local, com cabelos negros e pequenos olhos de índia. Ela me lembra Catalina, minha agente em Bogotá. Se meus livros venderem bem na Colômbia, pretendo comprar uma jóia cara e levar Catalina para jantar. Meus amigos dizem que sou muito antiquado com as mulheres. Eles são pobres, não fazem idéia de como essa tática funciona.

A garota compete comigo pelas arepas. Depois me explica por que devemos ir a um hotel mais afastado, distante da agitação do centro. Não estou seguro de ter entendido, mas posso ir a qualquer lugar que aceite cartão de crédito. No quarto noto que ela tem seios meio ovalados, tipo os da ex-mulher do Gustavo. Então recordo que transei há pouco tempo com essa mulher, pode ter sido há menos de dois dias. Mas percebo, aliviado, que isso não prejudicará minha performance. O corpo jovem da garota já acionou minha virilidade. Enquanto abro a camisinha, ela mantém minha ereção com os lábios e as mãos. É uma mulher compreensiva, deve ter mais que os vinte anos que aparenta. Quando começa a me cavalgar, fico pensando em Catalina, se ainda está casada, se é católica, se isso fará muita diferença. Depois trocamos de posição e reparo mais na garota. Ela geme delicadamente, tem uma doçura jovial que a profissão ainda não estragou. Fecho os olhos e me entrego ao prazer seguro das batidas. Depois saio de cima dela e me enrosco nos cobertores. Volto a pensar em Catalina, e recordo uma coisa que ela me disse quando nos conhecemos. "Detesto llegar al fin de tus libros. Me gustaria leerlos para siempre." Sei que é mentira, as mulheres odeiam meus livros. Mas eu saco um pequeno estojo aveludado e digo que é só uma lembrança, que quero que ela pense mais em mim que em meus personagens. Ela o abre avidamente, e seus olhos brilham como os pequenos diamantes incrustrados na platina. Seguro firme uma de suas mãos. "He esperado tanto para decírtelo, e ahora no me salem las palabras." Assim vou passando da imaginação ao sonho. Catalina me acaricia, suas mãos são leves e frescas como uma brisa marinha. Mas logo se tornam quentes e ásperas, e um buzinaço vindo da rua me faz abrir os olhos e dar de cara com o sol. A garota não está no quarto, pego minhas roupas e as apalpo em busca do passaporte. Felizmente, tudo em ordem. Pela janela, vejo que o hotel fica ao lado de um cemitério. Me divirto pensando que, se eu escrevesse isso, todos tentariam — e conseguiriam — enxergar alguma bobagem simbólica neste trecho.

A água do chuveiro demora um pouco a se aquecer, mas saio do banho renovado, lamentando apenas ter de vestir uma camisa que já começa a feder. Penso em ligar para o Maurício, deve haver ao menos uma tourada marcada para hoje. Encontro, amassado no bolso de trás da calça, o cartão de um hotel em Rosales. Quando lhe passam a ligação, ele me parece ligeiramente desesperado:
— Onde você está?
— Estou num hotelzinho em Las Mártires, em frente ao cemitério.
— Que diabo você está fazendo aí? Por que não veio para o hotel que reservamos?
Agora lembro vagamente de uma conversa sobre um hotel com vista para um braço dos Andes.
— Bem... encontrei uma garota...
— Tudo bem! Me dá o endereço, passo aí para te pegar.
— Você sabe de alguma tourada?
— Depois a gente fala sobre tourada. Sua palestra começa em quinze minutos.

Que diabo será isso de Palestra? Só pode ser idéia da Catalina. Essa gente formada em Letras realmente acredita em palestras. Mas talvez haja tempo para o café. Fico um pouco decepcionado quando me servem os mesmos bolinhos que comi no jantar de ontem. Peço ovos mexidos, e ouço, do saguão, um espanhol arrastado, cheio de vogais abertas. É o Maurício que já me descobriu. Está com uma cara afetada, como se realmente se importasse com um atraso de cinco minutos. No táxi, tento pensar em algo para dizer. Não quero contar pela milésima vez que meus pais queriam que eu fosse advogado, e que depois, quando ganhei o Jaburu, mudaram de idéia e me deram um apartamento na zona sul. De repente chegamos a uma sala escura e sem mobília, com um pé direito monumental. Deduzo ser a coxia de um anfiteatro. Entre ecos, reconheço a voz de Catalina. Parece estar dizendo que meu último livro vendeu cem mil exemplares na Colômbia. Será que ouvi direito?! Quando verei esse dinheiro? Um sujeito de terno claro me indica um corredor. Chego ao palco e sento à mesa que deve ser para mim, pois é a única vazia. As palmas me ensurdecem por alguns segundos, mas logo cessam, ao contrário de uma luz ofuscante que jogam na minha cara. Sinto que é hora de dizer alguma coisa, quero fazer um gracejo qualquer, mas nada me vem à cabeça. A luz decai lentamente e começo a ver os olhinhos pequenos que me fitam ansiosos; parecem realmente esperar que eu diga alguma coisa.
— Minha mãe queria que eu fosse advogado — começo, sem muita convicção.
— Quando encaro uma platéia desse tamanho, fico me perguntando por que a contrariei.

Todos riem, e rio com eles. Ainda não sei o que dizer, mas estou relaxado, talvez até feliz. De repente, como um relâmpago, lembro perfeitamente o que aconteceu quando cheguei a Bogotá. Tudo começou numa livraria, onde uma jovem me perguntou se eu era aquele escritor brasileiro que tinha dado uma entrevista ao Espectador. Sim, eu sou aquele escritor brasileiro. Nunca conseguir ser outra coisa, e agora tenho cem mil testemunhas. Olho para Catalina, ela está aflita, certamente já percebeu que não preparei nada para dizer. Começo a ter uma idéia mais definida da jóia que vou lhe dar. Cem mil exemplares! Será que dá para uma casa em Cartagena? Não, melhor levar Catalina para o Rio. Lá ela não conhece ninguém, dependerá totalmente de mim. Será apenas preciso fazê-la desistir do marido, mas agora isso me parece mais fácil que nunca.