quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Ele nunca disse a ninguém


Ele ficou chocado quando fez a descoberta. Estava na cama, o corpo nu recebia uma brisa suave de maio. A namorada tinha ido ao banheiro, não gostava de ficar com sêmen entre as pernas. Quando voltou, deitou a cabeça sobre o peito dele, disse as palavras carinhosas que costumava dizer nessas horas. Falou sobre casamento, sobre a felicidade de ter encontrado a pessoa certa. Ele se perguntava se devia lhe contar a novidade — a coisa acabava de se revelar, clara e serena como um reflexo de lua. Mas sua namorada era muito bonita, ele temia perdê-la. E o pior é que ela se culparia por tudo. Buscaria o motivo nalguma parte do seu corpo, na barriga, nas mínimas estrias, na cor do cabelo — talvez no estranho cheiro de rosas queimadas que ela exalava principalmente depois do sexo. Ela era mulher, não podia evitar o prazer misterioso da culpa. E por isso mesmo ele resolveu se calar. Não queria correr o risco de torná-la infeliz como uma divorciada. Se nunca mais pensasse no assunto, talvez a revelação passasse despercebida. Talvez desistisse de se mostrar, e bateria em outra porta, como essas pessoas que vêm pedir para campanhas de caridade. E, de fato, protegido pela rotina, Paulo conseguiu esquecer o assunto. Sua namorada não percebeu, e ele nunca disse a ela, nem a ninguém, que não gostava de sexo.

domingo, 30 de outubro de 2011

Canção erótica de segunda-feira


Um dia eu me abri com um amigo, e ele disse que sou obcecado por seios. Não acho que isso seja verdade. Não gosto de seios em geral, mas apenas dos seios lindos. E não tenho a menor necessidade de sair por aí atrás de várias mulheres para ver e tocar milhares de peitos anônimos. Acho que me bastariam os seios de uma esposa, se ela entendesse e aceitasse minha necessidade de venerá-los. Eu quero apenas uma mulher compreensiva, compassiva, silenciosa — e com seios lindos. Não me parece que isso seja uma obsessão.

Numa manhã como esta, ela poderia me levar até a porta, e se despedir de uma maneira especial. Encostando-se na parede, abriria levemente a blusa, e me deixaria ver por um momento a beleza recôndita do seu busto maduro. O volume seria macio e consistente; os mamilos, não muito escuros, se destacariam na pele homogênea, suavemente vibrante. Eu me aproximaria devagar, e os tocaria delicadamente, ora com as costas das mãos, esboçando uma carícia, ora contornando o volume com os dedos, intuindo por trás da carne morna a pulsação oscilante e aflita do coração feminino. Se nesse momento uníssemos os rostos, ela confirmaria pelo tato a sinceridade do meu deleite. Talvez arriscássemos algumas palavras, mas eu logo resgataria o silêncio, aumentando a pressão do toque, causando uma tensão branda, que ela chegaria a sentir como um sutilíssimo princípio de dor. Se ela deixasse escapar um suspiro longo e doce, quase obsceno, aposto que depois se envergonharia, temendo que eu o tomasse por fingimento ou exagero sentimental. Mas eu lhe confortaria com um olhar aliado, e ela se recomporia sem dificuldade, despedindo-se em seguida, carinhosamente, como uma mãe dedicada, que sabe estar transformando um menino em homem. Duvido que, depois de um momento desses, eu ainda me recusasse a ser feliz.

Mas agora que pensei sobre isso, me ocorreu que a saudade daqueles seios talvez me paralisasse o trabalho. Sou um homem fraco, e admito a possibilidade de lançar o olhar sobre minhas colegas, buscando o sucedâneo do busto que teria deixado em casa. Então pode ser que eu descobrisse uma mulher mais jovem, que escondesse por trás da blusa a promessa de uma delícia semelhante à dos meus jogos domésticos. Meus olhos treinados não teriam dificuldade em expressar o convite indecoroso. E assim como nos sonhos sabemos exatamente o que alguém está pensando, ela compreenderia meus planos secretos com uma precisão e uma rapidez absurdas. Um sorriso e um aceno silenciosos expressariam seu consentimento, e lhe bastariam alguns minutos para pensar numa desculpa que justificasse sua ida ao almoxarifado. Eu chegaria em seguida, logrando disfarçar a aflição; ao contrário dela, que soltaria os cabelos e os sacudiria ligeiramente, repetindo um gesto que teria aprendido nas telenovelas. Sua juventude justificaria esses arroubos, e eu não seria louco de reclamar com alguém que me compreendesse tão completamente. Um botão depois do outro, ela me revelaria o viço da sua pele, e eu me surpreenderia ao descobrir que aqueles gestos delicados não seriam exclusividade da minha mulher. Talvez por isso eu me desculpasse por sucumbir tão imediatamente a um prazer que também deveria sentir apenas com ela. Em seguida viria o toque, a leve pressão, o acolhimento. Ela recostaria a cabeça no meu peito, e seus cabelos perfumados me provariam que o abraço não seria mera alucinação. Porém, quando eu me afastasse, olharia covardemente para baixo, para que algo ficasse incompleto, e justificasse nossa retomada no dia seguinte, assim como no próximo, e também no posterior, até que nosso encontro acabasse por se tornar um ritual diário. Eu nunca entenderia por que ela se virava de costas para abotoar a blusa, mas quando ela se voltasse para mim, eu captaria a mensagem silenciosa no seu olhar, intimando-me a sair antes dela, para evitar suspeitas. Porém, depois de voltarmos a nossas mesas, ela permaneceria tão discreta e dissimulada que eu me sentiria torturado, e quase desejaria revelar nosso segredo.

A partir desse dia, acho que uma pequena confusão se instalaria na minha vida: eu tocaria os seios da minha mulher pensando nos da outra; e os seios da outra, pensando nos da minha mulher. Esse intercâmbio teria a vantagem de instalar uma familiaridade reconfortante no ritual do escritório, ao passo que temperaria com certa ousadia o ritual doméstico. Seria como se eu vivesse cada encontro duas vezes, e meu prazer dobraria de intensidade, sem que cada uma das mulheres precisasse repetir um único dos seus gestos.

Para que nada perturbasse minha felicidade, eu me privaria de filhos, porque sei que eles atentam gravemente contra o contorno e a consistência dos seios maternos. E, se algum dia eu encontrasse aquele amigo, aposto que ele me cobriria de perguntas indiscretas. Mas eu não diria uma única palavra sobre meus rituais secretos; sei que ele é o tipo de homem que não sabe distinguir entre um sonho e uma obsessão. Mas eu sei muito bem; e sei que elas também saberão. Elas serão compreensivas, compassivas, silenciosas, e terão seios lindos. Definitivamente lindos.



segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Amor sobre rodas



Intervenção de Ronaldo Brito Roque
em conto de Guilherme Preger


O que me fascinou em Nina não foi a juventude macia de sua pele ou a candura de seu rosto branco. Acho que me apaixonei por ela na primeira vez que a vi chegar de motocicleta, de vestido e salto alto. Também estava de capacete, mas antes de ver seu rosto eu já estava caído por ela. Era algo completamente inusitado ver uma mulher que, ao dirigir uma moto, não abria mão da sua maneira própria de se vestir e de ser. Aliás, Nina andava de moto de forma tão natural, que o veículo parecia fazer parte de sua personalidade.

Fiquei encantado com a facilidade e a tranquilidade do início de nosso namoro. Embora ela fosse vinte anos mais nova, e espiritualmente muito diferente, nos demos bem desde o começo. Nina era uma moça leve, de corpo e alma, e me transmitia essa leveza. Ela só se impacientava dentro de um automóvel. Eu tinha, é claro, um carro, mas Nina não suportava andar de carona em meio ao trânsito da cidade. Reclamava muito quando ficávamos engarrafados. Ela chegou a sugerir que eu tirasse carteira de motociclista, mas fui radicalmente contra, antes por pânico que por desejo de contrariá-la. Aliás, nunca fui uma pessoa teimosa ou orgulhosa, tampouco Nina, e isto era algo que tínhamos em comum.

Mas não houve jeito, e para o bom desenrolar de nosso relacionamento, comecei a andar na garupa da sua motocicleta. Ela tinha um capacete extra, que pertencera ao ex-namorado, mas me recusei a usá-lo. Comprei meu próprio capacete e lá ia eu, sentado na garupa, agarrado à minha namorada. Aliás, muito agarrado. Eu sentia simplesmente pavor. Nina, no entanto, era excelente motociclista e passeava pelo trânsito não exatamente com prudência, mas com extrema desenvoltura, como se só tivesse feito isso a vida inteira. Cortava os carros, como um surfista corta uma onda, e esta é certamente a melhor imagem que encontro para descrevê-la dirigindo. Nina simplesmente navegava no caótico trânsito da cidade, sem nunca demonstrar preocupação. Ela dizia que um anjo da guarda a protegia, pois nunca se acidentara, e eu me abraçava a ela para que pudéssemos caber juntos de baixo de sua asa.

Em breve, já pegávamos as estradas para viagens maiores e comecei a sentir certo prazer em viajar exposto ao vento ou a chuva, deslizando pelo asfalto quente, veloz e voluptuosamente pelas curvas do campo ou da serra. Meu medo foi se dissolvendo lentamente, e nosso relacionamento ia, por assim dizer, a favor do vento. Sempre me questionei da razão de Nina, tendo tantos amigos motoqueiros, ter se aproximado justamente por um homem que tivera tanto medo de motocicleta.

Talvez porque Nina quisesse dar a mim, na moto, a emoção e o prazer que certas mulheres dão aos homens na cama. Apesar de ser solta e desinibida sobre a motocicleta, na cama ela era tímida, contida, eu diria até passiva. O amor era bom, mas… apenas isto: bom.

Porém não era nada que afetasse realmente nosso relacionamento. Uma coisa, no entanto, começou a me inquietar. Eu comecei a me sentir um pouco constrangido quando encontrava amigos que me viam na garupa da moto, firmemente agarrado a Nina. Eu sei que é bobagem. Não sou um homem machista. Nunca fiz o gênero de machão com qualquer uma de minhas namoradas. Além do mais, Nina era uma moça muito bonita que envaideceria qualquer homem. Mas eu não me sentia bem, quando chegávamos a um lugar onde estavam os meus ou seus amigos, e nos viam estacionar a motocicleta comigo, seguro a ela como um menino medroso.

Certa vez, quando Nina cortou um carro no trânsito, da maneira natural e desenvolta como sempre fazia, mas tirando um fino de distância entre nossas pernas e a lataria, reclamei com ela. Foi, então, que ocorreu nossa primeira briga. A partir deste episódio desagradável, curiosamente meu velho medo de motocicleta retornou e passei a insistir que fôssemos de carro ou de táxi, quando saíamos juntos à noite. De dia, quando andávamos, eu, como sempre na garupa, ia ficando desesperado com as barbaridades de Nina no trânsito, movimentos temerários que ela fazia com a máquina, e eu não havia reparado antes.

Finalmente, quando nossa relação não ia bem, resolvemos fazer mais uma viagem de fim de semana para a serra, num chalé extremamente charmoso que havíamos curtido juntos ao pé da montanha. Foi a nossa última viagem de motocicleta. Fiquei inteiramente arrepiado quando Nina fez uma curva em que a moto quase andou na horizontal. Cheguei a sentir o calor do asfalto no meu ombro. Pedi que ela parasse para eu que pudesse respirar; fiquei sem fôlego. Em seguida, preferi pegar um ônibus e retornei à cidade, enquanto Nina descia a estrada na sua moto.

Quando cheguei em casa, fiquei pensando que eu tinha exagerado. Afinal, ela já havia me provado que era uma ótima motociclista. Durante aqueles anos, eu nunca a tinha visto sequer esbarrar num retrovisor. Tive que admitir que foi burrice minha. E quando o telefone começou a tocar, senti um princípio de esperança. Talvez Nina quisesse reatar. Talvez pudéssemos resolver tudo apenas indo cada um no seu veículo. A solução era muito simples, não havia motivo para terminar. Mas não era Nina, era a secretária de um hospital. Nina tinha sofrido um acidente e estava em coma. Eles estavam ligando para todos os números do seu celular. O meu foi simplesmente o primeiro que atendeu.

Fui correndo para o hospital. Providenciei uma transferência para a ala particular, inteiramente por minha conta. Ela tinha fraturado vários ossos, e havia indício de uma lesão na coluna. O médico disse que ela poderia sair do coma, mas fatalmente haveria seqüelas. Eu estava tão chocado que não sabia o que dizer. Só depois de alguns dias, minha cabeça voltou a funcionar, e fiquei estarrecido quando me peguei pensando que pelo menos ela ia concordar comigo. Ela ia finalmente largar aquela maldita motocicleta. De repente percebi o quanto eu era mesquinho, egoísta, controlador. Tive uma forte crise de culpa, e fiz uma promessa intimamente secreta. Se Nina saísse do coma, eu compraria outra moto para ela. Ainda que ela não quisesse mais ficar comigo; ainda que ela me odiasse para sempre. Nina jamais seria completa sem uma moto, e eu sabia disso melhor que ninguém. Dormi mais tranqüilo naquela noite.

Nos dias seguintes fiquei pensando como Nina reagiria se soubesse da minha promessa. Certamente ficaria contente, talvez chegasse a me admirar. Eu cuidaria dela e pagaria a fisioterapia. Ela se encantaria com essa demonstração de amor, e provavelmente me amaria de volta. A brutalidade daquele acidente talvez servisse para nos unir muito mais.

Infelizmente as coisas não foram assim tão simples. De fato Nina acordou, num dia em que sua mãe foi visitá-la. A velha falou sem pudor as frases que a muito custo eu tinha conseguido segurar: “Eu não te disse? Não falei que essa moto ia te trazer desgraça?!” Ao ouvir essas palavras, Nina recobrou imediatamente os sentidos, e deu um tapa na cara de sua mãe. Certamente foi o tapa mais feliz que a velha já ganhou; porém nos dias seguintes, ela descobriu que essa felicidade não era completa. O corpo de Nina não se recuperou por inteiro. A lesão na coluna não cicatrizou corretamente, impedindo que ela voltasse a andar.

Quando recordo aquela época, vejo que eu me adaptei até muito facilmente. Decidi não contar à Nina sobre a promessa que eu tinha feito. Deduzi que quanto mais ela pensasse em moto mais ficaria triste. Em vez disso pedi que ela me deixasse lhe pagar a cadeira de rodas. Para minha surpresa, ela não quis uma motorizada. Alegou que sua nova vida exigiria braços fortes, e era melhor se habituar. Paguei também uma reforma no seu apartamento. Fui cuidando dela, e, como eu esperava, acabamos por reatar. Um dia eu brinquei que ela ficaria até mais bonita de ombros largos. Ela me bateu, falou que eu não fazia ideia de como ela estava sofrendo. Depois me agarrou, me beijou, pediu desculpas exageradas. Disse que nunca teria como me agradecer. Eu falei que um beijo já estava bom, e estava mesmo. Mas ela quis me mostrar que sua boca podia muito mais.

Foi muito difícil admitir que eu estava feliz. Mas Nina estava a meu lado, o sexo estava ótimo, tudo corria bem. Não havia a loucura da moto, não havia mais o medo constante de perdê-la. Apesar de ter conquistado certa independência, ela ainda precisava muito de mim, inclusive financeiramente, porque a pensão que ela passou a receber era irrisória. Percebi que no passado eu havia me iludido. Eu me recusava a admitir, mas a independência, a liberdade e a segurança de Nina, no fundo sempre tinham me incomodado. Agora eu era necessário em sua vida. Quando eu empurrava sua cadeira, me sentia seguro, generoso, espiritualmente elevado. Passamos a freqüentar parques calmos e sossegados. Passávamos horas nos beijando e curtindo o entardecer. Era o namoro dos meus sonhos, eu estava serenamente feliz.

Até que Nina começou a ficar horas na internet. Entrou em comunidades de cadeirantes, conheceu outras pessoas com as mesmas dificuldades que ela. Eles planejavam manifestações coletivas, lutavam pela aprovação de certas leis (leis que obrigavam os prédios públicos a ter rampas e coisas do tipo). Trocavam informações sobre hotéis que tinham apartamentos para deficientes. E o pior: reuniam-se quinzenalmente num bar de Botafogo, cujo dono também era cadeirante. Minha insegurança voltou rapidamente. Comecei a temer que Nina talvez estivesse procurando um homem com o mesmo histórico que ela. Alguém que padecesse as mesmas dores, enfrentasse os mesmos problemas. Talvez ela se sentisse mais compreendida por um homem assim.

Meu temor me levou a freqüentar as manifestações com ela, a vociferar contra a falta de políticas públicas para deficientes, e a ficar sempre ao lado dela nas reuniões no bar de Botafogo. Consegui convencê-la a instalar um GPS na sua cadeira. Assim, a qualquer momento, eu poderia saber onde ela estava. Claro que isso era para sua segurança. Tudo que eu queria era protegê-la, eu não suportaria se houvesse outro acidente que limitasse ainda mais seus movimentos.

Um dia estávamos vendo um filme na sala, e tomando um vinhozinho — um fim de semana bem romântico como eu gostava — e de repente Nina me perguntou se eu sabia o que era hardcore sitting. A palavra hardcore me lembrava certos vídeos que eu via no trabalho, mas eu não fazia ideia do que podia ser um hardcore sitting. Seria um filme pornô feito por cadeirantes? Cheguei a ter um calafrio. Será que um pervertido tinha convidado Nina a fazer algum filme doentio com mulheres em cadeiras de rodas?! “Não amor, não faço ideia do que seja isso!”, respondi, tremendamente ansioso, louco para saber do que se tratava. Ela pegou o leptope e começou a me mostrar alguns vídeos. Disse que o hardcore sitting já era comum nos Estados Unidos e estava crescendo vertiginosamente no Brasil. Quando vi aquelas loucuras nem acreditei. Não era o que eu tinha pensado, mas era seguramente algo que aniquilaria minha paz. Cadeirantes faziam manobras radicais em pistas de esqueite e outras maluquices. Intuí imediatamente que Nina se juntaria a eles, e certamente faria aquelas manobras com a mesma leveza e naturalidade com que um dia pilotara sua moto. Me senti traído, não por Nina, mas pelo destino. O mundo novamente me tomava Nina, me tirava a tranqüilidade e a segurança que eu levara tanto tempo para encontrar. Passei alguns dias deprimido, de mal com o mundo. Me senti humilhado pelo deus no qual sempre tentei não acreditar. Mas ao mesmo tempo eu sabia que Nina precisava daquela aventura. Ela parecia ter nascido para adejar, para flutuar sobre alguma coisa móvel. A mera gravidade de alguma forma a ofendia.

Então recordei minha promessa secreta, e entendi que estava na hora de renová-la. Eu tinha jurado que, se Nina melhorasse, eu mesmo lhe daria outra moto. Agora ela estava prestes a melhorar. Não do jeito que eu tinha imaginado, mas ela ia conseguir retomar sua leveza, sua paixão pelo risco e pela velocidade. Comecei a pesquisar na internet, e descobri que havia cadeiras mais seguras para essas manobras, com rodas inclinadas e aro de titânio. Não demorei a perceber que eu precisava encomendar uma. Alguns dias depois pude fazer uma surpresa para Nina. Seus olhos úmidos confirmaram que eu estava certo. Um nova harmonia começava a se instalar entre nós. Uma harmonia que incluía o movimento e o risco.

Hoje vibro quando vejo suas manobras. Nina já apareceu em vários programas de televisão, o grupo que ela dirige tem patrocínio do estado, para orientar e motivar outros cadeirantes. Nunca deixei de acompanhá-la, dando todo o apoio e incentivo que ela merece. Nina reconquistou sua leveza, sua audácia, sua parceria com o risco. E acho que eu finalmente entendi qual é meu lugar na sua vida. Ela vai continuar flutuando, vai ser um permanente desafio contra a gravidade. E eu vou estar logo abaixo, protengendo-a do chão que a persegue incessantemente. Eu quero acertar onde o anjo dela falhou. Eu vou estar entre o chão e ela, como ela está, para mim, a um passo do céu.

domingo, 14 de agosto de 2011

O melhor, o pior e o médio




A mulher quis uma mesa no segundo andar porque achou que estaria mais calmo. Na verdade estava mais agitado. No verão, todos preferiam o segundo andar porque as sacadas deixavam o ambiente mais fresco. Para o homem não fazia diferença, desde que o lugar não tivesse televisão. Não gostava de comer ao som das notícias trágicas de um telejornal, ou dos diálogos vulgares de uma novela.

Assim que se acomodaram, o garçom se aproximou e lhes entregou o cardápio. O homem quase não acreditou no que lia. Mostrou à esposa, que também ficou intrigada. Mas, quando perguntaram ao garçom, ele confirmou o que ambos haviam lido. Explicou que a casa tinha mudado de dono, e o menu fora renovando recentemente.
— É até meio cômico — disse o homem, um pouco desconsertado. Depois se voltou para a mulher, com uma cara interrogativa, como se perguntasse: “E agora, o que pediremos?” Ela suspirou, e leu o menu novamente. Na seção de pratos havia apenas três opções:

1. O Melhor
2. O Médio
3. O Pior
Logo abaixo vinha a sugestão do chef: “O Melhor”.

Sem pensar muito, a mulher levantou os olhos e respondeu:
— Vamos pedir o Médio.
O marido, ainda indeciso, fez uma pequena objeção.
— Você não prefere experimentar o Melhor?
— Amor, não vamos arriscar. A casa mudou de dono, não sabemos como está a cozinha. Vamos pedir o Médio, outro dia pedimos o Melhor.

O homem acabou por concordar. Pediram um Médio para dois.

Na mesa ao lado, outro casal acabava de se acomodar. Agora era a mulher que estranhava o cardápio, e o mostrava ao marido, indagando se não seria algum tipo de brincadeira. O homem também estranhou, e perguntou se ela queria tentar outro restaurante. A mulher alegou que isso já seria exagero. Não queria passar pela vergonha de se levantar e sair da mesa, diante de todos. Por fim, conformou-se à situação, e disse ao marido para pedir o Médio. Erguendo o cardápio, ele expressou uma ligeira contrariedade:
— Amor, o Pior está com um preço razoável. Hoje não é nenhuma comemoração, por que não pedimos o Pior?
— Querido, você está falando sério? — Ela se sentia mal em ter de explicar algo tão óbvio.
— Se fosse para pedir o Pior, eu ficava em casa e esquentava o almoço. Se saímos de casa, vamos pedir pelo menos o Médio.

O marido concordou. Não era todo dia que comiam fora.

E todos iam chegando e encontrando algum motivo para pedir o Médio. Não queriam o Pior, mas, por alguma razão, não se sentiam dignos do Melhor. Não era tanto pelo preço, era a audácia daquele nome, que para alguns soava exagerado, para outros, até repulsivo. O Médio sempre acabava parecendo a melhor opção.

Mas um homem que chegou mais tarde, também acompanhado, pareceu não se importar com esse protocolo. Depois de manusear rapidamente o cardápio, pediu o Melhor. O garçom, acostumado a ouvir outra coisa, não compreendeu de imediato. Reclinou-se ligeiramente e perguntou:
— Como disse, senhor?
O homem repetiu claramente — O Melhor, por favor — e como falasse um pouco mais alto, foi ouvido nas mesas mais próximas.

O garçom anotou o pedido vagarosamente, depois acrescentou num tom ligeiramente teatral: — Perfeitamente, senhor. Temos o Melhor — como se quisesse se fazer ouvir também nas outras mesas. Em seguida se voltou para a mulher, e perguntou delicadamente:
— E para a senhora?

Ela sorriu, quase não logrando controlar o nervosismo. Olhava para seu companheiro, tentando lhe transmitir a dificuldade que enfrentava. O homem, parecendo não perceber o problema, perguntou com naturalidade:
— Você não vai querer o Melhor?

Visivelmente constrangida, a mulher não sabia o que responder. Queria recusar o Melhor, mas não diante do garçom. Seu desespero aumentou quando percebeu que as pessoas das mesas mais próximas estavam atentas ao que dizia. Seus olhares oblíquos pareciam ansiar que ela pedisse o Médio, e desse fim àquela hesitação.
— Vou querer o Médio! — ela disse bruscamente, olhando severa para o parceiro. Depois, como se precisasse se justificar, acrescentou: — Não estou com apetite para o Melhor. Talvez outro dia.

O garçom, mais aliviado, despediu-se com tranqüilidade — Pois não, senhora. O Médio, perfeitamente — e se dirigiu à cozinha.

A mulher ficou olhando de soslaio para o homem, como se tentasse lhe transmitir que ele cometera uma grave indelicadeza. Pedira o Melhor para si, e a deixara a cargo do Médio. Isso não era justo com ela, que procurava fazer de tudo para lhe agradar. Tinha certeza que devia repreendê-lo, para que o erro não se repetisse, mas não sabia como abordar o assunto.

Enquanto ela pensava, certa ansiedade aumentava nas pessoas em redor. Todos estavam um tanto indignados com o atrevimento daquele homem, mas não sabiam exatamente o que comentar. Pressentiam que não seriam justos se o criticassem apenas por ter pedido o Melhor. Afinal, era um prato previsto no cardápio.

De repente os olhos da mulher faiscaram de júbilo, pois ela encontrou finalmente uma saída. Dirigindo-se ao parceiro, com o nariz ligeiramente erguido, começou o ataque.
— Não precisava ter falado tão alto. As pessoas ouviram.
— Não falei “tão” alto. Falei apenas um pouco mais alto. O garçom não estava me entendendo.
— Você sabe que falou mais alto. Não precisava disso. Você quer mostrar a todos que prefere o Melhor?

O homem percebeu que havia alguma coisa errada.
— Do que você está falando? Não quero mostrar nada a ninguém.
— É mesmo? Pelo tom que você usou, me pareceu outra coisa.
Ele se calou por um instante, e olhou atentamente para a parceira. Não eram casados. Havia pouco tempo que estavam saindo. Começou a pensar que talvez não fosse a mulher certa para ele.

Nas outras mesas, o homem ia se tornando o assunto principal. As mulheres o censuravam gravemente, pois não achavam de bom tom pedir o Melhor, muito menos daquela forma, fazendo que todos ouvissem. Os homens concordavam prontamente com suas esposas — sim, ele cometera uma indelicadeza, sem dúvida — mas alguns pensavam intimamente em voltar sozinhos ao restaurante, justamente para experimentar o Melhor. Não cometeriam o erro de o pedir explicitamente, apenas o indicariam com o dedo, e o garçom compreenderia a necessidade de discrição. Ficaram felizes por pensar numa solução tão engenhosa. Eram, sem dúvida, homens de uma astúcia fora do comum, e agora acreditavam realmente merecer o Melhor. E quanto mais se satisfaziam com essa conclusão, mais concordavam com suas mulheres: — Sim, que homem indelicado, o Médio basta para qualquer um...

Na cozinha se passava uma inquietação ainda maior. O gerente estava sabendo do acontecido, e fora se certificar com o cozinheiro. Estava tenso e um pouco angustiado, não sabia exatamente como se expressar.
— Então, um cliente pediu o Melhor, não foi?
— Sim, já estou sabendo — disse o cozinheiro, tranquilamente.
— Você sabe como fazer?
— Sei, sim. Fiz esse prato muitas vezes no curso de gastronomia.

O gerente não se sentiu muito bem com essa resposta. Achou que o homem não precisava fazer lembrar que havia feito um curso superior.
— Olha, eu sei que você tem um diploma, não precisa falar disso o tempo todo.
— Não estou falando disso, apenas respondi sua pergunta.
— Você está me entendendo errado — o gerente resolveu usar de sua grande complacência. — Não estou questionando sua capacidade. Apenas achei que... bem, como o prato não é muito pedido, talvez você não lembrasse como fazer.
— Obrigado pela consideração, mas sei como fazer. Não se preocupe.
O cozinheiro agia com tranqüilidade, e já tinha começado a preparar o prato. O gerente ficou perambulando pela cozinha, fingiu verificar os ingredientes, abriu o armário, arrumou alguma coisa no escorredor, depois se voltou abruptamente para o colega, e desabafou:
— Olha, se você quiser, podemos dizer que hoje não temos o Melhor. Podemos inventar que falta algum ingrediente, sei lá. Não precisa se matar para fazer o Melhor. Sei como seu trabalho é duro, não vá se esgoelar para satisfazer um almofadinha.

O cozinheiro não entendeu bem a razão daquela proposta. Mas, de fato, o Melhor dava mais trabalho, e, se o próprio gerente estava dizendo que não precisava fazê-lo, talvez ele devesse desistir. Ficou algum tempo pensando nessa possibilidade, mas também especulou que aquilo podia ser um teste de confiança. Talvez o gerente quisesse medir o quanto ele estava disposto a se dedicar ao trabalho. Depois de hesitar alguns segundos, ele falou, ainda desconfiado: — De fato, acho que não temos alcachofras.

Mas calhou que o gerente tinha acabado de ver as alcachofras no armário e, por reflexo, respondeu: — Elas estão ali!

Houve um breve constrangimento. Nenhum deles sabia o que dizer, até que o gerente abriu um largo sorriso, e anunciou: — Já sei! Vamos dizer que estamos apenas com um estagiário na cozinha, e ele ainda não sabe fazer o Melhor.

O cozinheiro a princípio concordou, mas de repente percebeu que a idéia não lhe era favorável. Se alguém descobrisse a farsa, a culpa recairia toda sobre ele, pois aquela justificativa não comprometia em nada os outros empregados. De súbito segurou seu superior pelo braço, e lhe pediu que esperasse. O gerente o olhou com enorme reprovação. Sem saber o que fazer, o cozinheiro despistou, cabisbaixo: — Diga... diga apenas que vai demorar. O Melhor demora mais para fazer, não é tão fácil quanto o Médio.

O homem aprumou o paletó, olhou com certo desprezo para o cozinheiro e concordou com um aceno de cabeça. Subiu as escadas para dar a notícia ao cliente. Quando chegou à mesa, notou que a mulher não estava. Obviamente não fez comentário sobre isso, apenas justificou a demora do prato. O cliente pareceu não se importar, e aproveitou para pedir um aperitivo. 


Enquanto isso sua parceira tinha ido ao banheiro e fazia uma ligação pelo celular. Ela ainda não tinha formado uma idéia precisa sobre o que estava acontecendo, e sentiu a necessidade urgente de consultar uma amiga. Do outro lado da linha, uma voz atendeu sonolenta. A mulher explicou demoradamente a situação. Descreveu em detalhes o restaurante e o homem com quem estava, depois finalmente tomou coragem para contar o momento mais humilhante.
— Aí ele fechou o cardápio, pediu o Melhor para ele e o Médio para mim! Fez isso com a maior naturalidade, como se eu simplesmente não merecesse o Melhor!
— Não é possível! Você está falando sério, querida?
— Nunca falei tão sério, amiga! Dá para acreditar? Eu, que já tolerei oito anos de casada, nunca pensei que voltaria a passar por essas coisas!
— Mas ele pediu mesmo o Melhor para ele e o Médio para você? Assim, sem mais nem menos?
— Ai, amiga, o pior não foi isso! O pior é que ele falou em voz alta, praticamente gritou: 'O Melhor para mim, e o Médio para ela!' Não acreditei! Até agora não acredito. Por que isso está acontecendo logo comigo?!
— Olha, querida, você vai me desculpar, mas sabe o que está parecendo?
— Ai, pode falar, amiga. A essa altura, já posso ouvir qualquer coisa. Pode ser totalmente sincera, estou preparada.
— Eu ia dizer que está até parecendo que ele é... é... você sabe: um arrogante! Eu não queria falar, mas você mesma disse para eu ser sincera.
— O quê!? Ah, meu Deus! Eu estava suspeitando, amiga, mas não queria ir tão longe. Você acha mesmo?
— Sem dúvida! Qualquer homem deixaria você escolher. Ele não apenas pediu o Melhor para ele, mas ainda fez questão de decidir por você! Isso é sério, acho que você sabe perfeitamente que isso é arrogância.
— Sei, amiga, claro que sei! Ah, meu Deus, o que eu vou fazer?! Olha, acho que essa é a última noite que saímos juntos. Ele me parecia um cara tão legal, tão educado... mas agora, isso?! Não sei se posso tolerar.
— Eu entendo, querida, eu entendo. Já passei por situações parecidas. Olha, não quero te desanimar, mas homens assim querem ser tratados como reis. Não têm humildade nenhuma, sentem-se como se o mundo lhes pertencesse. Deus me livre! Se eu fosse você, pelo menos dava um tempo.

Agora ela estava arrependida. Queria desabafar com alguém, mas não pretendia ir tão longe. Sabia que o homem era gentil e não passara dos limites outras vezes. Seria precipitado terminar com ele.
— Pois é, amiga. Vou pensar. Realmente, já fui casada por oito anos. Não quero ter que agüentar outro capitão, ha, ha, ha! — Ela riu, tentando suavizar as acusações que acabava de fazer.

A amiga concordou sem acréscimos, e deu a entender que precisava se deitar por causa de um compromisso no dia seguinte. Na verdade não tinha compromisso nenhum, apenas ficara desapontada ao perceber, pelo tom da mulher, que nada iria acontecer. No máximo em dois dias ela já teria esquecido aquela noite.

E, de fato, ela a teria esquecido em dois minutos, não fossem os olhares atentos dos garçons quando ela voltava para o segundo andar. A mulher sentiu que eles a examinavam meticulosamente, e no íntimo deviam estar pensando que o homem que pedira o Melhor não fora tão exigente na hora de escolher uma namorada. Um dos empregados não se contentou em apenas considerar essa idéia, mas sentiu que um pensamento tão sagaz precisava ser comunicado a alguém. Correu para a cozinha e foi logo dizendo ao cozinheiro:
— Sabe esse homem que pediu o melhor?
— Sim.
— A mulher que está com ele nem é assim tão bonita...
— É mesmo?
— Parece que ele não quis o melhor na hora de escolher a mulher! Ha, ha, ha!
— Hum... sei, sei como é.
— E tem mais! Ele nem está bem vestido. Eu conheço aquela camisa de uma loja de departamento. Não é cara. Eu poderia comprar uma, se quisesse. Não compro, você sabe por quê.
— Por quê?
— Ora, como assim, por quê? Você sabe perfeitamente. Não quero ficar esbanjando por aí. Eu tenho bom senso!
— Ah, sim, foi o que pensei.

O garçom viu que não estava fazendo muito sucesso, e ficou um pouco envergonhado. Mas não queria sair dali sem falar no que realmente lhe importava. Aproximou-se do cozinheiro, tocou de leve seu ombro, e disse com gravidade:
— Olha, você não vai fazer o Melhor, vai? O gerente mesmo disse que não precisa se esforçar. Basta fazer o Médio, e pôr umas alcaparras assim por cima. Pronto! O homem não vai notar a diferença, pode ficar despreocupado. E veja bem: não sou eu quem está dizendo, o próprio gerente falou isso, pode confiar.

O cozinheiro não suportava mais a situação.
— Tudo bem, tudo bem! Não vou fazer o Melhor, vou fazer o Médio e coloco umas alcaparras por cima, está bem assim? Umas alcaparras e pronto! Afinal, ninguém vai perceber...
— Eu sabia, eu sabia! Você é dos nossos, sabia que você não iria nos decepcionar. — Sua alegria era sincera. — Vou dar uma subida, ver se alguém está querendo alguma coisa. Já volto para buscar o Médio com alcaparras. Vou falar com o gerente, tenho certeza que ele vai adorar a notícia.

E depois, com tapinhas nas costas, acrescentou: — Eu sabia, meu jovem. Sabia que podíamos contar com você.

O garçom deixou a cozinha, e o jovem se viu finalmente sozinho. Respirou, deixou cair os ombros, sentiu-se estranhamente derrotado. Não compreendia a razão de tanto alvoroço, sabia apenas que estava jogando fora sua primeira oportunidade de fazer o Melhor. E com tanta contrariedade, talvez fosse a última. No curso de gastronomia, não o haviam preparado aquela situação: fazer o Melhor não era apenas uma questão técnica; era preciso estar disposto a enfrentar a reprovação de todos. Estava prestes a se valer das alcaparras, e entregar mesmo o Médio como se fosse o Melhor. Mas alguma coisa dentro dele se recusava a acatar aquela decisão. Entre estar de acordo com todos e consigo mesmo às vezes é difícil decidir. Por isso, ainda desorientado, ele abriu a lata de alcachofras, pegou um dos corações, e o colocou sobre um prato vazio. Sem saber direito o que fazia, perguntou:
— E então? Você é uma alcachofra. Você é parte deste problema. O que tem a dizer?
— Feche a porta. Não precisamos de testemunhas — cochichou a alcachofra.

Só então ele notou que a porta que dava para o corredor estava aberta. Não se sentiu louco ou infeliz por poder ouvir uma alcachofra, mas extremamente grato. Era sem dúvida um poder bem interessante para um cozinheiro. Fechou rapidamente a porta, e se voltou, ansioso, para ouvi-la. Quase não acreditou no que ela disse:
— Não me olhe assim. Não espere muita coisa de mim. Você sabe que a decisão é inteiramente sua.

Ele nunca havia conhecido uma alcachofra tão lúcida. Sentiu que era alguém em quem podia confiar.
— Mas e o gerente? Ele não vai me demitir, se eu fizer o Melhor?
— Não exagere. Ele vai demorar no máximo uma semana para esquecer o assunto. Além do mais, você sabe que para ele não faz diferença, desde que o cliente pague a conta.
A alcachofra tinha toda a razão, e agora o cozinheiro estava mais seguro que nunca. Ele intuía que, depois que fizesse o Melhor, pisaria na cozinha de forma diferente. Cada vez que abrisse uma lata, cada vez que acendesse o forno, cada vez que cortasse uma verdura e o cheiro fresco lhe excitasse as narinas, ele saberia merecer aquela cozinha, como os lobos merecem a noite e os pássaros merecem a generosidade do vento. Com essa convicção serena, ele foi ao fríser, pegou os cogumelos marinados, baixou o forno e picou o estragão. Antes de completar, voltou-se para a alcachofra, e foi sincero com ela, como ela tinha sido com ele.
— Tomei minha decisão. Vou ter que parti-la em duas.
— Meu amigo, acredite: desde que entrei naquela vidro de óleo de girassol, não tenho esperado por outra coisa.

Ele acenou com a cabeça, ficou contente por ser chamado de amigo naquele momento crucial. Cortou a alcachofra com o coração tranqüilo e feliz. Em poucos minutos, chamou o garçom e anunciou: — O Melhor está pronto.

O empregado, terrivelmente contrariado, não ousou fazer sequer um comentário. Percebeu imediatamente que estava diante de um poder maior e mais estável que o dele próprio. Pegou o Melhor, pegou o Médio, que já estava pronto, e os levou ao segundo andar. Passou o resto da noite em silêncio. Mesmo que quisesse dizer alguma coisa, não saberia se expressar.

No andar de cima, o cliente chegou a fechar os olhos ao mastigar. Estava surpreso. Quando pedira o Melhor, ele mesmo não acreditava que experimentaria algo tão delicioso. A mulher mastigava com raiva o seu Médio e, vendo o prazer do parceiro, não hesitou em interrompê-lo. — Não vai me dar uma provinha?

O homem era generoso e compôs uma garfada para a mulher. Depois de mastigar rapidamente, ela declarou: 
— Amor, é quase igual ao Médio.


Ele provou o Médio e objetou: — Não tem comparação, é muito diferente.
Ela fez questão de enfatizar: — É praticamente igual!

Vendo que não havia solução, o homem fingiu concordar, enquanto intimamente decidia terminar com aquela mulher. Não havia afinidade entre os dois, e ele intuía que isso não ia resultar num casamento feliz. No mesmo momento a mulher pensava que não lamentaria se aquele homem deixasse de procurá-la. Ele parecia realmente acreditar na diferença entre o melhor e o médio, e isso não podia ser um bom sinal. Não contaram esses pensamentos um ao outro, mas foi de fato a última vez que se viram.

Na cozinha, o jovem chef nem imaginava a separação que tinha causado. Mas estava mais seguro que nunca de saber a diferença entre o melhor e o médio. Uma diferença que agora estaria inscrita na sua própria história de vida, para sempre.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Hoje ela não pensou em sexo


No metrô, quando ia para o estúdio, ela notou que um sujeito não parava de encará-la, e ficou morrendo de medo de estar sendo reconhecida. Pensou novamente em passar a andar de peruca e óculos escuros. O problema é que odiava peruca desde que soubera que em São Paulo havia assalto de cabelo. Perambular por aí coberta por cabelos roubados certamente daria azar, e azar era tudo que ela não queria agora que estava quase conseguindo comprar um apartamento nos Jardins. Talvez fosse melhor ir de táxi, mas sairia caro no fim do mês, e ela teria de economizar em roupa ou comida, o que seria um tremendo sacrifício. Agora que se acostumara a um almoço decente, não queria voltar a viver de esfirras e sanduíches.

O sujeito mal encarado saltou depois de algumas estações, e ela ficou mais tranqüila. Voltou a pensar na decoração do apartamento que estava prestes a comprar. Gostava muito de cozinha americana, mas o sofá devia ficar com cheiro de gordura, e seria horrível ver televisão ou descansar ou fazer as unhas sentindo cheiro de gordura. E quando sua mãe a visitasse, provavelmente diria algo como “por que você não põe uma divisória nessa cozinha?” ou “por que você não troca o estofamento do sofá? Está fedendo!” Com isso concluiu que uma cozinha separada era melhor. Se a sala fosse grande, ela poderia colocar uma mesa, e serviria o jantar ali, quando recebesse as amigas.

Só voltou a pensar no problema do reconhecimento quando entrou no estúdio, e um dos técnicos a cumprimento pelo nome artístico. Decidiu que ia perguntar ao Lucélio se não dava para mandar um motorista buscá-la e levá-la em casa. Alegaria que precisava de privacidade, estava sendo a toda hora reconhecida pelos fãs, que a cobriam de convites indecorosos. (Era mentira; mesmo depois de quatro anos fazendo filme, ela fora reconhecida uma única vez, por um sujeito tão tímido que não ousaria sequer chamá-la para um café com leite.)

Quando a maquiadora começou a passar o rímel, ela pensou duas coisas: para quê tanto capricho na maquiagem, se os homens só iam prestar atenção no sexo? E por que a maquiadora a tratava com tanta frieza? Afinal, quem pagaria o salário dela, se não fossem as atrizes?

Na cena de sexo oral, ela fechou os olhos e lembrou de um sofá lindo que vira na Style Decor, por apenas três prestações de quinhentos e poucos. O estofado era de um azul tão suave que dava até um pouco de sono. Era tudo que ela queria para sua sala, estava cansada de viver cercada de tanto vermelho. Quando o ator gozou em seu rosto, ela ficou se perguntando quanto custaria uma boa banheira. Depois de dançar, o que ela mais gostava era um bom banho quente. Teria uma banheira em casa, nem que precisasse fazer filme por mais dez anos!

No intervalo, o direitor parecia de ótimo humor. Pediu pitsa para todo mundo, fez uns comentários engraçados com a maquiadora, falando que ia abrir uma linha de filmes com gordinhas. Ela riu deliciosamente, e achou que era um bom momento para falar no lance do motorista. Estava enganada. Quando ela falou a palavra “motorista”, Lucélio a fulminou com os olhos, depois perguntou: “sabia que eles exigem previdência? No fim das contas sai mais caro que um ator!” Ela não estava segura de saber o que era previdência, e apenas riu, tentando disfarçar a decepção.

Na cena de dupla penetração, houve um momento em que ela olhou para o teto e reparou pela primeira vez que no estúdio havia sancas de gesso. Sua mente disparou automaticamente algumas perguntas: "será que é muito caro? Mais quanto tempo de trabalho?" Daí ela lembrou que não queria trabalhar depois dos trinta; precisaria de um tempo para ter filhos. Tentou fazer mentalmente algumas contas para estimar quanto ganharia até lá, mas não conseguiu. Quando voltou a si, um dos caras já estava gozando, e ela pensou: "Meu Deus, foi muito rápido, o Lucélio vai querer gravar de novo." Mas o Lucélio não falou nada, e ela ficou aliviada.

No metrô, de volta para casa, ela usou a calculadora do celular, e fez as contas sem dificuldade. Até os trinta, daria para pagar o apartamento, e talvez ainda sobrasse para um smart. Ser reconhecida de vez em quando era um preço que valia a pena pagar. Depois dos trinta, ela pretendia largar a carreira, e se dedicar de verdade a encontrar um marido; de preferência de olhos azuis, com um corpo bem cuidado, e um apartamento um pouco maior que o dela.


Entrou no seu conjugado bastante cansada, mas ainda deu tempo de mandar um email para aquela amiga que vendia cosméticos. O esfoliante estava acabando, e ela precisava encomendar mais um. Depois tomou um banho rápido, sem lavar os cabelos, e foi se deitar. Não demorou a dormir; estava exausta. Hoje foi apenas mais um dia em que ela pensou em sexo. 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Um leve exagero


Quando eu estava passando perto da Parmê, vi um cartaz com uma foto de fetuccine, e tive uma forte impressão de que eu estava com vontade de comer — mas muito forte mesmo, como se fosse fome. Entrei e pedi um fetuccine com filé de frango, pensando em comer só metade. Mas foi só eu lembrar como tem gente passando fome, que não tive coragem de deixar sobra no prato. Matei tudo, e já ia pedir a conta quando notei que eles agora estão servindo musse de manga. Eu nunca tinha comido, e resolvi experimentar. Ia pedir com um café expresso, mas o garçom falou que a máquina de café estava estragada, então acabei pedindo com um milkshake pequeno de chocolate. Não sei por quê, chocolate me lembra café. Consigo substituir um pelo outro, na maior facilidade. O que nunca consegui é passar mais de um dia sem um dos dois.  

Depois eu estava voltando para casa, e resolvi passar no Empório Árabe, para levar um pouco de homus e beringela defumada. Adivinha quem eu encontrei lá? Isso o mesmo, o Beto, o Marcos Flávio, a Irene, o pessoal estava todo lá. Tive que sentar para tomar uma cervejinha com eles. E a cerveja me abriu o apetite, e resolvi experimentar os tais quibes de coalhada que todo mundo está comentando desde que o Empório foi inaugurado. Meus amigos adoraram, e até aproveitaram para me apresentar ao patê de azeitona preta, que também é muito comentado, só que eu já não achei grande coisa. Mas claro que comi, para não fazer desfeita; por isso cheguei em casa sem fome nenhuma, e fui logo falando para minha mulher que eu não ia jantar. Ela me olhou com uma cara tão esquisita, que parecia que eu estava cometendo um crime. 

— Você está louco, amor? Claro que não vamos jantar. Hoje é o primeiro dia do Festival Gastronômico da Zona Sul. Vamos agora para o Folle Plat, eles já devem estar começando a servir alguma coisa.

Enquanto eu tomava um banho rápido, percebi nitidamente que já não cabia mais nada no meu estômago. Ah, mas meu estômago não ia fazer aquilo comigo! Era um festival anual, eu não podia perder um evento daqueles por causa do capricho de um dos meus órgãos. Saí do banheiro e fui direto em cima de dois antiácidos. Quando minha mulher perguntou o que eu estava fazendo, claro que não falei nada sobre meu encontro com o pessoal no Empório. Eu conheço minha mulher, ela ia falar que eu esqueci do festival, que eu não ligava para os programas dela, que eu passava mais tempo com meus amigos que com ela... enfim, essas picuinhas de mulher.

No Folle Plat estavam servindo umas torradinhas com foie gras, e eu fiquei indignado, porque aquilo não era coisa de festival! Foie gras eu já como quase todo dia. Comentei com a Jussara, mas ela ponderou: — Você não notou, amor? Esse é com raiz forte, é completamente diferente. Realmente eu não tinha notado. Depois veio um ravióli de pato que, esse sim, eu nunca tinha provado, e estava delicioso! Minha mulher ficou reclamando que devíamos ter pedido um merlot, porque o pato não combinava com o cabernet chileno que o sommelier tinha indicado. Claro que eu concordei na hora. Não tenho paladar para vinhos, e não queria que ela percebesse que eu estava louco por uma coca-cola. Depois do chessecake de amora (que também me decepcionou; isso eu como todo dia) minha mulher encontrou umas conhecidas, e vi que era uma boa hora para aplicar o golpe do cigarro. Falei que eu ia fumar um pouquinho lá fora, e pedi a um garçom para me levar uma coca zero. Na calçada fiquei pensando que eu devia voltar a fumar de verdade; depois que eu como me dá uma vontade tremenda de sentir aquele gostinho do cigarro. Mas lembrei da Jussara buzinando no meu ouvido que cigarro faz mal para os meninos, que é um péssimo exemplo, e não sei mais o quê, e decidi ficar só na coca mesmo. Minha mãe bem que me avisou que eu não devia casar com uma mulher vinte anos mais jovem. Essa nova geração pensa completamente diferente. Ah, mas minha mãe nunca viu a Jussara nua, nunca viu como os mamilos dela ficam quando ela está excitada. Tem coisas que mamãe nunca vai entender...

Quando eu estava voltando para o mezanino, senti uma dor no peito, que foi um troço incrível. Cheguei a pensar que eu ia ter um infarto, e fiquei alguns segundos despistando na escada,  fingindo que eu estava tossindo. Foi nesse momento que uma força misteriosa agiu sobre mim. Sinceramente, eu tenho pena de quem não acredita em Deus. Quem não acredita, não entende esses momentos mágicos. Eu fui sentindo um calor no peito, uma palpitação, depois uma pressão, quase uma cãibra, e então... vagarosamente... deliciosamente, saiu aquele arroto fenomenal. Não pensem que eu fiz barulho, pelo amor de Deus! Eu estudei no Santo Inácio! Foi um arroto suave, silencioso, embora constante, convicto, eficiente, quase espiritual. Me senti tão leve que subi o resto da escada saltitando. Quando sentei à mesa, minha mulher já tinha pedido a conta, e fiquei pensando em como eu dormiria soberbamente depois daquele dia incrível. Quibes de coalhada, raviole de pato, chessecake... Acho que o vinho tinha me dado sono, e minha mulher certamente estava notando, porque perguntou: — Você não está com sono, está? Temos que ir agora para o Piacere Reale! As meninas me falaram que eles estão servindo uns caldos incríveis!

Eu não ligo para caldos, mas lembrei do meu pequeno milagre na escada, e pensei: “Quer saber? Depois de um arroto daqueles, eu topo qualquer coisa.” 

E topei mesmo. O caldo de moranga estava uma delícia, o de lentilhas também. Mas nada superou o de feijão branco com calabresa!  Claro que eu me controlei: não toquei nas torradas. Comi só uns pãezinhos de alho, e depois um queijinho provolone para acompanhar o licor. Minha mulher adora o Poire Williams, eu estou acostumado com o Cointreau, e preferi manter a tradição. Depois já íamos pedir a conta, e a Jussara exclamou: — Amor, e a sua grapinha? Não é aqui que servem aquela grappa que você diz que é maravilhosa? — Deus do céu, eu tinha esquecido completamente. No Piacere servem aquela grappa divina que vem direto de uma aldeia da Sicília. Mas eu já estava sentindo uma coisa estranha, uma certa indisposição. Falei com minha mulher que eu ia arrematar com a grappa, mas depois de um cigarrinho, e saí pensando na minha coca-cola. Foi aí que cometi um erro terrível, uma coisa idiota mesmo! Em vez de conversar numa boa com o garçom, eu pensei em comprar a coca num quiosque da praia. Estávamos a uma quadra do calçadão, e achei que seria até bom tomar a coca lá, depois voltar caminhando lentamente, dando um tempo para um novo milagre. Tudo ia muito bem, quando eu senti novamente aquela estranha pressão no peito, aquele cansaço inconveniente. Fiquei me perguntando se Deus tinha invertido o milagre, e o arroto viria antes da coca. Para Ele nada é impossível. Mas aí me veio uma fraqueza nas pernas, eu vacilei, meio tonto. Os passantes devem ter rido muito do sujeito de sapatos e calça social que, de repente, ficou de quatro em pleno calçadão. Precisei me deitar por um instante, e quando vi aqueles rostos assustados, falando em ambulância, tentei gritar que eu só queria uma coca, e tudo ia ficar bem em questão de minutos. Mas acho que eles não me ouviam, porque eu também não ouvia nada, e depois de um silêncio ritmado, que parecia barulho de mar, veio também um escuro completo, avassaldor. Quando eu acordei já estava no hospital.

Os médicos me explicaram que não foi infarto, apenas faltou um pouco de sangue num músculo do coração. É coisa à toa, que um stent resolve sem dificuldade. Minha mulher mais uma vez brigou comigo, porque eu não falei que estava passando mal, e não sei mais o quê. Ora, por que eu não falei? É óbvio por que eu não falei. Eu ia deixar uma tontura de nada estragar o primeiro dia de festival gastronômico?!


E por falar nisso, o Festival é até domingo. Já conversei com o doutor Danilo, ele disse que me libera no máximo amanhã. Vocês já ouviram falar do canelone de amêndoas do Sapore Romano? Me disseram que estão servindo com um molho difenciado, por causa do Festival. E no Gustosità tem aquele tiramisu maravilhoso! Tenho certeza que Deus vai me ajudar. Não posso perder essa de jeito nenhum!