domingo, 28 de dezembro de 2008

Cachorro e fumaça

Ele se trancou por instinto. Dentro da bancada, a caixa de fósforos esperava, segura e silenciosa. O som da pequena explosão era tão reconfortante quanto o gosto de tabaco. O quinhão de fumaça aquecia o céu da boca, antes de virar uma mancha suave no teto branco. É muita ingenuidade achar que se fuma escondido. O cheiro fica impregnado nas coisas, ansioso, esperando a ocasião de se tornar delator. E era essa a obviedade que se revelava agora, clara e repentina como uma chama. Ele viu a forma como ela se lamentava, entrando no banheiro de manhã, pensando que ele não tinha mais jeito. Viu a resignação suave e amarga que ela via quando se olhava no espelho. Talvez ela recordasse um amor antigo, um rapaz idealista, que falasse contra o cigarro e seus pretensos comerciais. Talvez se consolasse lembrando que esse garoto tinha se tornado um mero professor universitário, pobre e chato. Seu marido pelo menos tinha dinheiro para o apartamento de praia e as viagens de reveillon. Antes de borrifar o maldito esprêi de lavanda, ela certamente pensava no champanhe e no sol que não teria, se tivesse casado com o outro. E essa idéia agora o divertia. Ele pensava, sorrindo, que desde o início soubera como seduzi-la. Sabia o quanto ela se submeteria para ter as festas e os vestidos que o salário dele podia comprar. Sabia que a teria para sempre se pudesse pagar uma boa aliança e uma cerimônia quase luxuosa. Mas outra verdade de repente transpareceu no meio da fumaça: o cigarro era sua pequena vingança. Era uma desforra pelo mundo pálido e aprumado em que ela o obrigava a viver; pelos chopes que ele não tomou para pagar o bifê de casamento; pelas intermináveis horas-extras para quitar o financiamento da casa. Quantos seguros ele vendeu, quantos clientes intratáveis ele suportou para pagar botox e lipoaspiração? O prazer do fumo era o prazer de jogar um pouco de pó naquele mundo anticéptico e simulado. Era um meio de exercer o mínimo de liberdade, quando a escravidão já era completa. E, se ele ousasse olhar além da fumaça, talvez descobrisse a verdadeira origem daquele comércio tácito: era o prazer que ele buscava nos peitos perfeitos, na boca obediente, no corpo sempre à disposição para alguns minutos de deleite conjugal. Mas ele não vislumbrou essas coisas, porque subitamente precisou de ar. Abriu a porta assustado, a tosse lhe veio como o anúncio de uma sentença misteriosa. Pela primeira vez ele se perguntou em quem ela teria pensado nos últimos minutos, se nele ou no imbecil idealista que ele nem sabia se tinha existido; se ela se arrependera de alguma coisa, se desejou dizer umas últimas palavras a alguém que injustiçara: “me perdoe, eu era tão jovem, não podia imaginar que lhe causaria tanta dor”. Quando ele perguntou se ela havia sofrido, os médicos baixaram os olhos. Ele agora concluía que hemorragia não mata na hora. Ela certamente tivera alguns minutos, talvez horas, para se arrepender — mas de quê?! As lágrimas substituíram a tosse. Deitado na cama, ele se entregou àquele choro infantil e estúpido. Mais estúpido era o cachorro que subia na cama latindo e abanando o rabo. O desgraçado nem para sentir falta da dona. Não demonstrou um segundo de tristeza pelo seu sumiço! E no entanto aquele bicho era a única coisa que ainda o ligava à morta, a única coisa além do cigarro, da decoração da casa e dos oito anos que ele logo iria esquecer. O animal recebeu o abraço com desconfiança. Não sabia se era prêmio ou punição. Mas o viúvo sentia-se estranhamente entusiasmado. Jurava ser fiel àquele cachorro, como nunca fora à mulher. Trataria dele com a melhor comida, não reclamaria do trabalho, não questionaria seus caprichos. E, ao mesmo tempo, ele sentia uma enorme vontade de rir, de zombar daquilo tudo, daquela promessa estúpida, daqueles oito anos que ele viveu como um zumbi, entre o trabalho e a cama, as festas e o consultório médico.

Quando voltou ao banheiro, o cigarro estava na metade. Não foi difícil perceber que ele nunca voltaria à sua boca. Da fumaça, restou apenas uma mancha amarela em volta da luminária.

O cachorro ele deu para uma amiga.

A Fuga

Tinha cismado com aquela canção. Quando não olhavam, ele a cantava baixinho, até que alguém reparava e ele aumentava a voz. Sentia-se feliz por não ter vergonha. Mas logo percebeu que tentava provar a si mesmo que não tinha vergonha — e envergonhou-se. Calado, agora preferiu retê-la na cabeça, e assim passou o resto do dia, absorto e grave como se planejasse um furto. Só à noite quis romper o silêncio, quando ligou para a namorada, certo de que encontraria uma ouvinte piedosa. “Alô”. Ele não respondeu. Queria começar direto pelos versos que tanto o ocuparam pela manhã, “Quem é?”, mas os desgraçados lhe faltaram, e ele teve de se render, surpreso e derrotado pela fuga. “Marcelo, é você?”, “É... sou eu”.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Paris

Quando estivemos em Paris, me recusei a sair do hotel. Tomava café e voltava ao quarto, pedia espaguete ou pitsa pelo telefone e preferia a televisão à janela. À noite ela chegava, “Estou exausta”, e me narrava em detalhes o tour do dia. Mostrava as fotos que havia tirado, falava dos vestidos lindos “mas caríssimos!” que vira na Galerie des trois quartiers ou na Champs Elysèes. Às vezes trazia-me doces exóticos do bairro árabe, ou roçava-me o punho ao nariz, mostrando porque não conseguira se decidir entre os perfumes, “Todos maravilhosos...”

E Paris ficou sendo, para mim, essa mulher que me trazia Paris. Sua inacreditável voz de criança me descrevendo os monumentos da cidade, seu hálito permanentemente doce, seus olhos grandes de libanesa, seu corpo mole de cansaço, que estalava com o meu massagear... E, à noite, quando ela se despia para dormir e seu relatório finalmente terminava, era só então que eu realmente me interessava por Paris — minha exclusiva e deliciosa Paris.