tag:blogger.com,1999:blog-51756133127264693042024-03-12T23:50:56.583-03:00Estórias PacatasContos e minicontos de Ronaldo Brito RoqueRonaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.comBlogger47125tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-25891601139299911022023-08-02T11:38:00.005-03:002023-08-14T01:02:35.428-03:00<p><span style="font-size: medium;"> </span></p><p style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: medium;"><b>Babás e bonecas</b></span></span></p><p style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: medium;"><b>1</b></span></span></p><p style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Quando os primeiros andróides começaram a chegar ao mercado, eu tinha acabado de me divorciar, e comprei um modelo Garota Sexy para me divertir. Foi uma ótima compra. A andróide me relaxava de várias formas, não falava em filho, não ficava reclamando da vida, nem sequer me pedia para tomar banho. Quando eu dormia, ela ia se recarregar, e a gente não tinha muito tempo para se desentender.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Vivi um período de enorme alegria. Me tornei mais produtivo no trabalho, parei de me aborrecer com pequenos detalhes. Acho que fui simplesmente feliz.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Alguns anos depois, meu filho fez dez anos, e minha ex-mulher mandou ele morar comigo. Pensei em vender minha andróide sexy e comprar uma andróide babá, mas logo descobri que isso era inviável. As robôs babás eram muito mais caras. Segundo os vendedores, elas gastavam mais energia e exigiam um software muito mais complexo.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Passei alguns dias muito mal, pensando que ia ter que suportar meu filho. Ele não parava quieto, ligava música ou televisão na maior altura, não sabia cozinhar, não sabia arrumar a casa, e ainda não conseguia passar o uniforme da escola.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Eu já estava tremendamente estressado quando uns amigos me contaram que havia uns técnicos no centro que consertavam andróides sem autorização do fabricante. Cogitei que um deles saberia como copiar o software de uma robô babá e instalá-lo numa andróide sexy. Não devia ser tão difícil. Se é possível trocar o sistema operacional de um computador, com um andróide não deve ser muito diferente.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Num dia de folga, peguei a Dêise e fui para o centro em busca de informação. Encontrei um gordinho simpático que faria esse trabalho por um preço razoável. Quando alguém viesse consertar uma babá, ele clonaria o software dela, depois passaria para a Dêise. Ele disse que entraria em contato, assim que pintasse uma babá para ser consertada.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Em poucas semanas o trabalho estava feito. Dêise agora não me chamava de garotão, não fazia gestos sensuais, não tirava a roupa de forma lenta e provocante, não gemia gostoso quando ficava por cima, medindo com precisão os movimentos e a força do quadril. Mas sabia cozinhar, passar roupa, arrumar a casa, e sobretudo falar certas frases para o garoto; frases que estimulavam o aprimoramento moral e o uso cauteloso das palavras. Confesso que tive um pouco de pena do rapaz, mas eu sentia que aquilo era necessário. Agora eu podia dormir de noite. Ela o mandava desligar a televisão, e chegava a desligá-la pessoalmente quando ele se recusava.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Voltei a dormir melhor. Saía para dar uma arejada nos fins de semana. Pensei até em arranjar uma namorada. </span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">2</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Um dia eu estava no trabalho e recebi um estranho telefonema. Minha Unidade Autônoma de Serviço Doméstico tinha prestado queixa à polícia. Parece que meu filho havia tentado molestá-la, e chegou a pedir que ela mostrasse as partes íntimas. Fiquei confuso. Não sabia se ficava feliz pelo meu filho ou se deveria temer as consequências.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Mais tarde passei na delegacia e descobri que a coisa não era tão grave. O garoto ia ter que comparecer a um auditório da polícia e ouvir umas palestras sobre como se portar diante das mulheres. Naturalmente, protestei, dizendo que a babá eletrônica não era uma mulher de verdade. O oficial disse que, nesse caso, as coisas se equivaliam, pois se fosse uma mulher, esse tipo de ato também geraria a possibilidade de queixa. E acrescentou que, quando o rapaz fosse maior de dezoito, seria melhor eu comprar uma Modelo Sexy. Ele poderia até ser preso por fazer certas coisas com andróides babás. Estava na lei: a andróide comprada para trabalho deve exercer somente as funções do trabalho para o qual foi comprada. Exigir o contrário era violar a Política Nacional de Andróides. </span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Acabei concordando, voltei para a casa e expliquei as coisas ao garoto. Tentei bancar o pai compreensivo. Disse que ele tinha agido normalmente, mas precisava se aprimorar, saber escolher a pessoa e as palavras certas, para obter o que estava buscando. </span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Dias depois decidi vender a babá. Percebi que eu corria o risco de ser multado, ou até preso, por ter um artefato ilegal em casa. Tive que conversar com o garoto, ensiná-lo a passar roupa, a cozinhar. Tive ainda que abordar o difícil assunto dos horários e do volume da TV. A babá eletrônica, no fim das contas, não serviu para muita coisa.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;">Mas sinto que minha alegria poderá voltar. As andróides<i> </i>sensuais estão evoluindo rapidamente. Agora há mais opções de cabelo e cor de pele. Os anúncios dizem que elas estão tão inteligentes que já podem até ser levadas para jantar. Meu filho vai fazer dezesseis anos e acho que vou mandar ele estudar em outra cidade. Minha saúde e meus pequenos prazeres de adulto, graças à tecnologia, em breve voltarão ao normal.</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 22.4px; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;"><span style="font-family: Georgia, serif; font-size: medium;"><br /></span></p>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-14569222029769444772022-09-25T09:35:00.005-03:002022-09-25T09:42:20.506-03:00 Livro Lançado<p><br /></p><p><br /></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 24px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: medium;">Se você curte meus contos, talvez goste do meu livro. Dá uma olhada:</span></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 24px; margin-bottom: 0cm;"><a href="https://loja.editoralabrador.com.br/sala-prive"><span style="font-size: medium;">https://loja.editoralabrador.com.br/sala-prive</span></a></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 24px; margin-bottom: 0cm;"><br /></p><p align="JUSTIFY" style="line-height: 24px; margin-bottom: 0cm;"><br /></p>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-71808688592796094712021-04-28T13:14:00.013-03:002022-09-11T01:12:32.966-03:00Revoluções de Marte<p><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Os primeiros homens que chegaram em Marte tinham extrema facilidade para cortar e levantar rocha. Afinal estavam numa gravidade três vezes menor que a da Terra. Tudo para eles era muito mais leve, e suas ferramentas eram bastante eficientes.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Eles fizeram casas enormes, com tetos robustos que os protegiam da radiação solar. Usaram canhões de microondas para descongelar a água e fizeram enormes lagos de água salgada. Desses lagos, destilavam água com bastante facilidade. Não é difícil destilar água onde as temperaturas já são naturalmente elevadas. Nas horas vagas, fizeram imensos auditórios de rocha, porque achavam que os próximos humanos, quando chegassem, contariam histórias de como a humanidade foi para Marte, qual a tecnologia usada, o que aconteceu com a Terra, etc.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Os filhos deles, acostumados desde crianças com a gravidade de Marte, já não conseguiam levantar e cortar grandes massas de rocha. Fizeram casas com a chamada argila marciana, um tipo de solo mais mole e menos denso, que necessitava de aglutinante para ficar de pé. Essas casas eram menores, menos imponentes e menos seguras. Eles não sabiam direito por que tinham nascido em Marte. Lá pelos trinta anos perceberam que nunca seriam grandes e fortes como seus pais. Começaram a ficar revoltados.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Descobriram formas de acessar satélites da Terra, e durante algum tempo a grande novidade foi ver vídeos de pessoas fazendo coisas simples, como cozinhar, brincar com gatos, ir à praia, nadar. Isso gerou mais revolta nos jovens, que começaram a se organizar e a exigir que fossem levados à Terra, para conhecer seu planeta de origem, brincar com gatos, ir à praia, andar de bicicleta, enfim, fazer tudo que os terráqueos faziam.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Os mais velhos primeiro tentaram explicar que eles não poderiam viver na Terra. Seus corações não suportariam tanto exercício, tanto movimento, tanto peso. E seus pulmões não suportariam a pressão atmosférica da Terra, dez vezes maior que a de Marte. (Eles estavam acostumados a respirar por meio de aparelhos, que não exigiam nenhum esforço da musculatura do tórax.)</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">As explicações serviram para gerar mais revolta. Houve um assassinato, seguido de prisão, seguido de mais assassinatos. Os velhos então mudaram de estratégia. Usaram filmes de ficção científica para demonstrar que a Terra tinha sido destruída por guerras e explosões nucleares. A única solução agora seria começar do zero, em Marte. Começar uma nova civilização, uma nova cultura, uma nova ordem social. Alguns acreditaram nos velhos e foram fazendo o que eles mandavam. Outros queriam construir naves, para ir à Terra e ver tudo com seus próprios olhos; tocar com suas próprias mãos, arriscar a vida para descobrir o que realmente tinha acontecido.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Um dos comandantes da missão marciana, um homem já com seus oitenta e nove anos, teve um plano para eliminar os revoltados. Ia construir uma nave imensa, embarcar os dissidentes e dizer que os estava mandando para a Terra, quando na verdade a nave estaria programada para levá-los para o Cinturão de Asteróides. Sem saber da verdade, os próprios revoltados trabalharam na construção da nave. Mas uma mulher do grupo dos velhos, uma senhora de 95 anos, se apiedou dos jovens e vazou informação sobre o destino verdadeiro da nave. Houve novos episódios de revolta, novos assassinatos e novas prisões.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Por fim decidiu-se que a melhor solução seria mandar os revoltados realmente para a Terra. Eles não se adaptariam, viveriam em hospitais e logo morreriam, mas o que se podia fazer, se eles não aceitavam mais viver em Marte? Morreriam na Terra, mas pelo menos deixariam os outros marcianos em paz.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Voltaram à construção da nave, agora com propósitos consoantes. Mas nesse meio tempo os velhos começaram a morrer e não repassaram as informações sobre como terminar a nave, e menos ainda sobre como navegá-la. Os jovens solicitaram essas informações da Terra, mas a Terra não os queria de volta. O que fazer com um bando de fracotes que mal conseguiria levantar uma furadeira? Um bando de baixinhos raquíticos, com data marcada para morrer. Além disso, eles seriam uma verdadeira peste intelectual, porque espalhariam a ideia de que a vida em Marte não valia a pena, contariam que Marte era apenas um deserto sufocante e inútil, e isso seria uma grande perturbação nos planos para construir mineradoras em Marte.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Os jovens marcianos não tiveram outra alternativa senão continuar em Marte, recebendo da Terra apenas alimento e oxigênio, nenhuma informação relevante e sobretudo nenhuma gota de combustível para naves. Tiveram filhos e, cuidando de seus filhos, sossegaram um pouco. Foram cumprindo mais ou menos as instruções que vinham da Terra. Trabalharam em grandes plantas para mineração. Ensinaram seus filhos a ler, a escrever, a destilar água, a calcular uma cúpula, a procurar minas de ferro, cobre, etc.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Os mais velhos, a essa altura, já tinham quase todos morrido. A segunda geração de nascidos em Marte começou a entrar na adolescência e a perguntar sobre sua origem. Os pais, com vergonha de seus sucessivos fracassos para voltar à Terra, com vergonha de suas revoluções frustradas, diziam apenas que eles descendiam de gigantes que eram muito mais fortes, muito mais poderosos e tinham uma tecnologia muito mais avançada que a deles. Gigantes que tinham vindo de outro planeta. Um planeta mágico, onde havia plantas, animais, frutas; onde a água caía do céu.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Os jovens cresceram acreditando nisso, mas seus filhos já duvidavam dessas histórias e achavam que tudo não passava de mitologia. Alguns, no entanto, eram imaginativos e construíram vastas obras teóricas descrevendo como deveria ser o planeta de seus ancestrais. Essas obras confusas eram feitas com base em filmes que vinham da Terra, mas como não conheciam a Terra, os teóricos misturavam informações de filmes de entretenimento com documentários sobre a Amazônia, sobre o uso de drogas, sobre o feminismo, sobre a indústria alimentícia, e no fim tudo continuava parecendo mitologia, fantasia, estupefação. Ninguém tinha uma ideia precisa sobre nada.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos;">Nessa época muita coisa mudou. Robôs da Terra foram enviados para construir as grandes redomas de cristal de alumínio, que protegeriam o solo da radiação. Assim, os marcianos receberam material para começar sua própria agricultura. Obviamente ficaram fascinados com as plantas, esqueceram as revoltas de seus pais, plantaram batata, café, trigo, frutas. Fizeram bolos, pães, sucos, lasanhas, e fartaram-se. Experimentaram um prazer sobrenatural. Ficaram ainda mais impressionados com os terráqueos. Um povo que desenvolvia esse tipo de biotecnologia era mesmo superior em inteligência, destreza e sensibilidade. Não seria estranho pensar que os terráqueos eram deuses. Em honra a tais deuses começaram a fazer grandes festivais que coincidiam com as colheitas.</span><span style="font-family: Tinos;"> </span></span><span><span style="font-family: Tinos;">Compunham frases ritmadas que pareciam música, depois </span><span style="font-family: Tinos;">cantavam, banqueteavam e faziam amor.</span></span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Desses massivos festivais vieram novos filhos, e os filhos aprendiam basicamente a ler, escrever, praticar agricultura e minerar o solo. Para aprender a ler, liam as tais obras teóricas sobre a Terra, obras que não distinguiam fantasia da realidade. Imaginavam a Terra como um local cheio de elefantes, gorilas, cangurus, tucanos, mas também com grandes cidades, automóveis, aviões, festivais de música, pessoas dançando, pessoas usando drogas e mulheres tendo orgasmos. Eles quase não notaram quando os grandes carregamentos de alimentos e utensílios da Terra começaram a escassear. Notaram, depois, quando todo tipo de transmissão de dados que vinha da Terra subitamente cessou. Mas, a essa altura, já não se importaram. Tinham construído sua própria civilização. Sabiam plantar, construir casas, sabiam criar codornas, destilar água e acrescentar a ela os sais necessários à vida. Sabiam minerar o solo e construir os equipamentos eletrônicos mais elementares. Sabiam fazer baterias para seus grandes carros elétricos, que eram lentos como bicicletas, mas eles não sabiam que carros deviam ser mais rápidos que bicicletas, assim como não sabiam que codornas eram menores que galinhas.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos;">Nos auditórios que um dia foram construídos para se falar sobre o Planeta Terra e os motivos da viagem a Marte, agora havia grandes palestras sobre os deuses do passado. Deuses que geraram os marcianos, lhes ensinaram as primeiras palavras, lhes ensinaram álgebra, trigonometria, engenharia elétrica, depois voltaram para seu lugar de origem, que eles sabiam apenas que era um certo pontinho no céu. </span></span><span style="font-family: Tinos;">Um pontinho que ficava mais brilhante em alguns meses do ano. Um pontinho tão distante que era preciso ser um deus para ir até lá. Um pontinho tão fantástico, tão variado, tão vivo, que poderia até ser mentira, e os grandes livros que se escreveram sobre ele poderiam ser apenas grandes mitologias do passado.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Alguns marcianos acreditavam que era para lá que se ia depois da morte. Outros garantiam que depois da morte não havia nada, e que os livros intermináveis sobre o passado eram apenas fantasias tolas de marcianos primitivos, entediados pelo deserto, esperançosos de um mundo mais interessante, mais agitado e colorido.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Tinos; font-size: large;">Quem está com a verdade simplesmente não há como saber.</span></span></p><p style="line-height: 20.799999237060547px; margin-bottom: 0.21cm;"><br /></p>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-87082775309797186362020-03-31T07:10:00.011-03:002022-06-11T17:23:27.026-03:00A Garota Lésbica<b id="docs-internal-guid-63650bcf-7fff-9ef9-2399-70196c5a742a" style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.38; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 14pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 700; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A garota lésbica</span></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Depois que ela foi demitida da prefeitura, continuou a usar a camisa de trabalho, uma blusa branca, com mangas alaranjadas, escrito “Juntos podemos mais”. Sua namorada também usava essa blusa, principalmente quando andavam de moto, o que me dava a impressão de que as duas trabalharam na prefeitura e foram demitidas simplesmente por serem lésbicas; mas isso já é coisa da minha cabeça.</span></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Um dia eu estava na festa de um amigo e ela estava por lá (com outra camisa). Fiquei com vontade de perguntar alguma coisa mas não tive coragem. Por fim foi ela quem puxou assunto e perguntou com quê eu trabalhava. Eu disse que era escritor, ela perguntou sobre o que eu escrevia. Inventei que meu último livro era sobre um cara bem apessoado que vivia pedindo dinheiro emprestado a mulheres maduras, solteironas ou divorciadas. Em troca dos empréstimos ele ia com essas mulheres a eventos sociais, casamentos, festas de aniversário, inaugurações de lojas e coisas desse tipo; eventos que as mulheres não gostavam de frequentar sozinhas. Ela me perguntou se ele fazia sexo com elas, eu disse que não. Ela riu e disse que a mãe dela tinha lido esse livro e gostado muito. Falsa, mentirosa, pensei; e acrescentei que um dia talvez eu pudesse conhecer a mãe dela, para conversarmos sobre o livro, sobre canalhas em geral, e darmos algumas risadas. Ela ficou meio sem graça, “Pode ser, por que não?” e foi andando para a cozinha. Depois chegaram o bolo e os docinhos. Só então percebi que eu estava numa festa de aniversário. Cantamos a música, comi alguma coisa que não caiu muito bem com a cerveja, mas deixei rolar. </span></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Mais tarde me aproximei de um grupo que já estava meio bêbado, e estava falando sobre mulheres. Alguns perderam a noção e falavam de coisas que constrangiam suas esposas. Alguém me perguntou por que minha mulher não estava na festa; eu disse que ela estava com meu filho, que estava meio doente, com febre, tossindo. Uma mulher, que conhecia minha mulher, disse que não sabia que eu tinha filho. É do primeiro casamento, eu falei. Não mora com a gente, vem para cá só de vez em quando. Não entendo por que sempre minto quando estou em público. E quando vejo que falo uma mentira, só consigo reforçá-la, não consigo voltar atrás. Sem a menor dúvida, preciso de um bom psicólogo.</span></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Ouvi mais um pouco das piadas e mentiras dos bonachões, depois comecei a me despedir deles, que também já começavam a se despedir de si mesmos.</span></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Encontrei então a mulher ou garota lésbica. Perguntei se ela queria uma carona para o lado da Vila Miranda. Ela disse que não estava indo para casa, ia ficar num bar no centro, e perguntou se eu podia deixá-la por lá. “Claro, por que não?”, eu disse, descendo atrás dela. E quando chegamos, ela me chamou para entrar por uns minutos. Estava muito cedo para ir para casa.</span></span><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif; font-size: 12pt; white-space: pre-wrap;"> Eu disse alguma coisa como “só mais uma cerveja”, e notei que as pessoas ficaram nos olhando quando passamos pela porta, provavelmente porque era um bar de lésbicas, e nós éramos, afinal, um homem e uma mulher. </span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O segundo andar era bem decorado com dois sofás grandes nas laterais e luminárias antigas que pareciam grandes castiçais de cabeça para baixo. Quem estivesse num dos sofás quase não via o que se passava no outro. </span></span><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif; font-size: 12pt; white-space: pre-wrap;">Pegamos uma cerveja e sentamos num deles. Ela me contou que seu cachorro poodle, ou yorkshire, estava com câncer. Eu disse que era uma pena e que ela devia estar sofrendo muito. E de repente nos abraçamos e começamos a nos beijar. E beijamos forte, como se estivéssemos a uns seis meses sem contato sexual. De cinco em cinco minutos ela passava a mão no meio das minhas pernas para ver se o tripé estava armado. Eu me perguntava: será que ela quer fazer aqui? O bar estava quase vazio, havia apenas algumas pessoas no sofá da frente e outras debruçadas nas janelas. De repente, sem tirar as botas, e com a maior naturalidade do mundo, ela se ajoelhou em cima de mim, abriu meu zíper e me cobriu com seu vestido. Dali começamos um sobe-desce profundo, transpirante, ritmado. Ela quase não olhou para o meu rosto, nem eu para o dela. Quando terminamos, ela disse: espere aqui, e correu para o banheiro. Enquanto eu abotoava minha calça, vi que algumas pessoas olhavam para mim, mais por curiosidade que por reprovação. Quando ela voltou, segurava uma bolsa que eu nem tinha visto com ela. Tomou mais um trago e disse: acho que vou ter que sacrificá-lo. Não suporto vê-lo sofrer. Percebi que falava do poodle. Dei uma desculpa qualquer, peguei o número dela e disse que precisava ir para casa. Ela me disse: nunca ligue nos fins de semana; depois acrescentou: não me mande mensagens. Era das duronas.</span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Cheguei em casa, tomei rapidamente um banho e fui me deitar. Cátia já estava de camisola, vendo televisão. Seu cabelo está com um cheiro estranho, ela disse. Respondi que na festa tinha muita gente fumando. E o Nelinho, está bem? Pensei comigo que Nelinho devia ser o aniversariante ou algum amigo mais chegado de Cátia. Está ótimo, garanti. Sempre sorrindo. Que bom, ela disse, já deve ter arranjado outro emprego. E se enroscou em mim, para dormirmos juntinhos, como fazemos no inverno. E eu dormi como uma criança, sem pensar em nada.</span></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Algumas semanas depois encontrei a mulher lésbica na sala de espera de um médico. Ela disse que seu poodle tinha morrido. Quase tive pena.</span></span></div><div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-size: 12pt; font-style: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-position: normal; font-variant: normal; font-weight: 700; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Ronaldo Brito Roque</span></span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.7999999999999998; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<br /></div>
Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-78123017266618813312019-06-13T04:38:00.002-03:002021-12-13T11:29:06.022-03:00Súper Poderes<span face="Trebuchet MS, sans-serif"><p align="LEFT" class="western" style="break-before: page; font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0cm;"><br /></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 0cm;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Não gosto de festa, mas aceito algum convite quando estou súper cansado de ficar em casa. De vez em quando vale a pena conversar um pouco, ver alguém vomitar, invejar os garotos que já têm namorada ou pelo menos arranjaram alguma menina para beijar. Não levo jeito com as meninas, sou muito tímido, só sei conversar sobre filmes e livros e não tenho carro de papai para levá-las em casa. E claro que não posso falar sobre certas coisas. Não estou a fim de ser internado e passar a vida entupido de comprimidos. Se não me taxassem de louco, diriam que sou um ridículo tentando chamar atenção. Para as garotas, daria na mesma.</span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Às vezes eu queria usar minha invisibilidade para ficar quieto num canto, só observando a galera e rindo das abobrinhas que eles falam. Mas todo mundo ia dizer que eu saí sem me despedir, desapareci sem mais nem menos, possivelmente porque bebi demais, vomitei ou tive uma diarréia. Surgiriam os boatos mais improváveis. Eu sofreria pelo menos uma semana de comentários negativos. Seria o sumidão, o antissocial, o foge-de-festa ou outro nome idiota.</span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Bangla Sangam MN;"><span><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Uma vez pensei em fazer uma pequena demonstração dos meus poderes, levantando alguns objetos, depois falar que aquilo era um truque que aprendi no YouTube. Mas seria muito arriscado. Nas outras festas todo mundo ia pedir para eu repetir aquele truque, e me chamariam para mais festas, de parentes distantes, de amigos de parentes, de colegas do cursinho de inglês, talvez chegassem a me oferecer dinheiro para animar aniversário de criança. E me cobririam de perguntas e implorariam pela revelação do truque, de modo que cedo ou tarde eu acabaria explodindo e gritando para todo mundo que não havia truque nenhum, eu simplesmente tinha o súper poder da telecinese. Isso me levaria a uma cadeia de eventos inevitáveis. 1. Todos me taxariam de louco. 2. Minha mãe acreditaria em todos. 3. Minha mãe providenciaria minha internação. Por isso preciso me segurar. Sei que não posso usar meus súper poderes em público. E enquanto estive pensando nessas coisas, parece que puxaram assunto comigo e não respondi, e agora todos estão rindo e apontando para mim. Entre cochichos e olhares enviesados, percebo que colaram alguma coisa nas minhas costas, consigo alcançar a folha e me deparo com a frase: "Não sou desse planeta".</span></span></span></span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Bangla Sangam MN;"><span><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">A raiva chega a me dar azia. Luto contra a vontade de usar a força do pensamento para explodir as cabeças deles. Ou poderia simplesmente me concentrar no mais forte e jogá-lo na parede. Ele cairia no chão com algumas costelas quebradas, os outros não ousariam me enfrentar. Mas consigo me conter. Encosto num canto e rio falsamente, fingindo me divertir. Me ocorre uma ideia que pode funcionar: explodir a lâmpada da copa, apenas para desviar a atenção de cima de mim. Ninguém sairia machucado, e o incidente me tiraria do centro da zombaria. Mas a mãe ou tia de alguém saiu da cozinha e vem pela copa anunciando umas empadinhas. Não quero machucar uma inocente, e além disso estou com fome. Desisto da pequena explosão e mastigo, resignado, algumas empadinhas, que ficam até gostosas com um pouco de Fanta morna. Uma das tias diz que em breve trará o bolo, e só então me dou conta de que é aniversário de alguém. Mas eu não trouxe presente, nem refrigerante, nem faço ideia de quem devo felicitar. Claro que esse detalhe não me preocupa, pois posso ler as mentes dos convidados e descobrir facilmente quem é o homenageado da noite. E como sou meio canalha, começo pela loirinha que até agora não vi beijando ninguém. Respiro fundo, fecho os olhos, e penso que, além do aniversariante, posso escanear alguma coisa que facilite uma aproximação com ela. Estou a ponto de visualizar a cara do sujeito quando uma mão toca meu ombro e uma voz feminina pergunta se estou passando mal. É uma gordinha de cabelo crespo. Digo que está tudo bem, louco para voltar à minha concentração, mas ela me toca de novo e diz para eu não ligar para aqueles meninos, que são todos uns palhaços tentando descontar sua miséria em alguém.</span></span></span></span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Bangla Sangam MN;"><span><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Começo a simpatizar com a gordinha, mas de repente noto que seus antebraços têm pelos demais para um corpo de menina. Meio sem querer, escaneio a mente dela e descubro que ela passou a tarde num salão, alisando os cabelos. Me pergunto por que a funcionária não explicou que ela precisava depilar os antebraços. Não posso escanear essa funcionária, meus poderes não vão tão longe. Então lembro da loirinha e vejo que ela não está mais na sala. Fecho os olhos para escanear os quartos e logo me arrependo, porque as imagens dela com outro cara chegam imediatamente na minha cabeça, com um misto de decepção e repulsa. E quando volto para a minha visão, o rosto da gordinha está a um palmo do meu, e seus olhos estão fechados. Não estava pensando em beijá-la, mas não sou cruel o bastante para desviar os lábios num momento tão delicado. Aceito, resignado, o beijo da gordinha, já pensando numa desculpa para ir embora mais cedo. Mas a danadinha até que beija bem, e acabo relaxando por alguns minutos e curtindo a fricção suave dos lábios dela. Estou tocando seus cabelos quando começam novos risos e gritos. Não sei do que estão zombando agora, se do fato de eu estar ficando com uma gordinha de braços peludos ou de uma gordinha estar ficando com o esquisitão calado que veio de outro planeta. Escaneio a mente de uma magrinha de olhos arre-galados e ela está pensando: "se até essa baleia pode ficar com alguém, não vai demorar para um maloqueiro chegar em mim." Um moreno de óculos escuros está concluindo que devo estar chapado para beijar uma gorda dessas. Sinto um estranho mal estar e vou para o banheiro, mas não estou com vontade de vomitar ou aliviar os intestinos. Sento na tampa do vaso e fico apenas me perguntando por que vim a mais uma festa, por que saio de casa para encontrar pessoas que só querem me humilhar? Escaneio minha própria mente em busca dessas respostas e não as encontro. E de repente lembro que ainda não felicitei o homenageado da noite.</span></span></span></span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Bangla Sangam MN;"><span><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Chego na sala, e quando dou os parabéns já aproveito para dizer que vou ter que sair mais cedo. “Você passou, mal? É assim mesmo, tem gente que não pode beber.” Sinto que ele está orgulhoso por seu corpo se dar bem com algumas latas de cerveja. Deve pensar que esse é seu súper poder. Começo a me despedir do pessoal, “pois é, já vou, etc”. Eles dizem “vai não, fica mais um pouco”, enquanto escuto eles pensarem: “que mané, por que ele ainda não sumiu?” Vou me despedir da gordinha, mas ela está conversando com umas amigas e não me dá muita atenção. Os beijos que trocou comigo talvez fossem apenas a desculpa para esse papo de agora, uma espécie de ritual para entrar na turminha das meninas, ser aceita por elas e se tornar uma delas. Ganho um minguado selinho de despedida. Já não sou mais necessário, já não mereço um beijo longo e molhado, simulando desejo.</span></span></span></span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Bangla Sangam MN;"><span><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Decido ir pelas escadas, e quando percebo que estou com-pletamente sozinho, flutuo lentamente de um patamar a outro, só para lembrar quem eu sou. Quando piso na rua, começa a chover. Gero um brando campo de força para me proteger da chuva. Olho, divertido, os pingos fazendo uma curva na frente do meu rosto. Não ligo se o pessoal estiver me olhando. A festa era no oitavo andar, lá de cima não dá para ver a trajetória dos pingos. Passo alguns minutos no ponto de ônibus, mas, cansado da demora, resolvo tentar outro ponto, na transversal. A chuva está mais forte e aciono meu campo novamente, uma coisa tão trivial para mim quanto assobiar ou cantarolar uma melodia. Então me deparo com uma pequena surpresa. A gordinha da festa passa correndo ao meu lado, e na pressa nem chega a me ver. Nos trechos sem marquise, leva a bolsa à cabeça, talvez tentando proteger a química que deu uma melhorada nos seus cabelos. Sinto um misto de pena e simpatia. Fico invisível, corro para perto dela, e dessa vez gero dois campos, um para mim, outro para ela. Mas ela parece não notar. Deve ser míope demais para ver que os pingos estão caindo a meio metro da cabeça dela. Deve ser distraída demais para sentir que a água não está tocando sua pele. Eu tinha pensado em escanear a mente dela, para saber se ela estava pensando em mim, mas, diante dessa insensibilidade, perco completamente a vontade. Espero até ela entrar no ônibus, fico visível novamente e sento no ponto, ao lado de uma velhinha que me olha espantada, como se eu fosse um fantasma. Sei que meu ônibus vai demorar. Eu poderia pegar um táxi, e apagar a mente do taxista assim que ele me deixasse em casa. Ele ficaria completamente desorientado, se perguntando por que foi até lá. Mas não sou tão canalha, não quero prejudicar um trabalhador.</span></span></span></span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Bangla Sangam MN;"><span><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Estou feliz com minha honestidade quando um pivete se aproxima e fica olhando para a velha como um cachorro olha para um pedaço de carne. Não preciso ler mentes para saber que ele está apenas esperando eu sair do ponto para voar na bolsa da velha como urubu em carniça. Sinto que ele não é muito pesado. Com uma concentração moderada eu poderia jogá-lo no chão ou atirá-lo no meio da rua. Poderia projetar imagens de policiais na cabeça dele, chegando numa viatura e ameaçando prendê-lo. Mas, quando chega meu ônibus, prefiro embarcar calado e deixar o moleque agir. Por que eu salvaria uma velha que não hesitaria em me chamar de louco se eu contasse a ela sobre meus súper poderes? Por que eu salvaria uma idiota que recebe uma pensão do estado para ficar em casa vendo televisão e falando da vida dos vizinhos? Sento no banco do ônibus, feliz por saber que aquele jovem – agora prefiro chamá-lo assim, um jovem desfavorecido – está punindo uma velha idiota que nunca fez nada para melhorar o mundo. Acho que essa é a diferença entre mim e os heróis. Não amo a humanidade, não tenho a menor vontade de salvá-la do que quer que seja. Se eu revelar meus poderes em público, provavelmente me prenderão e tentarão desesperadamente me transformar numa pessoa normal. Não quero gastar nem uma caloria tentando salvar os seres que, se tivessem a chance, não hesitariam em me destruir.</span></span></span></span></span></p><p align="JUSTIFY" class="western" style="font-family: Georgia, serif; line-height: 20px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 1.1cm;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: Charter, serif; font-size: large;">Chego em casa e minha mãe me pergunta se foi tudo bem na festa. Digo que foi tudo ótimo, digo que demorei um poco porque levei uma amiga no ponto de ônibus. Ela fica feliz, nem me pergunta como minhas roupas estão secas. Vou para o quarto, apago a luz e me divirto gerando pequenas bolhas de plasma no escuro. Tenho súper poderes, mas sou lúcido o bastante para não querer ser herói.</span></span></p><p align="LEFT" class="western" style="font-family: Georgia, serif; font-size: 10pt; line-height: 17.333332061767578px; margin-bottom: 0cm; orphans: 1; text-align: justify; text-indent: 0cm;"><br /></p></span>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-29583810112273864702017-02-20T16:27:00.000-03:002017-05-18T14:14:14.447-03:00Cidade dos AtoresO garçom que acaba de trazer a conta não é garçom. O taxista que me leva ao hotel não é taxista. O gerente que dá instruções a uma estagiária morena de cabelos longos nunca deve ter lido um livro sobre hotelaria. Na Cidade dos Atores todos são atores representando seus papéis. Estudaram e ensaiaram seus gestos, suas palavras, o sotaque, a surpresa ou a indiferença que revelam no olhar e no tom de voz. Muitos passaram anos na escola de arte dramática, debruçaram sua juventude sobre Shakespeare e Nélson Rodrigues. Alguns fizeram cursos mais rápidos, com ex-diretores ou atores famosos, mas esses cursos foram devidamente avaliados e certificados pela Secretaria de Cultura. Os intuitivos e autodidatas não são tolerados na cidade. Há profissionais estrangeiros, mas eles estudaram em seus países de origem e sabem imitar perfeitamente o sotaque local. Se alguém aparenta ser um americano ou um chinês, só pode ser um ator nacional desempenhando meticulosamente seu papel. Os atores estrangeiros não costumam representar estrangeiros; isso não seria nenhum desafio, nenhuma conquista excepcional.<br />
<br />
Claro que há turistas, a cidade não sobreviveria sem eles. Mas há também atores representando turistas, para tornar a experiência do turismo mais saborosa e completa. Um dia passei quase uma hora assistindo uma velhinha a tomar seu chá, num café decorativo, próximo ao centro histórico. A interpretação não foi menos que magistral. Enquanto lia o cardápio, a atriz encenou a serenidade ancestral das velhinhas, encarnou uma lentidão despreocupada, sustentou uma elegância suave, casual. Com a chegada do cheesecake, assumiu certa voracidade, porém matizada com um prazer requintado junto com breves alusões a uma angústia sutilíssima. Na sequencia retomou a serenidade, mas agora com uma energia e uma concentração realisticamente hipnóticos, culminando numa surpresa vigorosa, quando reclamou da demora da conta. O garçom atuou adequadamente, desculpando-se de forma sumária, fingindo não ver que eu, duas mesas atrás, de câmera ligada, vivia a euforia silenciosa de um espectador feliz. Só no dia seguinte percebi que o vídeo não havia registrado nem de longe a vitalidade irrepetível daquele momento. Lamentei inutilmente; precisei de outras experiências para me conformar. A magia misteriosa da atuação parece não admitir o automatismo das câmeras. O gesto mais vibrante, o olhar mais preciso, indubitável, repetidos em vídeo, parecem fingidos, forçados, artificiais.<br />
<br />
Faz anos que passo as férias na Cidade dos Atores, e minhas expectativas nunca foram frustradas. Um homem que barganha o preço das frutas com um camelô, meninas voltando da praia, balançando distraidamente os quadris, o motorista indignado que vocifera com o motoqueiro transgressor, tudo é feito com absoluta precisão e domínio. Um gesto atravessado, um mínimo exagero vocal deitaria a cena a perder, furtaria o prazer do espectador, perder-se-ia num caos tumultuoso de frases exclamativas e banais.<br />
<br />
Por isso suponho que haja uma fiscalização severa; os atores incompetentes são rapidamente demitidos, talvez exilados. A Cidade não pode admitir o erro, o acaso, a intromissão perniciosa da realidade. Imagino galpões impenetráveis, nos subúrbios, onde os textos são ensaiados, repetidos, repassados ao limite exaustivo da perfeição. Os profissionais devem dormir muito pouco, e passar as folgas numa cidade vizinha, onde talvez sejam reconhecidos, porém tratados como homens normais, que precisam comer, descansar, esquecer, não como atores que atuam que estão comendo, descansando, esquecendo.<br />
<br />
Certa vez fingi uma doença para assistir uma peça num hospital público. Me deliciei com as faces resignadas, o terror no rosto dos familiares, a impassibilidade altiva dos profissionais uniformizados. Naquele dia fui, muito brevemente, para justificar a cena do médico, um ator diletante e canastra. Aludi a uma vaga dor de coluna, tirei a camisa, deixei-me auscultar, medicar, aconselhar, apenas para me deleitar com um olhar de enfado, uma voz monótona, uma gesticulação frouxa, histrionicamente indiferente. Em busca de prazeres semelhantes, fui um passageiro de ônibus, um comprador de legumes, um homem comum, num bar, tentando esquecer sua solidão intragável. A bebida intensificou minha sensibilidade para a beleza de um momento programado e executado por mentes humanas. O garçom fingiu um vago interesse pelas minhas dores. O homem ao lado me contou um caso que seria mais pungente, mais dramático e cabal. Algumas mesas atrás um casal discutia furiosamente a intromissões frequente da sogra. Tencionei beber até a inconsciência, para ver como me tratariam no bar, se me levariam para o hotel, o que restaria da minha carteira, da minha dignidade. Meu estômago simplesmente me obrigou a desistir da ideia. O que fiz foi chegar cansado no quarto, imaginando como a atriz que representasse uma garota de programa teria fingido o orgasmo: o tom agudo dos seus gemidos, a pressão das pálpebras, a contração decidida das sobrancelhas. Farto de especular, deixei o espetáculo para outro dia.<br />
<br />
Quando volto para minha cidade natal a vida me parece deformada e sem sentido. Já não faço mais que trabalhar e juntar dinheiro para as férias. Descobri que algumas pessoas da minha cidade, e até do meu bairro, também já visitaram a Cidade dos Atores. Devem saber mais ou menos o que sinto quando estou por lá. Claro, que nunca quis conversar com elas. Diriam que a cidade é maravilhosa, intensa, sobre-humana, ou seja, nenhuma novidade. E, se por acaso não tiverem gostado, não tiverem sabido apreciar o prazer de viver cercado pela encenação e pelo fingimento, eu não toleraria ouvir sua opinião, assim como nenhum homem deste mundo tolera ouvir um juízo negativo sobre o mar ou o pôr do sol.<br />
<br />
Possuído por tais pensamentos, não seria natural que eu desejasse e pelo menos tentasse viver permanentemente na Cidade dos Atores? Essa ideia me ocorreu há alguns anos, perturbou meu trabalho e reduziu minhas horas de sono. Fui tantas vezes um turista no meio de profissionais. Não seria hora de ser um ator representando um turista? Esperei o tempo necessário, contando os dias e meses. Nas férias seguintes, voltei à cidade com um plano ousado, ambiciosamente teatral. Não fui para o hotel modesto, no centro, onde eu costumava me hospedar. Parti para um cinco estrelas, próximo a um monumento histórico, quatro vezes mais caro. Ao dar entrada, perguntei pelo menu do café da manhã; fingi certa perplexidade por não terem figos. O atendente, o ator, garantiu que tomariam providencias. No dia seguinte, encontrei os figos na mesa, mas não deixei que minhas pálpebras movessem um milímetro de surpresa. Acompanhei-os de queijo, caputino, broa de fubá. Mastigando a esponja adocicada, emiti uma aprovação gutural, fingi um prazer sublime. Só então me ocorreu que eu tinha espectadores. Nas mesas ao lado, os homens me observavam com uma atenção excitada, olhos fixos; eram turistas em busca do seu espetáculo. Nesse momento senti que eu havia exagerado. Os figos não justificavam um prazer tão elevado. Além disso eu havia dado a entender, no dia anterior, que estava acostumado a eles. Meu gemido, portanto, não devia expressar nenhum êxtase, nenhuma satisfação fora do comum. Tive que admitir: minha estréia fora um fracasso.<br />
<br />
Voltei para o hotel. Ensaiei várias vezes a compra de um produto eletrônico. Decorei o texto, atuei a surpresa pelo preço, a indignação, a argumentação inútil, a derrota, a resignação, a submissão rancorosa. Quando me senti pronto, parti para a ação. Escolhi uma lojinha pequena, na zona norte, onde eu teria poucos espectadores. Selecionei um produto, espantei-me, questionei o vendedor, debati. Mas uma novidade deitou a perder minhas horas de ensaio. Naquela semana havia uma promoção, um imprevisível desconto de dez por cento. Confuso, tive que improvisar. Não sabia se o desconto deveria me levar ao contentamento, ou se eu deveria insistir, intensificar a revolta, alegando que o paliativo não tirava o preço da sua faixa exorbitante. Optei pela segunda via, mas não consegui expressar a intensidade necessária. A falta de ensaio me traiu. Minha voz saiu chocha, meus argumentos soaram capengas, falsos, teatrais. O balconista percebeu. Os outros consumidores perceberam. Na impossibilidade de pedir-lhes desculpas, apenas comprei o produto, paguei o preço, voltei para o hotel, derrotado. Meu plano naufragava. Talvez eu precisasse de mais observação, mais ensaios, mais tempo na Cidade dos Atores. Mas isso custaria caro. E agora muitos saberiam que eu não era ator. Talvez ninguém prestasse atenção quando eu entrasse num bar ou num cinema. Como última tentativa, desesperada, chamei uma garota de programa, com intenção de fingir absolutamente tudo. Fingir satisfação com seus seios grandes, fingir prazer com o aderente sexo oral, fingir um êxtase profundo com o alívio do orgasmo. Mas a menina quase não tinha seios, o oral foi com camisinha, e o orgasmo foi um alívio fraco e banal como um arroto.<br />
<br />
Naquela tarde achei que eu não conseguiria dormir, me condenando e martirizando pelas péssimas atuações. E no entanto, dormi como um menino, talvez por ter compreendido o erro que eu vinha cometendo. Os atores tinham algo que me faltava completamente. Disciplina, dedicação e talvez o tal do talento. Acreditar que eu seria um deles tão facilmente foi uma ingenuidade absurda. No dia seguinte eu estaria livre dessa sina. Tomaria o que servissem à mesa. Perambularia pela cidade, desatento a tudo, pegaria um táxi para qualquer lugar. De noite, daria saída no hotel e voltaria para a minha cidade banal. Mas no ônibus de volta, ou talvez ainda na rodoviária, eu perceberia um homem feliz. Um homem que tentou ser outro, e agora sabe quem é. Um homem que se equivocou, quase usurpou, sem querer, um cargo legítimo, e agora reconhece seu lugar na plateia; sem ilusões, sem ressentimento.<br />
<br />
<br />
Ronaldo Brito Roque
<br />
<br />
<br />Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-2773530405232267542016-05-26T14:18:00.001-03:002016-05-26T15:06:28.796-03:00Flanando por entre automóveis<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;"><br><br>Estou usando uma nova técnica com meu filho. Falo o tempo todo no irmão
dele, fico repetindo que ele é bem sucedido, que tem um emprego
legal, já está economizando para comprar um carro e essa coisa toda.
Meu filho vai ter que entender, ele precisa arranjar um emprego,
precisa largar essa obsessão pela música.</span></span></span></div>
<br />
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;">Semana
passada ele entrou aqui carregando o violão. Eu perguntei onde ele
estava. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Tocando
com os amigos. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Ah,
é? Tocando com os amigos? Escuta: seu irmão te falou o lance
maneiro lá na empresa dele?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Que
lance? </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Lá
tem um prédio só de estacionamento. Ninguém deixa o carro na rua.
A empresa tem estacionamento para os funcionários.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Ah,
legal. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Calma,
cara! Ainda não falei tudo. O prédio tem elevador, elevador para
carro! Ninguém fica manobrando naquelas rampinhas insuportáveis.
Você entra no elevador e chega no seu andar. Ponto final. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Nossa,
deve ser muito legal. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Claro
que é legal, rapaz. Só é. Se liga. Elevador para carro!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Ele
não demonstrou, mas sei que ele ficou impressionado. Tenho certeza
que ele vai acabar entendendo, só preciso continuar falando no
irmão, insistir nessa tecla. Outro dia eu desliguei a televisão e
ele sentou aqui um minuto. Já notei que ele não gosta de televisão.
Aproveitei para falar mais uma vez no emprego do Marcelo.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Seu
irmão te falou o lance lá da empresa?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Que
lance?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">O
ônibus pega todo mundo em casa. Ele não fica esperando ônibus,
cara. A empresa tem seu próprio ônibus.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Então
para quê o estacionamento?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Como
assim, para quê o estacionamento? Mas você não entende nada,
mesmo, hem! Seu irmão vai comprar um carro e vai usar o
estacionamento. Ele já fez uma poupança. Está econimizando para a
entrada.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Ah,
tá.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Não
é “tá”, não, rapaz. É muito mais que isso: o ônibus tem ar
condicionado! E a empresa também. A empresa tem ar condicionado
central, ninguém fica nesse calor insuportável!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Não
precisa gritar, eu acredito. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Mas
não é para acreditar, garoto. Você tem é que entender. Você
também tem capacidade para arranjar um emprego desses. Basta se
empenhar, correr atrás!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Mas
eu já tenho emprego. Eu não toquei lá no Suruba's?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Ah,
meu filho, olha só como você fala. Toquei lá no Suruba's! Até
parece que isso é um emprego de verdade. Toquei lá no Suruba's!
Pelo amor de deus, vê se cresce. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Tá,
pai, já entendi. Agora eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o
pessoal.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Pensa
no ônibus, meu filho. Tem ar condicionado!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Coitado
do meu filho. Ele se encontra com os amigos para falar de música e
diz que tem uma reunião. Acho que a cabeça dele não está muito
legal. O problema é que uma terapia deve custar uma fortuna. Não
tem outro jeito, preciso continuar com a minha técnica. Uma hora ele
vai entender. E quando o Marcelo estiver por aqui, vou falar com
ele: “Dá um toque no seu irmão, cara. O moleque precisa acordar,
precisa largar esse violão.” O Marcelo vai me ajudar, tudo vai se
resolver, eu tenho certeza.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Ainda
bem que eu tenho o Marcelo. Ele me dá alegrias que compensam as
loucuras do caçula. Quando ele deu entrada no carro, a mãe dele
ficou tão feliz que nem conseguia falar. Ele passou aqui, levou a
gente para uma volta. Eu ficava passando a mão no carro, sentindo
aquela sensação gostosa de coisa nova, de coisa que saiu da
fábrica. Lembrei do meu velho Monza e bateu uma saudade danada. Hoje
não tenho mais carro, mas não ligo para isso. A única coisa de que
eu preciso nessa vida é ver o meu caçula num bom emprego. Não
tenho mais ambição, só quero o bem dos meninos.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;">Não
falei nada para o Marcelo, mas enquanto eu passava a mão no carro,
sentindo aquele brilho, aquela textura refrescante, fiquei
mentalizando que o Vanesso também vai se arranjar, vai comprar um
bom carro, alugar uma quitinete bacana, mais perto da cidade. Ele não
é burro, só precisa se dedicar. Minha mulher me abraçou: – Você
está pensativo, meu bem. O que foi? – É só felicidade, meu amor.
Só felicidade. Olha esse estofamento, essa porta-luva de duas abas,
que coisa linda! </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Você
viu o som, pai? É para pendraive! Você coloca o pendraive aqui, ó!
Você coloca assim, ó!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Eu
sei, meu filho, eu sei. Não sou tão velho, sei o que é um
pendraive.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Aquele
foi o meu grande momento. Estive no paraíso por alguns minutos.
Infelizmente voltei para casa, e lá estava o Vanesso, com aquele
aparelhinho no ouvido.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Onde
você estava, meu filho?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Dando
uma volta.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Dando
uma volta? Por que você não estava aqui, para ver o carro do seu
irmão? O som tem pendraive, você poderia colocar essas músicas do
seu aparelhinho.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Você
deve estar querendo dizer que o som lê pendraive. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Lê
pendraive, tem pendraive, que diferença isso faz! O importante é
ter um carro daquele. Você já é um adulto, devia saber disso.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Ah,
tá, desculpa. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;">Agora
ele pegou essa mania de pedir desculpa. Eu odeio quando ele faz isso,
me dá vontade de descer a mão na cara dele. Liguei a televisão bem
alto, para ele sair da sala. Isso nunca falha. Ele subiu para o
quarto e ficou na dele. Não sei mais o que fazer. Acho que está até
batendo uma depressão. Quando eu chego em casa e não vejo meu
filho, sei que ele está com aquela molecada, brincando de ser
músico. Depois ele chega, se tranca no quarto e fica a noite inteira
ouvindo aquele aparelhinho insuportável. Não sei como ele aguenta. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Acho
que estou chegando no meu limite. Talvez eu é que esteja precisando
de terapia, mas deve custar os olhos da cara. Não posso gastar
dinheiro com essa frescura, tenho que me segurar. Por isso resolvi
ligar para o Marcelo, para bater um papo, descontrair, falar do carro
novo. Mas eu senti que ele estava esquisito, desconversando, meio
desanimado.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">O
que foi meu filho? Você está estranho.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Não
é nada, pai.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Desembucha,
rapaz. Eu sou seu pai, você pode contar comigo para qualquer coisa.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Pô,
pai, sabe o que é? Eles cobram para a gente estacionar o carro lá
na empresa. Só descobri essa semana.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">O
que é isso, meu filho? O que você está falando? Isso não faz
sentido!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Pois
é, pai. Eu também fiquei chocado. Só gerente pode estacionar de
graça. Empregado tem que pagar.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Mas
não pode ser. Isso é sacanagem demais!</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Só
é. Por isso eu estou meio chateado, acho que vou voltar a ir de
ônibus. No fim das contas não compensa estacionar o carro lá.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Não,
meu filho. Não fala isso. Agora você tem o seu carro. Você tem que
ir de carro. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">É,
não sei... Ainda não sei o que vou fazer, vamos ver como fica no
fim do mês. Ainda estou pagando as prestações do carro, né. E o
estacionamento é caro para diabo.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Meu
deus, que cretinice! Não acredito que o dono da empresa faz isso com
os empregados.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Pois
é... O carro cabe direitinho dentro do elevador, você tem que ver, pai.
Eu queria até levar você lá. Mas fica tão caro. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Ah,
meu filho. Não fala assim. As coisas vão melhorar, você vai chegar
a gerente, eu tenho certeza.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">É
pai, eu sei, eu sei. Deixa para lá. Outro dia a gente conversa mais.
</span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Amanhã
eu te ligo, meu filho. Não fica triste, não. Isso vai mudar, eu
tenho certeza.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Quando
desliguei estava quase infartando. Aquilo era canalhice demais!
Cobrar estacionamento dos próprios empregados? Que tipo de empresa
faz uma sacanagem dessas! Deve haver algum tipo de lei contra isso,
não é possível. Sentei no sofá, senti meu coração vibrando como
um tarol, minhas mãos tremendo. Minha mulher entrou na sala de
repente.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Você
vai assim mesmo, amor?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">O
quê?</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">O
chou do Vanesso, você não lembra? O Vanesso vai tocar com a banda
no bar Penicão. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Vanesso?
Ah, meu deus, eu tinha esquecido completamente. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Põe
uma calça pelo menos. Você está com essa bermuda o dia inteiro.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black; font-size: large;">– <span style="font-family: "charter" , serif;">Tá,
vou me trocar, pode deixar.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Vesti
a calça, e saímos. Eu tinha esquecido completamente desse chou –
que não era chou coisa nenhuma, era só o Vanesso tocando com
aquela molecada. Mas pelo menos eu ia me distrair, esquecer um pouco
a tremenda sacanagem que fizeram com o Marcelo. Não dava nem para
acreditar, cobrar estacionamento dos próprios empregados! Devia
haver alguma lei contra isso. Se eu tivesse ao menos coragem de
conversar com um advogado, tenho certeza que eu descobriria alguma
coisa. Mas eu não tinha coragem de conversar com advogado, nem o
Marcelo teria coragem de acionar a empresa, então era melhor
esquecer.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Sentei
com minha mulher e pedi logo uma caipirinha. O Vanesso acenou para a
gente, começou a tocar um sambinha. Minha mulher falou o de sempre:
não vai beber muito, não sei o quê. É por isso que eu não gosto
de sair com minha mulher, ela fala sempre as mesmas coisas, já sei
até as frases que ela vai usar. Pedi mais uma para ver se eu
esquecia minha mulher também. Fui bebendo e sentindo aquele
relaxamento gostoso, aquela soltura. Comecei a ouvir a música como
se ela fosse uma coisa muito minha, como se já estivesse dentro de
mim e nem precisasse de ouvido para chegar na minha cabeça. De
repente escutei aquelas frases:</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Flanando
por entre automóveis</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>da
garagem vertical.</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Curtindo
a brisa suave</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;"><i>do
ar condicionado central, </i></span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Lá
vai meu irmão,</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>lá
vai meu herói.</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Lá
vai meu irmão,</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;"><i>fenomenal.
</i></span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;">O
que era aquilo? Eu nunca tinha ouvido aquela música. Só podia ser
coisa do Vanesso! Mas a loucura toda é que, de alguma forma, a
música era minha também. Era sobre o Marcelo, meu filho preferido,
meu herói. Aquilo era muito meu! Fechei os olhos e cantei
naturalmente, como se eu soubesse a letra de cor; como se eu nunca
tivesse ouvido outra coisa na vida. </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Lá
vai meu irmão,</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>lá
vai meu herói.</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Lá
vai meu irmão,</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;"><i>fenomenal.
</i></span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;">Quando
reabri os olhos, minha mulher estava batendo palmas, toda
entusiasmada. – Você já conhecia? Já conhecia e não me falou
nada! Como você conseguiu guardar segredo? </span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;">Claro
que eu não conhecia coisa nenhuma. Mas senti que meus olhos estavam
molhados. Eu estava chorando, nem sei se de tristeza ou de alegria.
E, para falar a verdade, não quis saber. Cerrei os olhos e
continuei cantando.</span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Lá
vai meu irmão,</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>lá
vai meu herói.</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif; font-size: large;"><i>Lá
vai meu irmão,</i></span></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-indent: 1.1cm;">
<span style="font-size: large;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "charter" , serif;"><i>fenomenal.
</i></span></span>
</span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; text-indent: 1.1cm; widows: 0;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div align="JUSTIFY" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;">
<br /></div>
Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-45847028572016018132013-12-01T17:58:00.003-03:002013-12-07T23:40:02.407-03:00Prazeres secretos de Adriana Milane<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<br /></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Adriana cultiva pequenos prazeres que ela não conta nem para as melhores amigas. Por exemplo, marcar encontros e não comparecer. Marcou com Nelinho quarta-feira passada. Os dois iam tomar uma cerveja num bar de esquina, em frente à praça Velha Montenegro. No telefone, Adriana comentou que o bar estava de cara nova, haviam mudado a decoração, colocaram um piso diferente, de cerâmica portuguesa, e essas mesinhas de pedra polida, que ela nunca sabe se é mármore ou granito. Nelinho parecia empolgado: </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Então está marcado. Sete e meia. Não vai esquecer, hem, princesa! </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Claro que não.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Sei que você sempre atrasa uns dez minutinhos.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Que é isso! Não atraso, não, de jeito nenhum!</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Não tem erro. Já estou acostumado. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Tudo bem, talvez eu atrase uns cinco minutos. Mas eu chego, pode me esperar. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Então tá, meu anjo. Te espero lá.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Beijo, gracinha.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b id="docs-internal-guid-47643b24-afed-5737-3902-a2b2329356bd" style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Na quarta à noite Adriana se deitou na cama e ficou pensando numa luminária sofisticada que vira numa revista de decoração. Três lâmpadas envoltas em vidro escovado, unidas por uma armação metálica orgânica e tortuosa. Um objeto que parecia uma fusão perfeita de planejamento humano com as imprevisíveis e caprichosas leis do acaso. Quando notou que já eram sete e meia, ela foi sentindo aquele calorzinho gostoso, aquela comichão suave na altura das pernas. Nelinho devia estar saindo do táxi, entrando no bar, escolhendo uma mesa num cantinho mais escuro. Às sete e quarenta ele devia estar pedindo uma água mineral, segurando-se para não mandar uma mensagem para o celular dela. Sete e quarenta e cinco, chegou a mensagem, e Adriana estava de olhos fechados, alisando a parte interna das coxas. Adivinhava que Nelinho estaria pensando avidamente nela, verificando o celular a cada quinze segundos, ansioso pelo momento em que ela entraria no bar e olharia ao redor, procurando por ele. Sete e cinquenta chegou a segunda mensagem, e o travesseiro já tinha ido para o meio das pernas. Adriana sabia que o homem estaria considerando pedir a conta e jurando para si mesmo nunca mais marcar nada com aquela vadia. Mas ela ainda acreditava numa terceira mensagem, implorando disfarçadamente, falando algo como "hoje não deu, mas talvez na sexta" ou "vou ficar até tarde na Lapa, se der, passa lá". E de fato a terceira mensagem chegou alguns minutos mais tarde, quando Adriana já estava suada, revirando os olhos, ofegante como uma jogadora de tênis. Estava se tornando um vício. Quase toda semana, era pelo menos um encontro que ela frustrava por mero prazer.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Outra coisa que sempre a diverte é pedir pequenos favores aos colegas de trabalho. Todo dia, antes de sair da agência, ela guarda o corretivo num dos armários do corredor, para garantir o prazer de pedir, no dia seguinte, que algum colega o pegue para ela. Quando um desavisado entra na sua sala, e pergunta se ela já preencheu alguma planilha idiota, ou puxa assunto sobre a última bobagem do ator do momento, Adriana responde no piloto automático, depois acrescenta, displicentemente: </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Vem cá, já que você está mais perto do corredor, pega o corretivo para mim. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Claro, é para já <span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">― </span>diz o desavisado, sem saber que, assim que ele virar as costas, ela vai fechar os olhos, morder de leve o lábio inferior e sentir um arrepio gostoso lhe subindo pela espinha.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Claro que ela nunca usa o corretivo, que é coisa de gente preguiçosa e nojenta. Quando tiver sua própria empresa, não hesitará em demitir todos os funcionários que usarem aquela meleca fedida. Está se deliciando com esse pensamento quando o néscio volta com o vidrinho na mão, feliz como um cachorrinho de madame. Ela agradece sem tirar os olhos dos papéis sobre a mesa, e espera que ele saia da sala para voltar a suas fantasias.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Adriana ainda não sabe se quer ter seu próprio negócio ou ser gerente de uma empresa maior. Mas tem certeza que deseja o poder de demitir. Quando ela for chefe de departamento, e um funcionário fizer uma besteira qualquer, como usar o corretivo ou repassar piadinhas machistas para os emeils dos colegas, Adriana vai anotar na sua agenda que precisa conversar com aquele fulano. Na sexta-feira, no último minuto do expediente, vai chamá-lo à sua sala, vai falar pacientemente, num tom sereno e firme, que aquele tipo de comportamento não corresponde ao perfil da empresa. Vai explicar que a gerência busca homens com autodomínio, segurança, mas também gentileza, educação e até certo refinamento. Firmeza por dentro e leveza por fora. Ele não deve esquecer: esse é o perfil que a empresa deseja manter no seu quadro de funcionários. E o boçal vai sair da sala atordoado com aquele sermão, mas vai deixar para trás uma mulher satisfeita, com a musculatura do quadril firme, as faces coradas, os lábios levemente contraídos e uma impressão de serena felicidade.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Porém tudo isso seriam apenas primícias para a disciplinada e hierárquica Adriana Milane. O êxtase propriamente dito só viria numa situação extrema. Na semana seguinte, por exemplo, o mesmo funcionário talvez revelasse não ter aprendido a lição. O suculento corretivo emplastaria novos relatórios; uma estagiária repassaria, sem querer, uma piadinha ridícula que recebera, por emeil, do visado fulano de tal. Então Adriana Milane trincaria os dentes e tomaria um fôlego profundo. Sentiria as batidas do coração subindo-lhe até o topo da cabeça. Contaria até dez, rememorando suas aulas de meditação, e hesitaria por alguns segundos antes de se decidir pela demissão. Mas tão logo o decidisse, já começaria a sentir uma agradável sensação de conforto. Sua pressão voltaria ao normal. Um relaxamento vitorioso lhe tomaria os ombros e as costas. Ela deixaria a agência mais leve naquela noite, já programando o espetáculo que encenaria no dia seguinte.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">E o dia seguinte, desde o primeiro instante, já seria um dia triunfal. Cada vez que olhasse ou simplesmente lembrasse do néscio do corretivo, ela teria um pequeno arrepio de prazer. No fim da tarde, ligaria para o ramal dele e o intimaria a uma conversa na sala dela. O homem iria tranquilo, antevendo um mero sermão inútil de uma chefe histérica. Mas dessa vez teria uma surpresa.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">A gerente olharia para ele com um desprezo calculado, perguntaria num tom baixo e suave:</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> O que aconteceu com esse emeil? Você não conseguiu se conter?</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Passaria para ele uma folha impressa com a piadinha machista. O homem não disfarçaria o susto.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Isso não foi enviado para você!... Quer dizer, para a senhora. Não tem nada a ver com a empresa, mandei só para alguns amigos... não sei como... </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Adriana morderia os lábios, seu prazer começaria a chegar num ponto difícil de manter invisível.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Então foi você que o repassou aos colegas? Você confirma essa informação?</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Mas quem repassou para a senhora? O sujeito que fez isso não estava bem intencionado, não respeitou minha privacidade, você não vê que é alguém que…</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">O homem a essa altura já tremeria. Adriana também, mas não por medo ou irritação e sim por um motivo sublime. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Então, senhor Damasceno <span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> ela adora usar sobrenomes <span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> a situação está suficientemente esclarecida, não acha? O senhor desrespeitou uma norma da empresa, e já tinha sido alertado sobre isso. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Não, mas eu… quer dizer, não tem nada a ver com a empresa, não mandei para ninguém da empresa.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> E além de tudo está mentindo. Se não mandou para ninguém da empresa, como o emeil chegou até mim?</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">E nesse momento ela teria que abaixar a cabeça e fechar os olhos, porque as contrações ficariam mais fortes. O homem começaria a tagarelar. Ela precisaria agir rápido.</span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Amanhã o senhor pode passar no RH. Se preferir esvaziar sua mesa amanhã, não tem problema nenhum. Não precisa se preocupar com o computador, o técnico vai formatar o HD e deixá-lo pronto para o novo funcionário. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">O homem notaria algo diferente na última frase, que sairia trêmula e sibilante. </span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="line-height: 24px; text-align: justify; text-indent: 51.02362060546875px;">―</span> Vou pedir para o senhor se retirar. Estou sentindo um leve mal estar, preciso ficar sozinha.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Adriana chegaria à porta já ofegando ligeiramente, manteria os olhos baixos quando Damasceno passasse por ela. Não notaria se o homem olhasse com perplexidade para seu pescoço suado; não ligaria a mínima se o boçal estivesse em estado de choque. Assim que ele saísse da sala, ela firmaria as costas na parede, esticaria as pernas e empurraria os pés contra o chão. Sentiria as contrações violentas agindo nas coxas e nos quadris, soltaria o ar em gemidos lentos e abafados, depois morderia os lábios, apoiaria uma mão na maçaneta e suspiraria como quem entra num banho quente. Quando sentisse as virilhas molhadas já estaria soberbamente satisfeita. Pensaria que aquele foi dos grandes e era uma pena não poder repeti-lo com frequência.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">Quando entrasse no banheiro, estaria relaxada o bastante para curtir uma mijada lenta e sonora. Depois enxugaria sem remorso o excesso de umidade. Diante do espelho, se recomporia com tranquilidade, sem o menor sentimento de culpa. Os funcionários a essa hora já teriam ido embora, ela poderia voltar para sua sala cantarolando, talvez até se debruçasse na janela e apreciasse por um segundo a paisagem de janelas uniformes em frente a seu andar. Em algum lugar lá em baixo caminharia um homem arrependido de usar corretivo e repassar piadas por emeil. Pensar nisso deixaria Adriana serenamente feliz, sentindo-se como se tivesse cumprido sua missão no mundo. Lamentaria apenas não poder ver a expressão do sujeito, não poder assistir de alguma forma como ele agirá no próximo emprego, se realmente mudará de atitude ou encontrará uma chefe mais piedosa, complacente com sua rudeza e descortesia. O mundo está cheio de gente complacente, por isso tudo anda tão sujo e mal acabado.</span><br />
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><br /></span></div>
<b style="font-weight: normal;"><span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"></span></b>
<br />
<div dir="ltr" style="line-height: 1.5; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: black; font-family: Georgia; font-size: 15px; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;">E quando volta para sua realidade, Adriana sente certa umidade delatora nas virilhas. Agora precisa realmente ir ao banheiro, mas o banheiro da pequena imobiliária onde trabalha é minúsculo e abafado. O papel higiênico é áspero e o vaso recende a urina masculina. Nesse cubículo humilhante, ela se recompõe com dificuldade e quase sente vergonha de ter se masturbado no trabalho. No ônibus para casa, ela pensa em ligar para Nelinho e marcar alguma coisa para o fim de semana. Nelinho é estúpido o bastante para cair novamente na sua armadilha. Em casa, depois de um banho quente, ela pega a revista de decoração e olha mais uma vez sua luminária preferida. Faz mentalmente as contas. Mais três meses e ela poderá comprá-la. Três meses não é muito. Ela tem paciência, perseverança e disciplina. Ela sabe que pode esperar. Esperar é tudo que ela sabe fazer. </span><br />
<br /></div>
Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-54640200550653423532012-12-05T13:51:00.001-03:002013-04-26T17:34:12.778-03:00Sala Privê<br />
<br />
<div class="western" style="margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<br /></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Conheci
Luciana numa reunião do Clube da Leitura, que é um clube onde as
pessoas lêem trechos de livros e comentam sobre o que gostaram ou
não gostaram. Na verdade acontece mais coisa, mas eu nunca entendi
direito, então é melhor nem tentar explicar. Faz tempo que parei de
frequentar, primeiro porque não gosto de ler, e segundo, e mais
definitivo, porque lá só dava coroa. Luciana era uma exceção, com
seu vestido preto, seu decote autoafirmativo e sua maquiagem
vulgar, avacalhada pelo verão do Rio. No dia que nos conhecemos ela tinha ganhado o premiozinho
da noite e não me deu muita atenção. Algumas semanas depois,
justamente quando eu estava percebendo que aquilo não era lugar para
mim, ela veio falar comigo. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Gostei
do trecho que você leu.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Eu
tinha lido o trecho de um livro que peguei lá em casa, acho que era
da minha mãe. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Legal,
né. Olha, eu estou só dando um tempo aqui, depois eu vou para a
Homens de Terno. Você está a fim de ir? Meu carro está ali na
Hilário de Gouveia.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Homens
de Terno, o que é isso?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É
essa boate nova que abriu aqui em Copa. Tá bombando, tá todo mundo
indo para lá. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Homens
de Terno? Não, acho que eu não conheço, não... Mas olha, eu tenho
estágio amanhã, então fica para outro dia, tá. Você vem sempre
aqui, a gente vai acabar se encontrando. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Preferi
não dizer que eu não voltaria mais ao clube. Peguei o carro e fui para
a Homens de Terno. Lá tem um lance legal, você escolhe algumas
músicas numa tela, e o sistema vai tocando automaticamente as mais pedidas. As que eu escolhi nunca foram tocadas, mas
claro que eu não ligo. Eu gosto mesmo é de tecnologia. Sou
<i>webdesigner</i> e estou pensando em fazer um curso de programação.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Fiquei
por ali, dançando e bebericando minha caipvódica. De repente quem
eu vejo na pista? Era a Luciana, achei que ela parecia mais
alta, mas era ela mesmo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ué,
você falou que não vinha.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Olha
que louco. Uma amiga me ligou, perguntei onde ela estava, e ela falou
que estava aqui. Achei uma súper coincidência.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">E
cadê sua amiga? </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ela
já foi.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ah,
tá. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Fiquei
dançando um pouco, depois fui comprar um Red Bull. Quando voltei
para a pista, eu já estava um pouco alto e fui me aproximando da
Luciana e dançando com os braços meio abertos. Ela deve ter achado
que eu queria abraçá-la, e me abraçou, e a gente ficou dançando
agarradinho, até nossas bocas se encontrarem meio sem querer ou por
querer ou por nada. Ela não era assim aquela gata, mas tinha um
corpo legal e beijava gostoso. Passamos um tempo nos beijando e
dividindo o Red Bull, depois ela falou que queria uma água e a gente
foi para uma mesinha. Eu notei que ela estava sem sutiã, e uma
mulher sem sutiã me dá uma aflição que eu não sei explicar.
Esperei ela acabar a água, e falei:</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Olha
só, tem umas salas privês aqui, só que a consumação é mais cara.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Eu
não ligo para sala privê. Você liga para sala privê?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Pois
é, eu prefiro a sala privê, a gente fica mais à vontade, tem ar
condicionado... Olha só, se eu pagar a consumação, você acha que
dá para rolar um sexo legal?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">O
quê?! Você tá doidão, cara? O quê que você tomou?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Tomei
só o Red Bull mesmo. Estou perguntando para evitar mal entendido.
Não quero pagar a sala privê para a gente ficar só beijando.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Quê
é isso, cara?! Você é louco? Isso não é jeito de falar com
mulher, não. Se você está acostumado a falar assim, você deve
estar andando com gente muito vulgar.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Desculpe,
eu queria falar antes, para não ter mal entendido. Ia ser muito
chato se a gente entrasse lá na privê e você não quisesse
transar. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Pô,
cara, não é que eu não queira ir para a privê, mas desse jeito
que você falou, sinceramente, isso brocha qualquer uma.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Tudo
bem, tudo bem. Não precisa ficar nervosa. Eu só queria perguntar
antes para evitar mal entendido...</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Sei...
Você é muito sinistro, viu. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É...
Eu sou meio sinistro...</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Ficou
aquele clima estranho. Eu não sabia o que dizer, e estava louco para
ir para a sala privê. Deixei passar um tempo, e falei:</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Olha,
a gente pode se ver outro dia. Deixa seu telefone comigo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É,
acho que vai ter que ser outro dia mesmo. Hoje foi estranho, né. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É,
pois é...</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Vem
cá, me fala só uma coisa. Você já falou assim com outra mulher?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Já,
já falei, sim.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">E
deu certo?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Não
é uma questão de dar certo. Ela também queria ir para a sala
privê.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Meu
Deus, mas você não entende, né! Não é que eu não quisesse ir,
mas desse jeito que você falou, simplesmente não dá, cara. Não é
assim que se fala com uma mulher.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Eu
sei, você já falou isso... Mas eu sou assim mesmo, gosto de deixar
as coisas bem claras. É o meu jeito, sei lá. Mas olha, agora eu vou
lá para a privê, tá. Outro dia a gente conversa. Me fala seu
telefone aí, qualquer dia eu te ligo. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Ela
falou o telefone e eu salvei por puro reflexo. Não estava pensando
em vê-la de novo. Quando entrei na privê, senti aquela sensação
gostosa, aquele conforto, aquela tranquilidade. Tinha ar
condicionado, tinha um sofazão, o vidro fumê dava para a pista.
Fiquei um tempo curtindo aquele clima gostoso, depois liguei para o
Minuto (o nome do cara é esse mesmo, Minuto).</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Fala aí,
Minuto! Beleza?... A Bárbara está por aí?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">A
Bárbara não está aqui em baixo, não. Deve estar atendendo alguém.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Tem
alguma peituda, aí?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Tem
uma charmosona aqui, que chegou há pouco tempo do Espírito Santo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Quando
o Minuto fala “charmosona” é porque a mulher é meio coroa. Não
curto coroa, falei com ele para me ligar se chegasse alguma garota
mais nova.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Passou
um tempo, o Minuto me ligou.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Chegou
uma menina aqui. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É
branca? Cabelo liso?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Sim,
é branquinha, cabelo liso. Duzentos reais.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Fala
com ela para subir.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">A
garota valia até mais que duzentos. Era novinha, tinha um corpaço.
O foda é que tinha aquele sotaque carregado do interior de Minas.
Odeio esse sotaque. Faz a mulher parecer uma empregadinha. Mas a vida
é assim mesmo, não se pode querer tudo na mesma noite, na mesma
mulher.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Apesar
de novinha, a garota era experiente e conduziu muito bem a situação.
Me relaxou de várias formas. Depois me bateu uma fome danada e eu
pedi um chisbúrguer com batata. Quando vi que ela ficou de bobeira,
fazendo hora ali na sala, disse que estava esperando um amigo e pedi
que ela se retirasse. Se eu não fizesse isso, ela ia avançar na
minha batata. Eu conheço bem essas meninas, sei o que estou fazendo.
Comi meu chisbúrguer numa boa, depois fiquei de bobeira, simplesmente
ouvindo música e me sentindo feliz. Não sei se é assim com todo
mundo, mas depois do sexo eu sinto uma coisa tão boa que só pode
ser felicidade. Depois fui para casa dormir com a minha felicidade.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Algumas
semanas depois, eu estava sozinho, e resolvi voltar no Clube da
Leitura. Não gosto muito daquele lugar, mas, como não consigo ficar
em casa, acabo indo para qualquer lugar onde tem alguma coisa
acontecendo. Peguei um livro da minha mãe, e fui.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Assim
que cheguei, vi a Luciana. Achei que ela nem ia me cumprimentar. Mas
ela veio falar comigo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">E
aí, tudo bem? Como é que foi aquele dia lá na boate? Você
encontrou alguém que queria ir para a privê?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Encontrei,
sim. Chamei uma garota de programa.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ah,
chamou uma garota de programa?! Então você é um homem moderno,
século XXI?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É,
acho que eu sou, sim.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Alguém
chamou a atenção da gente. Estávamos atrapalhando o evento.
Ficamos quietos, aguardando nossa vez. Depois abri o livro em
qualquer página e li um trecho lá. No fim do evento todo mundo
votou no meu trecho, e fiquei em dúvida se devia ficar contente ou
envergonhado. Mas resolvi ficar contente.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Quando
tudo acabou, a Luciana veio falar comigo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Legal
esse livro. É da Anaïs Nin, né.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">É...
</span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Vem
cá, você vai para a Homens de Terno hoje?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Posso
ir.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Você
me leva?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Levo,
sim. Tudo bem. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Quando
entrou no carro, ela ficou folheando o livro, depois falou: ―
Parece que é muito maneiro esse livro. Você me empresta?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">O
livro é da minha mãe, não posso emprestar, não.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ah,
tá... Tudo bem... Eu vou anotar o nome, depois eu tento baixar na
internet...</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Chegamos
na Homens de Terno e ficamos dançando assim de bobeira, sem muita
vontade. Acho que ela estava chateada comigo, porque no outro dia eu
a tinha deixado sozinha. Mas o que eu podia fazer? Eu estava muito a
fim de transar. Se a gente fosse para a privê, e ela não transasse,
eu ia ficar muito puto. E de repente, quem eu vejo na pista? Leandra,
aquela loira catarinense inacreditável! Ela estava com uma blusa
rendada, transparente, chamando bastante atenção. Se eu não agisse
rápido, ia perder a oportunidade. Cheguei nela já falando: ― E
aí, Leandra, você está linda!</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">E
aí, gatinho. Tudo bem?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Vamos
subir para a privê?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">A
gente pode ir, mas hoje eu estou cobrando trezentos, tá.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Pô,
trezentos, Leandra? Por que é que aumentou assim, de repente?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">A
cidade está com pouco movimento, sei lá. Não está dando para
pagar as contas.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Tudo
bem, eu entendo. Eu tenho aqui, não tem problema.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Ela
abriu um sorrisão para mim, depois me deu um selinho. Meu Deus, não
tem nada melhor que uma mulher como a Leandra! O homem que inventou a
garota de programa fez um bem tremendo para a humanidade. É um dos
meus heróis, sem dúvida.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Mas
a Luciana estava ali do meu lado, e ela ficou me olhando com uma cara
súper amarrada. Fiquei meio sem graça, e resolvi apresentar as
duas. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Olha
só, Luciana. Essa aqui é a minha amiga, Leandra.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">A
Leandra estava de salto e chortinho de látex. Ela tinha cabelos
pintados, quase amarelos, e seios do tamanho de bolas de vôlei.
Estava meio na cara que ela era garota de programa. A Luciana ficou
meio confusa, não sabia o que dizer. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Prazer...
Eu conheço o Rodrigo lá do Clube da Leitura. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Eu
conheço ele daqui mesmo... ― Ela riu, com uma cara maliciosa. ―
Ele não sai daqui.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Exagero
dela, Luciana. Eu venho no máximo duas vezes por mês. Também não
sou nenhum Eike Batista, né.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Rimos
um pouco, falamos algumas trivialidades, depois subi com a Leandra
para a sala privê. Ela estava maravilhosa. Já temos alguma
intimidade. Ela é como uma velha amiga para mim, mas não perdemos muito tempo conversando.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Mais
uma vez, encontrei aquela felicidade serena e ao mesmo tempo
vibrante. Depois me deu um pouco de fome e fui para o bar, comer
alguma coisa. Assim que pedi uma batata, quem apareceu? A Luciana.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ué,
pensei que você já tinha ido.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Resolvi
ficar um pouco.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Me
dei mal. Quando a batata chegou, ela meteu a mão. É por isso que eu
não gosto de comer perto de mulher. Elas se sentem no direito de
comer o que é seu.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Passou
um tempo, falei: ― Tô indo. Ela me segurou pelo braço: ― Deixa
eu te perguntar só uma coisa. ― Fala, o que é: ― É que... essa
Leandra... Quer dizer, foi com ela que você subiu para a privê, não
foi? ― Foi ela mesmo. ― E ela... quer dizer, quanto ela cobra
para ficar lá com você? ― Duzentos. ― Nossa, duzentos reais?!
Duzentos reais para ficar uma hora na privê? ― Não sei se foi uma
hora, você marcou? ― É... Marquei... só de curiosidade. ― Pois
é, então é isso. Duzentos reais, uma hora. Agora eu preciso ir,
estou morrendo de sono. ― Você vai voltar no Clube da Leitura? ―
Não sei. ― Vai, sim, pô. Aparece lá. ― Tá, eu vou. Tchau.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Passaram
algumas semanas, lá estava eu no Clube da Leitura, de novo me
perguntando que diabo eu ia fazer naquele lugar. A Luciana viu que eu
estava com o mesmo livro, e perguntou: ― Anaïs Nin, de novo? Eu
nem sabia que o autor daquele livro se chamava Anaïs Nin. Os outros
livros que tinha lá em casa eram sobre dietas ou sobre os não sei
quantos passos das pessoas de sucesso. Aquele era simplesmente o
único que eu podia levar.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Chegou
minha hora, li qualquer trecho lá. Eles gostaram, até bateram
palmas. A Luciana me perguntou: ― Quando é que você vai me
emprestar?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Você
não conseguiu baixar pela internet?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Por
que você não baixa para mim? Você tem cara de ser meio <i>hacker</i>.
</span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Ah,
meu Deus, mulher é um saco. Dei um tempo e saí de fininho e nem
falei para a Luciana que eu estava indo para a Homens de Terno.
Fiquei com medo de ela pedir carona e ficar insistindo para eu
emprestar o livro. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Cheguei
na boate. Não deu cinco minutos e ela estava lá. Ficou falando
besteira, nhém, nhém, nhém, Anaïs Nin, não sei mais o quê. Eu
não aguentava mais, daí falei: ― Você me paga um Red Bull? Ela
falou: ― Tá sem grana? tudo bem, posso pagar. Então resolvi ficar
mais um tempo, porque pelo menos ela estava pagando o Red Bull. Daí
de repente me deu a impressão de que ela estava falando “se eu
fosse cobrar não seria menos de trezentos”, e acho que meu olho
brilhou. Eu pensei: a minha cabeça está latejando ou o quê?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">O
que foi que você falou?!</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Eu
falei: Anais Nin, nhém, nhém, nhém, não sei mais o quê.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Não!
Sobre os trezentos reais?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ué,
se eu fosse cobrar, não seria menos de trezentos. Não sou nenhuma
vagabunda, né. Eu tenho classe.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Olhei
para os peitos dela. Ela estava de sutiã, mas deu para ver que era
um sutiã honesto, sem enchimento. Daí mandei:</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Vamos
subir, eu tenho os trezentos aqui!</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Ah,
você é louco, né. Você era bem capaz de me dar esses trezentos
mesmo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Chega
de conversar, vamos para a privê, agora! Falei isso com raiva e
tesão, depois a agarrei e a beijei com força. Quando fomos para a
sala privê, meu coração estava a mil, eu sentia que estava me
acontecendo uma coisa estranha e bonita, uma coisa que não pode
acontecer todo dia. Abaixei o vestido dela, tirei o sutiã e nadei
naqueles seios lindos, porque eu era uma criança feliz, encontrando
uma piscina ou um brinquedo fantástico ou um milagre. Tudo foi quase perfeito, mas teve hora que ela ficou me olhando com uma cara
interrogativa, como se estivesse perguntando: “eu estou fazendo
direito? É assim que as putas fazem?”, mas também podia ser: “você
vai baixar o livro para mim? Você vai contar para alguém do Clube
da Leitura?”</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Só que, mesmo
não sendo perfeito, a felicidade do sexo me dominou; fiquei mais
uma vez com a impressão de que a vida valia a pena. O dinheiro, o
sexo, as prostitutas, tudo isso é muito bom, não entendo por que
tem tanta gente que fala mal. Assim que ela se vestiu, eu passei para
ela os trezentos reais. Ela enfiou na bolsa e falou: ― Você sabe
que eu só estou aceitando isso porque é uma fantasia sua, né. Você
sabe que isso não tem nada a ver comigo, é tudo uma loucura que
você criou.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Eu sei, isso não está acontecendo.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Ela
riu.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Você
vai ficar mortão aí, não vai descer? </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Vou
ficar mais um tempo aqui, só curtindo o ar condicionado. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Tá,
você tem meu telefone. Qualquer coisa me liga.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Fiquei
um tempo lá, deitado, só ouvindo a batida que vinha da pista,
pensando em como eu gostava daquele lugar, como eu gostava do meu
dinheiro, das mulheres brancas, dos peitos grandes... ou talvez eu
não estivesse pensando em nada, o que era ainda melhor.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Passou
um tempo e me deu aquela vontade de ir para o Clube da Leitura. Mas
eu queria ser forte, queria não ir. Peguei o telefone e liguei para
a Luciana. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Eu
estou aqui na Homens de Terno ― ela falou. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Você
não vai no Clube da Leitura?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Hoje eu acho que vou ficar por aqui.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Peguei
o carro e fui para a Homens de Terno, feliz por conseguir evitar o
Clube. Cheguei lá, não vi a Luciana, mas não liguei. Pedi uma
caipivódica e fiquei de bobeira. Daí a pouco aparece o Minuto.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Sabe
quem tá aí?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">A
Suzana?</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Não,
a Bárbara.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">A
Bárbara, que maneiro! Cadê ela?... Ah, tá, já vi, já vi.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Fui
dançando para perto da Bárbara, cumprimentei, perguntei se ela
estava esperando alguém, que é o jeito de perguntar se uma garota
está livre. Graças a Deus, ela não estava esperando ninguém, e
subimos para a privê. Eu não preciso descrever a Bárbara, pense
nas garotas mais bonitas que você já viu. Ela é tipo um resumo
disso, com a diferença de que nela você tem como chegar.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Relaxamos
gostoso, depois ficamos deitados de conchinha, num silêncio quase
íntimo. Ela perguntou: ― Você não sente frio com esse ar
condicionado? Eu falei que não, mas na verdade eu estava com um
pouco de frio, sim. E também estava com fome, e pensei uma coisa bem
óbvia: se eu pedisse comida pelo interfone, a Bárbara ia comer
comigo e não ia pagar. Então me vesti e falei que eu tinha que
voltar para o bar. Quando eu estava saindo da sala, vi uma
coisa que eu não podia acreditar, e um segundo depois eu acreditei e
achei espantosamente natural. A Luciana estava saindo de outra sala
privê e se despedindo de outro cara. Ela me lançou um olhar sério
e profundo, e aquele olhar dizia: não me cumprimente, finja que não
me conhece. Obedeci candidamente, como quem obedece a uma regra que
aprendeu na infância e não lembra que aprendeu. Mas não a perdi de
vista e mais tarde consegui me aproximar.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Você
foi no Clube da Leitura? ― ela perguntou.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Não
fui, não. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Olha
só, eu queria te pedir uma coisa. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Pode
deixar, eu vou tentar baixar o livro para você.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Não,
não é isso, não... É que... Não comenta com ninguém, não, tá.
Porque isso é uma coisa temporária, não vou fazer isso por muito
tempo. </span>
</div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
― <span style="font-family: Georgia, serif;">Que
é isso, não vou comentar nada com ninguém. Isso não está
acontecendo, é só uma loucura da minha cabeça.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Ela
riu uma risada gostosa, e ri com ela e acabamos nos abraçando,
deliciosamente. Me deu vontade de falar “eu te levo em casa”,
mas senti que isso estragaria o equilíbrio delicado daquela noite.
Eu precisava voltar sozinho, para pensar devagar e entender o que eu
já sabia. No carro lembrei que, quando nos conhecemos, ela estava
com uma maquiagem exagerada, fazia gestos vulgares, parecia uma
garota de programa. Naquela noite pensei que a diferença entre
minhas amigas e as garotas de programa era apenas o dinheiro dos
pais. Agora eu percebia que essa equação não era tão
simples. Talvez houvesse, em algumas mulheres, uma alma de
prostituta, esperando o momento certo para vir à tona. Eu fui esse
momento para Luciana. O destino me usou para permitir que ela se
revelasse a si mesma, e fizesse uma transição suave, sem traumas. Essa ideia me animou e confortou ao mesmo tempo, talvez
porque no fundo eu ame as garotas de programa. Sem elas eu seria
provavelmente mais um maridinho submisso, pai de dois filhos,
trabalhando incessantemente para sustentá-los. As prostitutas me
libertaram desse destino previsível e banal.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<span style="font-family: Georgia, serif;">Cheguei
em casa feliz. Minha mãe, mais uma vez, tinha dormido diante da
televisão. Desliguei o aparelho, fui para o quarto, encontrei, na
minha mesa, o livro da Anaïs Nin, que eu nunca tinha lido. Antes
pegar no sono, consegui ler algumas páginas.</span></div>
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; margin-left: 0.9cm; margin-right: 0.9cm; text-indent: 1.35cm;">
<br /></div>
<br />Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-63149700840123103912012-04-25T13:54:00.001-03:002012-04-25T13:55:17.398-03:00Eu, leitor<div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm;"><br />
</div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Não dava mais para viver com duzentos por semana. Passei a cobrar quatrocentos. Peguei um pedaço de madeira e fiz uma nova placa:</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><br />
</div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><i> Cobro quatrocentos reais para ler seu livro.</i></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><br />
</div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> A segunda e a terça foram mortas, nenhum movimento. Na quarta apareceu um sujeito de óculos e sapatos. Era jovem, mas se vestia como velho.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> <span style="font-family: Georgia, serif;">─</span> Você também lê teses? <span style="font-family: Georgia, serif;">─</span> ele perguntou.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Eu sabia perfeitamente o que era uma tese. Minha filha havia feito doutorado no exterior.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"> <span style="font-family: Georgia, serif;">─ Posso ler ─ respondi prontamente.</span></span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Eu posso pagar em duas vezes?</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"> <span style="font-family: Georgia, serif;"> Não costumo parcelar, nem aceitar fiado, mas o sujeito me pareceu honesto. Resolvi lhe dar essa chance. Ele me deu duzentos reais, esclareceu que fazia mestrado em ciências socais. Passaria no dia seguinte para ma deixar uma cópia da sua tese. Era sobre os possíveis motivos do aumento da prostituição no interior do Rio de Janeiro, entre garotas de 18 a 24 anos.</span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Na quinta peguei a tese, e já fui lendo no ônibus. O sujeito escrevia muito mal, mas seus argumentos tinham lógica. Ele defendia que certos livros de depoimentos de garotas de programa estavam influenciando o comportamento das jovens fluminenses. Os livros não deixavam claro se as mulheres haviam se arrependido de sua opção. Citava muito uma tal de Bruna Surfistinha, que fora <i>bestseller</i> no ano anterior. Li a tese em cerca de três dias, mas ele só apareceu, como tinha prometido, na semana seguinte.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"> <span style="font-family: Georgia, serif;">─ Então, o que o senhor achou? ─ Vi que ele estava ansioso.</span></span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Gostei.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Como assim, “gostei”?</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Seus argumentos têm lógica. Tenho visto muita menina rodando bolsinha, mas não sabia que era por causa desses livros.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Bem, é uma hipótese. Eu não fiz nenhuma afirmação cabal.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Eu sei, eu sei... Hipótese... Mas eu gostei.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"> <span style="font-family: Georgia, serif;">─ Só isso! Gostei!?</span></span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"> <span style="font-family: Georgia, serif;">─ Que mais eu posso dizer?</span></span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ O senhor fez alguma anotação?</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ Fiz não senhor. </span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> ─ O senhor só vai dizer que gostou?</span></span></div><div class="western" style="line-height: 130%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Senti que o rapaz queria confusão. Procurei ser enérgico.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"> <span style="font-family: Georgia, serif;">─ Olha, você leu o que está escrito aqui? “Leio seu livro por quatrocentos reais”. Você me perguntou se eu também lia tese, e eu disse que sim. Mas não disse que ia fazer anotação. Agora, por favor, veja o resto do pagamento. Meu trabalho é sério, não sou homem de ler mais de cem laudas por mera diversão.</span></span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="background-attachment: initial; background-clip: initial; background-image: initial; background-origin: initial;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> O rapaz deve ter visto que eu não estava de brincadeira, pois me deu logo os duzentos reais. </span></span> </div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Fiquei até contente quando ele foi embora. Eu estava com a impressão de que ele não tinha valorizado meu trabalho.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Na semana seguinte apareceram os clientes habituais. Eram funcionários públicos que me contratavam para ler seus livros de romance ou poesia. Também apareciam jovens autores que se queixavam de não ter a devida atenção da mídia. Eu sempre levei meu trabalho a sério, nunca fui de discutir. Lia todos os livros e exigia pagamento em dinheiro. Às vezes alguém me dava uma garrafa de vinho ou um exemplar autografado. Eu aceitava com gratidão, mas nunca pedi nada. Minha prioridade sempre foi o trabalho. </span></span> </div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><br />
</span></span></div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"> Depois daquele sociólogo, cheguei a pensar em não aceitar mais teses. Mas tinha muita senhora fazendo mestrado em Pedagogia ou Letras, e elas insistiam bastante. Resolvi aceitar, mas eu esclarecia que não fazia nenhuma anotação. As velhas concordavam numa boa, elas entendiam meu trabalho. Aliás acho que todo mundo continua entendendo meu trabalho. O tal sociólogo, graças a Deus, nunca mais apareceu por aqui. </span></span> </div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm;"><br />
</div><div class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm;"><br />
</div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-88141818772067793352012-03-17T12:08:00.007-03:002012-06-02T01:40:17.960-03:00O homem que não adivinhava<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">De todos os homens que conheci, o menos interessante era aquele que não adivinhava meus pensamentos. Desde o início ficou claro que a gente nunca entraria numa sintonia profunda. Na faculdade ele costumava me oferecer carona, dizendo que passava pela Praça Dezessete e não custava nada me deixar numa das esquinas. Quando ele parava no sinal, eu sempre comentava que minha casa era apenas a duas quadras de distância, na Rua Mochileiro Chileno. Eu pensava que ele ia falar alguma coisa tipo: é logo ali, eu contorno a praça e te deixo lá. Mas o idiota não sacava minha indireta, e respondia: que bom, assim você não tem que andar muito, né. Ele não tinha o menor talento para ler nas entrelinhas.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Uma vez a gente estava na chopada, e ele veio para o meu lado meio bêbado, com um papo estranho: sabia que eu te acho uma gracinha? Sério mesmo, você tem um charme assim, tipo mulher de filme antigo... Eu pensei: porra! Filme antigo? Eu mereço uma cantada melhor, né! Daí comecei a despistar e a encarar outros garotos, para ver se ele se tocava que eu não estava a fim dele, mas o pateta não percebeu, e continuou com aquela ladainha: você lembra um pouco a Eva Jarden, ou aquela atriz brasileira, como é mesmo o nome dela? Paula Zembinsque? Tânia Buginsque? E eu já estava até dando papo para os calouros, mas ele voltava toda hora, cada vez com um nome mais louco, Regina Faranges, Juliana Bitmarche? Como ninguém chegava em mim, eu vi que ia ter que pegar aquele trolha mesmo, e resolvi beijá-lo. Durante alguns minutos fiquei até contente, porque ele fez uma carinha de felicidade que eu achei muito bonitinha. Mas depois eu vi que a Ronize tinha conseguido pegar o Marcelo e fiquei morrendo de ódio! Aquela vaca da Ronize que nem tinha peito! O Marcelo deve ter entrado na dela só porque ela era cheia de tatuagem e toda metida a moderninha! Fiquei muito puta, peguei o homem que não adivinhava, que na época nem podia ser chamado de homem, era só um moleque que sabia dirigir, e fui para perto do Marcelo. Lasquei cada beijo incandescente, cada chupão no pescoço dele, que o Marcelo deve ter morrido de inveja. Na certa pensou em chegar em mim na próxima chopada. Mas quem acabou ganhando foi o idiota que não adivinhava, que nem sonhava que eu estava fazendo aquilo tudo só para atiçar a vontade do Marcelo.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois desse dia, ele começou a me beijar sempre que me deixava na Praça Dezessete, e eu ficava me perguntando quando ele ia perceber que eu queria que ele me deixasse na porta de casa. Quando eu não suportava mais aquela aflição, acabei falando: por que você não me deixa na porta de casa? É só contornar a praça e entrar na transversal. Ele disse: tranquilo, eu te deixo lá. Mas aquilo me deu uma estranha vergonha, eu me senti humilhada, derrotada pela minha própria ansiedade. Não tinha graça falar essas coisas em voz alta. Ele não estava ficando comigo? Por que ele não podia adivinhar?! Acho que foi aí que eu comecei a fantasiar um homem que pudesse ler meus pensamentos, que compreendesse o que eu queria sem que eu precisasse falar. Mas quanto mais eu sonhava com esse estranho telepata, menos eu falava, e mais o homem que não adivinhava fazia burrada.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No aniversário da minha mãe, eu achei que ele ia levar um presente bonitinho, fazer um elogio descente, talvez até falar que ela parecia uma atriz antiga, por que não? Se mamãe ficasse contente eu não ia ligar, apesar de ser um comentário ridículo. Mas o homem que não adivinhava não levou presente nenhum, e também não falou nada interessante, só deu os parabéns e ficou na sala falando de futebol com meus tios. Eu fiquei com vontade de sumir da vida dele, de nunca mais aceitar carona, só que o ônibus estava dois e oitenta, e, se eu economizasse, em duas semanas já dava para uma escova.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois meus tios ficaram me perguntando se ele era meu namorado, e até a minha mãe perguntou se a gente estava namorando, e como ela acrescentou que ele era bonitinho, eu acabei falando que sim. Afinal, ele já me levava em casa quase todo dia, já conhecia minha família, e o babaca do Marcelo já tinha pegado metade das meninas da faculdade, e parecia não dar a mínima para mim. Eu precisava de um namorado, e na falta de coisa melhor, ia ser aquele néscio mesmo. Daí comecei a beijá-lo na frente das meninas, para marcar território, e ele ficou todo bobo, falou que a gente já estava junto há muito tempo, e que ia começar a me apresentar aos amigos como namorada. Eu pensei: como esse moleque é ingênuo. Ele nem imagina que bastaria uma palavra de um cara como o Marcelo para eu nunca mais olhar na cara dele, e não lembrar nem em sonho que ele tinha passado a contornar a praça e me deixar na porta de casa. Mas essa palavra nunca apareceu, e o Marcelo, depois de pegar todo mundo, inclusive eu, acabou firmando com uma patricinha alta, de peitos enormes, que dava para ver que era silicone, mas ele parecia não ligar.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois da formatura começou aquela pressão da minha família para eu sair de casa, e eu fiquei puta, porque queria usar o dinheiro do estágio para colocar silicone. O homem que não adivinhava tinha conseguido um empreguinho legal e alugado um quarto-e-sala no centro. Quando ele me chamou para morar com ele, eu sabia que ele nunca ia suspeitar que eu estava aceitando só para ter como sair da casa dos meus pais. Pensei em ficar um tempo com ele, até conseguir um homem ou um apartamento melhor. Como eu imaginava, ele foi sonso o bastante para acreditar que eu o amava. Naquela época eu já estava começando a entender que o fato de ele não adivinhar meus pensamentos afinal poderia ser uma vantagem.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Resolvi dar um tempo no apartamento dele, e acho que nem preciso contar que foi um desentendimento atrás do outro. Quando eu queria sair para dançar, ele achava que eu queria transar. Quando eu queria transar, ele achava que eu queria sair para comer fora. E quando eu estava tomando coragem para me separar, ele achou que eu queria um filho. Claro que eu não queria filho, o problema é que minhas amigas já estavam parindo seus brunos e mateuses, e elas pareciam tão felizes que eu não me culpo por ter pensado que eu também precisava engravidar. Imitar minhas amigas sempre foi meu maior prazer. O pior de tudo foi que, mesmo com aquele barrigão de seis meses, o homem que não adivinhava não desconfiou que a gente precisava mudar. Eu tive que conversar com a minha família, e meus pais deram entrada num apartamento de dois quartos, deixando para a gente só as prestações. Vou confessar uma coisa: tinha hora que não dava para perceber se ele não adivinhava mesmo ou se apenas se fazia de tonto.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O fato é que tivemos o filho, e conseguimos passar para um apartamento com mais espaço. Hoje que o Marcelinho está maior, eu tenho mais tempo para mim, e às vezes fico me perguntando por que me casei com o homem que não adivinhava. Acho que no fundo foi pelo mesmo motivo que todo mundo se casa: o cara que eu realmente desejava não quis nada comigo e, se eu ficasse sozinha, minhas amigas me veriam como uma fracassada. Só que eu estou cansada de pensar nessas coisas, não quero mais me preocupar com bobagem. Daqui a pouco ele chega, eu vou beijá-lo carinhosamente e dizer que estava morrendo de saudade. O homem que não adivinhava nunca vai perceber que eu não sou feliz, e vou poder passar o resto da vida acreditando que ele é culpado pela minha infelicidade.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-60598226653427093412012-01-13T08:46:00.003-03:002012-01-13T08:53:52.146-03:00Quando os ET´s chegaram, eu estava dormindo<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Quando os ET´s chegaram, eu estava dormindo. Meu pai me acordou aos berros. </span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> — Vem logo, filho! Vai começar a transmissão ao vivo.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> — Me deixa quieto, pai. Quero domir — respondi, morrendo de sono. — Amanhã eu vejo os melhores momentos no jornal da tarde.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> — Você está louco, rapaz? Você não quer acompanhar o evento histórico mais importante do milênio?! O que você vai dizer aos seus filhos? Que preferiu ficar dormindo na noite em que os ET´s desceram na Terra!?</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> — Fecha a porta da sala, por favor — liquidei o assunto e voltei a dormir. Meu pai nunca me entendeu, mas eu não achava a menor graça em ver uma coisa que já fora prevista e anunciada mil vezes, que todo mundo já sabia como ia acontecer, que já fora até ensaiada pelas autoridades e representantes das nações.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Os ET´s tinham montado uma base na lua, e vinham trocando informações com a Terra havia décadas. Já sabíamos tudo sobre eles: de onde vinham, o que comiam, como viviam. Centenas de imagens já haviam circulado nos jornais e na internet. Nossos linguistas já tinham até aprendido a ler e escrever no idioma deles. Eu sabia que naquela noite não ia acontecer nada de extraordinário. Só o imprevisto pode ser extraordinário. O que já foi devidamente previsto e planejado, quando vem a acontecer, é apenas o fluxo natural dos fatos, é desinteressante, é banal. </span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Além disso, eu era adolescente e só pensava em sexo. Já tinha me informado sobre os ET´s, e as fêmeas eram feias demais para despertar meu interesse. Os ET´s são uns bichos esquisitos, meio parecidos com caranguejos, só que ficam de pé e são quase do nosso tamanho. Eles têm exo-esqueleto, pernas e braços finos, olhos sem pupila. Simplesmente não dá para se interessar por uma fêmea assim. Se tivesse alguma ET tipo a Mística dos X-Men, ou pelo menos que nem a índia do Avatar... mas aquelas caranguejas, francamente! Elas não tinham nada que lembrasse nem vagamente um peito ou uma bunda.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> No dia seguinte, a TV confirmou tudo que eu esperava. Os ET´s chegaram numa boa, foram recebidos pelos líderes das nações. Eles conversavam conosco por meio de aparelhinhos que emitiam frases em nossos idiomas. Alguns desceram na Europa, outros nos Estados Unidos, outros na China. Naquela época eu já não gostava dos comunistas e preferia que eles tivessem descido no Japão ou na Coréia do Sul. Mas eles quiseram descer na China também, fazer o quê. O fato é que aquela noite em particular não teve repercussão nenhuma na minha vida. Só anos mais tarde eu viveria algo mais diretamente relacionado aos ET´s. Eu estava na faculdade, havia tempo que eles estavam entre nós, mas ainda não tinham personalidade jurídica. Ou seja: não podiam votar, não podiam comprar imóveis, não podiam processar nem ser processados por ninguém. Como era de se esperar, os juristas e estadistas se dividiam basicamente em dois lados. Uns achavam que os ET´s tinham demonstrado inteligência mais que suficiente para lidar com processos e tribunais, portanto mereciam personalidades jurídicas. Outros alegavam que era um risco conceder personalidade júridica aos ET´s. Se eles fizessem alguma besteira, e fossem processados, podiam simplesmente sumir para seu planeta e não cumprir a pena determinada.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Claro que eu fiquei com o primeiro grupo, mas não por entender alguma coisa de justiça ou por ter refletido demoradamente sobre o assunto; o grupo “ET Legal Já” era simplesmente o único que fazia passeatas maneiras, com internveções em centros urbanos, caminhadas, chous de roque e essas coisa toda. Eu era um jovem calouro, precisava participar de alguma passeata, mostrar aos meus amigos que eu tinha ideais, talvez até conhecer uma garota engajada, ousada, liberal... Os ET´s me davam a oportunidade de fazer isso tudo. </span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Nos outros países, menos na China – aqueles comunistas desgraçados! – os jovens cederam rapidamente ao intenso desejo de imitar, e começaram a fazer as mesmas coisas que a gente: passeatas, vídeos no Youtube, intervenções coletivas. Com toda essa pressão, não demorou para que os ET´s ganhassem suas personalidades jurídicas e pudessem comprar imóveis, fundar empresas, fazer tudo que um ser humano fazia. Nosso eslôgan era bem claro: humanidade é inteligência; se os ET´s são inteligentes, também são humanos. A mídia nos apoiou, os liberais e esquerdistas do mundo todo nos apoiaram. Mas, sem dúvida, o que nos causou mais espanto foi que até o papa ficou do nosso lado. Ele alegava que os ET´s tinham alma, e por isso precisavam conhecer o evangelho. Muitos ficaram revoltados com essa posição da igreja. Receber o apoio do papa na luta por uma causa, qualquer que fosse, parecia envergonhar imensamente os liberais. Mas o papa perseverou na ideia de pregar o evangelho aos ET´s, e fez várias reuniões com eles no Vaticano. Todos ficaram decepcionados quando viram os ET´s assistiando à missa, confessando-se e recebendo a comunhão. Chegaram a questionar a inteligência dos ET´s, alguns intelectuais retiraram seu apoio, mas acabou não dando em nada. Já estávamos acostumados com eles; não iríamos expulsá-los da Terra só porque haviam se tornado católicos. Diziam até que eles tinham ensinado coisas incríveis aos nossos cientistas, tipo substituir órgãos de humanos pelos de animais, obter energia elétrica da ionosfera e coisas desse tipo. Outros denunciavam que os ET´s não tinham ensinado nada daquilo, nossos cientistas é que já haviam descoberto essas coisas, e o mito de que elas vinham dos ET´s apenas facilitou a obtenção de financiamento para as pesquisas. Qual a verdade nisso tudo claro que eu nunca vou saber. Mas nem por isso deixei de ir às passeatas; vociferei os eslôgans em voga, dei meu depoimento aos repórteres. Disse que os ET´s mereciam o direito de procurar nossa justiça, que havia chegado o momento de estender o direito de cidadania a qualquer ser que pudesse ler e compreender nossas leis. Entrei para a história da minha faculdade, tal era minha obediência e meu talento para a repetição. Gosto de pensar que os ET´s me viram de suas naves – àquela altura já na órbita da Terra – e admiraram silenciosamente minha coragem e meu senso de justiça. Mas, infelizmente, nunca conversei com um ET. Pouquíssimas pessoas são autorizadas a isso. Nunca entendi porque eles quiseram manter essa distância. Nem depois de tantas passeatas e manifestações de simpatia, nenhum deles apareceu para tomar uma cerveja com a gente. Acho que essa sempre foi nossa maior decepção. </span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Depois que eu me formei, acompanhei o caso apenas pelos jornais, como todo mundo. Assim que tiveram suas personalidades jurídicas, os ET´s começaram a criar empresas. Parece que eles tinham muito ouro e diamantes, que traziam não sei de que planeta longínquo, e logo fundaram bancos internacionais que transformaram nossos grandes banqueiros em meros oficebóis. Depois eles compraram mineradoras, e o preço do aço ficou absurdo. É por isso que hoje em dia quase ninguém tem carro. Não tem nada a ver com ecologia, como pensam os idiotas. Simplesmente ficou impossível ter um carro depois que os ET´s passaram a exportar nosso aço para outros planetas. Eu lembro que os equipamentos eletrônicos também eram bem comuns na minha adolescência. Eu tinha um leptope e um celular, passava o dia trocando mensagens com meus amigos. Mas, depois que os ET´s começaram a explorar nosso silício, a coisa mudou. Hoje só grandes empresas podem ter um computador; e há quem diga que essas empresas pertencem aos ET´s. Agora estão falando que a água é que vai encarecer, e que vamos ter que deixar esse hábito ultrapassado de tomar banho. Não dá para saber se é verdade ou apenas boato. A mídia ficou um caos depois que eles começaram a controlar as transmissões via satélite.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Mas o pior disso tudo foi o que eu ouvi outro dia. Eu estava conversando com um jovem, de uns dezesseis anos, e ele disse que a minha geração que é culpada dessa situação, que essa pobreza toda começou quando concedemos personalidade jurídica aos ET´s. Na hora eu não soube o que responder, depois é que me caiu a ficha: esse moleque não passa de um idiota, preconceituoso, retrógrado! O que ele queria que fizéssemos!? Que negássemos aos ET´s o direito de trabalhar e viver dignamente no nosso planeta? Será que ele pensa que o planeta é dele?! É por isso que eu evito conversar com os jovens, eles andam com umas ideias que... francamente! Não sei de onde tiram essa loucura, da televisão sei que não é. </span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> O problema é que aquela frase ficou repercutindo na minha cabeça. “Nossa pobreza começou quando concedemos personalidade jurídica, nossa pobreza começou...” Cheguei a perder noites de sono por causa disso. Ah, meu Deus, que moleque cretino, que falta de visão! Se ele tivesse vivido tudo que eu vivi, se ele tivesse ido às passeatas, sentido aquela euforia, aquele sentimento de coragem, de união. Se ele visse as mulheres que eu beijei nos chous pelos direitos dos ET´s... Ele é apenas um pobre coitado, nem deve ter namorada. A geração dele não fez um milésimo do que fez a minha. Definitivamente, é melhor esquecer tudo que ele falou, e voltar a dormir em paz.</span></div><div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;"><br />
</div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-26164859938388412892011-11-16T17:09:00.000-03:002011-11-16T17:09:54.612-03:00Ele nunca disse a ninguém<div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Ele ficou chocado quando fez a descoberta. Estava na cama, o corpo nu recebia uma brisa suave de maio. A namorada tinha ido ao banheiro, não gostava de ficar com sêmen entre as pernas. Quando voltou, deitou a cabeça sobre o peito dele, disse as palavras carinhosas que costumava dizer nessas horas. Falou sobre casamento, sobre a felicidade de ter encontrado a pessoa certa. Ele se perguntava se devia lhe contar a novidade — a coisa acabava de se revelar, clara e serena como um reflexo de lua. Mas sua namorada era muito bonita, ele temia perdê-la. E o pior é que ela se culparia por tudo. Buscaria o motivo nalguma parte do seu corpo, na barriga, nas mínimas estrias, na cor do cabelo — talvez no estranho cheiro de rosas queimadas que ela exalava principalmente depois do sexo. Ela era mulher, não podia evitar o prazer misterioso da culpa. E por isso mesmo ele resolveu se calar. Não queria correr o risco de torná-la infeliz como uma divorciada. Se nunca mais pensasse no assunto, talvez a revelação passasse despercebida. Talvez desistisse de se mostrar, e bateria em outra porta, como essas pessoas que vêm pedir para campanhas de caridade. E, de fato, protegido pela rotina, Paulo conseguiu esquecer o assunto. Sua namorada não percebeu, e ele nunca disse a ela, nem a ninguém, que não gostava de sexo.</span></div><div><br />
</div></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-40797846409221491642011-10-30T01:22:00.002-03:002011-10-30T01:22:57.904-03:00Canção erótica de segunda-feira<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Um dia eu me abri com um amigo, e ele disse que sou obcecado por seios. Não acho que isso seja verdade. Não gosto de seios em geral, mas apenas dos seios lindos. E não tenho a menor necessidade de sair por aí atrás de várias mulheres para ver e tocar milhares de peitos anônimos. Acho que me bastariam os seios de uma esposa, se ela entendesse e aceitasse minha necessidade de venerá-los. Eu quero apenas uma mulher compreensiva, compassiva, silenciosa — e com seios lindos. Não me parece que isso seja uma obsessão.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Numa manhã como esta, ela poderia me levar até a porta, e se despedir de uma maneira especial. Encostando-se na parede, abriria levemente a blusa, e me deixaria ver por um momento a beleza recôndita do seu busto maduro. O volume seria macio e consistente; os mamilos, não muito escuros, se destacariam na pele homogênea, suavemente vibrante. Eu me aproximaria devagar, e os tocaria delicadamente, ora com as costas das mãos, esboçando uma carícia, ora contornando o volume com os dedos, intuindo por trás da carne morna a pulsação oscilante e aflita do coração feminino. Se nesse momento uníssemos os rostos, ela confirmaria pelo tato a sinceridade do meu deleite. Talvez arriscássemos algumas palavras, mas eu logo resgataria o silêncio, aumentando a pressão do toque, causando uma tensão branda, que ela chegaria a sentir como um sutilíssimo princípio de dor. Se ela deixasse escapar um suspiro longo e doce, quase obsceno, aposto que depois se envergonharia, temendo que eu o tomasse por fingimento ou exagero sentimental. Mas eu lhe confortaria com um olhar aliado, e ela se recomporia sem dificuldade, despedindo-se em seguida, carinhosamente, como uma mãe dedicada, que sabe estar transformando um menino em homem. Duvido que, depois de um momento desses, eu ainda me recusasse a ser feliz.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas agora que pensei sobre isso, me ocorreu que a saudade daqueles seios talvez me paralisasse o trabalho. Sou um homem fraco, e admito a possibilidade de lançar o olhar sobre minhas colegas, buscando o sucedâneo do busto que teria deixado em casa. Então pode ser que eu descobrisse uma mulher mais jovem, que escondesse por trás da blusa a promessa de uma delícia semelhante à dos meus jogos domésticos. Meus olhos treinados não teriam dificuldade em expressar o convite indecoroso. E assim como nos sonhos sabemos exatamente o que alguém está pensando, ela compreenderia meus planos secretos com uma precisão e uma rapidez absurdas. Um sorriso e um aceno silenciosos expressariam seu consentimento, e lhe bastariam alguns minutos para pensar numa desculpa que justificasse sua ida ao almoxarifado. Eu chegaria em seguida, logrando disfarçar a aflição; ao contrário dela, que soltaria os cabelos e os sacudiria ligeiramente, repetindo um gesto que teria aprendido nas telenovelas. Sua juventude justificaria esses arroubos, e eu não seria louco de reclamar com alguém que me compreendesse tão completamente. Um botão depois do outro, ela me revelaria o viço da sua pele, e eu me surpreenderia ao descobrir que aqueles gestos delicados não seriam exclusividade da minha mulher. Talvez por isso eu me desculpasse por sucumbir tão imediatamente a um prazer que também deveria sentir apenas com ela. Em seguida viria o toque, a leve pressão, o acolhimento. Ela recostaria a cabeça no meu peito, e seus cabelos perfumados me provariam que o abraço não seria mera alucinação. Porém, quando eu me afastasse, olharia covardemente para baixo, para que algo ficasse incompleto, e justificasse nossa retomada no dia seguinte, assim como no próximo, e também no posterior, até que nosso encontro acabasse por se tornar um ritual diário. Eu nunca entenderia por que ela se virava de costas para abotoar a blusa, mas quando ela se voltasse para mim, eu captaria a mensagem silenciosa no seu olhar, intimando-me a sair antes dela, para evitar suspeitas. Porém, depois de voltarmos a nossas mesas, ela permaneceria tão discreta e dissimulada que eu me sentiria torturado, e quase desejaria revelar nosso segredo.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">A partir desse dia, acho que uma pequena confusão se instalaria na minha vida: eu tocaria os seios da minha mulher pensando nos da outra; e os seios da outra, pensando nos da minha mulher. Esse intercâmbio teria a vantagem de instalar uma familiaridade reconfortante no ritual do escritório, ao passo que temperaria com certa ousadia o ritual doméstico. Seria como se eu vivesse cada encontro duas vezes, e meu prazer dobraria de intensidade, sem que cada uma das mulheres precisasse repetir um único dos seus gestos.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Para que nada perturbasse minha felicidade, eu me privaria de filhos, porque sei que eles atentam gravemente contra o contorno e a consistência dos seios maternos. E, se algum dia eu encontrasse aquele amigo, aposto que ele me cobriria de perguntas indiscretas. Mas eu não diria uma única palavra sobre meus rituais secretos; sei que ele é o tipo de homem que não sabe distinguir entre um sonho e uma obsessão. Mas eu sei muito bem; e sei que elas também saberão. Elas serão compreensivas, compassivas, silenciosas, e terão seios lindos. Definitivamente lindos.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><br />
<br />
<div class="western"></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-79572553964384719822011-09-12T12:52:00.005-03:002011-10-29T20:16:03.227-03:00Amor sobre rodas<i><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></i><br />
<i><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Intervenção de Ronaldo Brito Roque</span></i><br />
<i><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">em conto de Guilherme Preger</span></i><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O que me fascinou em Nina não foi a juventude macia de sua pele ou a candura de seu rosto branco. Acho que me apaixonei por ela na primeira vez que a vi chegar de motocicleta, de vestido e salto alto. Também estava de capacete, mas antes de ver seu rosto eu já estava caído por ela. Era algo completamente inusitado ver uma mulher que, ao dirigir uma moto, não abria mão da sua maneira própria de se vestir e de ser. Aliás, Nina andava de moto de forma tão natural, que o veículo parecia fazer parte de sua personalidade.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Fiquei encantado com a facilidade e a tranquilidade do início de nosso namoro. Embora ela fosse vinte anos mais nova, e espiritualmente muito diferente, nos demos bem desde o começo. Nina era uma moça leve, de corpo e alma, e me transmitia essa leveza. Ela só se impacientava dentro de um automóvel. Eu tinha, é claro, um carro, mas Nina não suportava andar de carona em meio ao trânsito da cidade. Reclamava muito quando ficávamos engarrafados. Ela chegou a sugerir que eu tirasse carteira de motociclista, mas fui radicalmente contra, antes por pânico que por desejo de contrariá-la. Aliás, nunca fui uma pessoa teimosa ou orgulhosa, tampouco Nina, e isto era algo que tínhamos em comum.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas não houve jeito, e para o bom desenrolar de nosso relacionamento, comecei a andar na garupa da sua motocicleta. Ela tinha um capacete extra, que pertencera ao ex-namorado, mas me recusei a usá-lo. Comprei meu próprio capacete e lá ia eu, sentado na garupa, agarrado à minha namorada. Aliás, muito agarrado. Eu sentia simplesmente pavor. Nina, no entanto, era excelente motociclista e passeava pelo trânsito não exatamente com prudência, mas com extrema desenvoltura, como se só tivesse feito isso a vida inteira. Cortava os carros, como um surfista corta uma onda, e esta é certamente a melhor imagem que encontro para descrevê-la dirigindo. Nina simplesmente navegava no caótico trânsito da cidade, sem nunca demonstrar preocupação. Ela dizia que um anjo da guarda a protegia, pois nunca se acidentara, e eu me abraçava a ela para que pudéssemos caber juntos de baixo de sua asa.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Em breve, já pegávamos as estradas para viagens maiores e comecei a sentir certo prazer em viajar exposto ao vento ou a chuva, deslizando pelo asfalto quente, veloz e voluptuosamente pelas curvas do campo ou da serra. Meu medo foi se dissolvendo lentamente, e nosso relacionamento ia, por assim dizer, a favor do vento. Sempre me questionei da razão de Nina, tendo tantos amigos motoqueiros, ter se aproximado justamente por um homem que tivera tanto medo de motocicleta.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Talvez porque Nina quisesse dar a mim, na moto, a emoção e o prazer que certas mulheres dão aos homens na cama. Apesar de ser solta e desinibida sobre a motocicleta, na cama ela era tímida, contida, eu diria até passiva. O amor era bom, mas… apenas isto: bom.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Porém não era nada que afetasse realmente nosso relacionamento. Uma coisa, no entanto, começou a me inquietar. Eu comecei a me sentir um pouco constrangido quando encontrava amigos que me viam na garupa da moto, firmemente agarrado a Nina. Eu sei que é bobagem. Não sou um homem machista. Nunca fiz o gênero de machão com qualquer uma de minhas namoradas. Além do mais, Nina era uma moça muito bonita que envaideceria qualquer homem. Mas eu não me sentia bem, quando chegávamos a um lugar onde estavam os meus ou seus amigos, e nos viam estacionar a motocicleta comigo, seguro a ela como um menino medroso.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Certa vez, quando Nina cortou um carro no trânsito, da maneira natural e desenvolta como sempre fazia, mas tirando um fino de distância entre nossas pernas e a lataria, reclamei com ela. Foi, então, que ocorreu nossa primeira briga. A partir deste episódio desagradável, curiosamente meu velho medo de motocicleta retornou e passei a insistir que fôssemos de carro ou de táxi, quando saíamos juntos à noite. De dia, quando andávamos, eu, como sempre na garupa, ia ficando desesperado com as barbaridades de Nina no trânsito, movimentos temerários que ela fazia com a máquina, e eu não havia reparado antes.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Finalmente, quando nossa relação não ia bem, resolvemos fazer mais uma viagem de fim de semana para a serra, num chalé extremamente charmoso que havíamos curtido juntos ao pé da montanha. Foi a nossa última viagem de motocicleta. Fiquei inteiramente arrepiado quando Nina fez uma curva em que a moto quase andou na horizontal. Cheguei a sentir o calor do asfalto no meu ombro. Pedi que ela parasse para eu que pudesse respirar; fiquei sem fôlego. Em seguida, preferi pegar um ônibus e retornei à cidade, enquanto Nina descia a estrada na sua moto.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando cheguei em casa, fiquei pensando que eu tinha exagerado. Afinal, ela já havia me provado que era uma ótima motociclista. Durante aqueles anos, eu nunca a tinha visto sequer esbarrar num retrovisor. Tive que admitir que foi burrice minha. E quando o telefone começou a tocar, senti um princípio de esperança. Talvez Nina quisesse reatar. Talvez pudéssemos resolver tudo apenas indo cada um no seu veículo. A solução era muito simples, não havia motivo para terminar. Mas não era Nina, era a secretária de um hospital. Nina tinha sofrido um acidente e estava em coma. Eles estavam ligando para todos os números do seu celular. O meu foi simplesmente o primeiro que atendeu.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Fui correndo para o hospital. Providenciei uma transferência para a ala particular, inteiramente por minha conta. Ela tinha fraturado vários ossos, e havia indício de uma lesão na coluna. O médico disse que ela poderia sair do coma, mas fatalmente haveria seqüelas. Eu estava tão chocado que não sabia o que dizer. Só depois de alguns dias, minha cabeça voltou a funcionar, e fiquei estarrecido quando me peguei pensando que pelo menos ela ia concordar comigo. Ela ia finalmente largar aquela maldita motocicleta. De repente percebi o quanto eu era mesquinho, egoísta, controlador. Tive uma forte crise de culpa, e fiz uma promessa intimamente secreta. </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Se Nina saísse do coma, eu compraria outra moto para ela. Ainda que ela não quisesse mais ficar comigo; ainda que ela me odiasse para sempre. Nina jamais seria completa sem uma moto, e eu sabia disso melhor que ninguém. Dormi mais tranqüilo naquela noite.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Nos dias seguintes fiquei pensando como Nina reagiria se soubesse da minha promessa. Certamente ficaria contente, talvez chegasse a me admirar. Eu cuidaria dela e pagaria a fisioterapia. Ela se encantaria com essa demonstração de amor, e provavelmente me amaria de volta. A brutalidade daquele acidente talvez servisse para nos unir muito mais.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Infelizmente as coisas não foram assim tão simples. De fato Nina acordou, num dia em que sua mãe foi visitá-la. A velha falou sem pudor as frases que a muito custo eu tinha conseguido segurar: “Eu não te disse? Não falei que essa moto ia te trazer desgraça?!” Ao ouvir essas palavras, Nina recobrou imediatamente os sentidos, e deu um tapa na cara de sua mãe. Certamente foi o tapa mais feliz que a velha já ganhou; porém nos dias seguintes, ela descobriu que essa felicidade não era completa. O corpo de Nina não se recuperou por inteiro. A lesão na coluna não cicatrizou corretamente, impedindo que ela voltasse a andar.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando recordo aquela época, vejo que eu me adaptei até muito facilmente. Decidi não contar à Nina sobre a promessa que eu tinha feito. Deduzi que quanto mais ela pensasse em moto mais ficaria triste. Em vez disso pedi que ela me deixasse lhe pagar a cadeira de rodas. Para minha surpresa, ela não quis uma motorizada. Alegou que sua nova vida exigiria braços fortes, e era melhor se habituar. Paguei também uma reforma no seu apartamento. Fui cuidando dela, e, como eu esperava, acabamos por reatar. Um dia eu brinquei que ela ficaria até mais bonita de ombros largos. Ela me bateu, falou que eu não fazia ideia de como ela estava sofrendo. Depois me agarrou, me beijou, pediu desculpas exageradas. Disse que nunca teria como me agradecer. Eu falei que um beijo já estava bom, e estava mesmo. Mas ela quis me mostrar que sua boca podia muito mais.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Foi muito difícil admitir que eu estava feliz. Mas Nina estava a meu lado, o sexo estava ótimo, tudo corria bem. Não havia a loucura da moto, não havia mais o medo constante de perdê-la. Apesar de ter conquistado certa independência, ela ainda precisava muito de mim, inclusive financeiramente, porque a pensão que ela passou a receber era irrisória. Percebi que no passado eu havia me iludido. Eu me recusava a admitir, mas a independência, a liberdade e a segurança de Nina, no fundo sempre tinham me incomodado. Agora eu era necessário em sua vida. Quando eu empurrava sua cadeira, me sentia seguro, generoso, espiritualmente elevado. Passamos a freqüentar parques calmos e sossegados. Passávamos horas nos beijando e curtindo o entardecer. Era o namoro dos meus sonhos, eu estava serenamente feliz.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Até que Nina começou a ficar horas na internet. Entrou em comunidades de cadeirantes, conheceu outras pessoas com as mesmas dificuldades que ela. Eles planejavam manifestações coletivas, lutavam pela aprovação de certas leis (leis que obrigavam os prédios públicos a ter rampas e coisas do tipo). Trocavam informações sobre hotéis que tinham apartamentos para deficientes. E o pior: reuniam-se quinzenalmente num bar de Botafogo, cujo dono também era cadeirante. Minha insegurança voltou rapidamente. Comecei a temer que Nina talvez estivesse procurando um homem com o mesmo histórico que ela. Alguém que padecesse as mesmas dores, enfrentasse os mesmos problemas. Talvez ela se sentisse mais compreendida por um homem assim.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Meu temor me levou a freqüentar as manifestações com ela, a vociferar contra a falta de políticas públicas para deficientes, e a ficar sempre ao lado dela nas reuniões no bar de Botafogo. Consegui convencê-la a instalar um GPS na sua cadeira. Assim, a qualquer momento, eu poderia saber onde ela estava. Claro que isso era para sua segurança. Tudo que eu queria era protegê-la, eu não suportaria se houvesse outro acidente que limitasse ainda mais seus movimentos.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Um dia estávamos vendo um filme na sala, e tomando um vinhozinho — um fim de semana bem romântico como eu gostava — e de repente Nina me perguntou se eu sabia o que era <i>hardcore sitting</i>. A palavra hardcore me lembrava certos vídeos que eu via no trabalho, mas eu não fazia ideia do que podia ser um <i>hardcore sitting</i>. Seria um filme pornô feito por cadeirantes? Cheguei a ter um calafrio. Será que um pervertido tinha convidado Nina a fazer algum filme doentio com mulheres em cadeiras de rodas?! “Não amor, não faço ideia do que seja isso!”, respondi, tremendamente ansioso, louco para saber do que se tratava. Ela pegou o leptope e começou a me mostrar alguns vídeos. Disse que o <i>hardcore sitting</i> já era comum nos Estados Unidos e estava crescendo vertiginosamente no Brasil. Quando vi aquelas loucuras nem acreditei. Não era o que eu tinha pensado, mas era seguramente algo que aniquilaria minha paz. Cadeirantes faziam manobras radicais em pistas de esqueite e outras maluquices. Intuí imediatamente que Nina se juntaria a eles, e certamente faria aquelas manobras com a mesma leveza e naturalidade com que um dia pilotara sua moto. Me senti traído, não por Nina, mas pelo destino. O mundo novamente me tomava Nina, me tirava a tranqüilidade e a segurança que eu levara tanto tempo para encontrar. Passei alguns dias deprimido, de mal com o mundo. Me senti humilhado pelo deus no qual sempre tentei não acreditar. Mas ao mesmo tempo eu sabia que Nina precisava daquela aventura. Ela parecia ter nascido para adejar, para flutuar sobre alguma coisa móvel. A mera gravidade de alguma forma a ofendia.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Então recordei minha promessa secreta, e entendi que estava na hora de renová-la. Eu tinha jurado que, se Nina melhorasse, eu mesmo lhe daria outra moto. Agora ela estava prestes a melhorar. Não do jeito que eu tinha imaginado, mas ela ia conseguir retomar sua leveza, sua paixão pelo risco e pela velocidade. Comecei a pesquisar na internet, e descobri que havia cadeiras mais seguras para essas manobras, com rodas inclinadas e aro de titânio. Não demorei a perceber que eu precisava encomendar uma. Alguns dias depois pude fazer uma surpresa para Nina. Seus olhos úmidos confirmaram que eu estava certo. Um nova harmonia começava a se instalar entre nós. Uma harmonia que incluía o movimento e o risco.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Hoje vibro quando vejo suas manobras. Nina já apareceu em vários programas de televisão, o grupo que ela dirige tem patrocínio do estado, para orientar e motivar outros cadeirantes. Nunca deixei de acompanhá-la, dando todo o apoio e incentivo que ela merece. Nina reconquistou sua leveza, sua audácia, sua parceria com o risco. E acho que eu finalmente entendi qual é meu lugar na sua vida. Ela vai continuar flutuando, vai ser um permanente desafio contra a gravidade. E eu vou estar logo abaixo, protengendo-a do chão que a persegue incessantemente. Eu quero acertar onde o anjo dela falhou. Eu vou estar entre o chão e ela, como ela está, para mim, a um passo do céu.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-77455442541848764002011-08-14T18:26:00.013-03:002011-10-04T23:44:10.873-03:00O melhor, o pior e o médio<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"></span><br />
<div class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 25px;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 25px;">A mulher quis uma mesa no segundo andar porque achou que estaria mais calmo. Na verdade estava mais agitado. No verão, todos preferiam o segundo andar porque as sacadas deixavam o ambiente mais fresco. Para o homem não fazia diferença, desde que o lugar não tivesse televisão. Não gostava de comer ao som das notícias trágicas de um telejornal, ou dos diálogos vulgares de uma novela.</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Assim que se acomodaram, o garçom se aproximou e lhes entregou o cardápio. O homem quase não acreditou no que lia. Mostrou à esposa, que também ficou intrigada. Mas, quando perguntaram ao garçom, ele confirmou o que ambos haviam lido. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Explicou que a casa tinha mudado de dono, e o<i> menu</i> fora renovando recentemente.</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — É até meio cômico — disse o homem, um pouco desconsertado. Depois se voltou para a mulher, com uma cara interrogativa, como se perguntasse: “E agora, o que pediremos?” Ela suspirou, e leu o <i>menu</i> novamente. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Na seção de pratos havia apenas três opções:</span></div><div class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0.42cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
1. O Melhor<br />
2. O Médio<br />
3. O Pior</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Logo abaixo vinha a sugestão do </span><em><span style="font-size: small;">chef</span></em><span style="font-size: small;">: “O Melhor”.</span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Sem pensar muito, a mulher levantou os olhos e respondeu:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Vamos pedir o Médio.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O marido, ainda indeciso, fez uma pequena objeção.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Você não prefere experimentar o Melhor?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Amor, não vamos arriscar. A casa mudou de dono, não sabemos como está a cozinha. Vamos pedir o Médio, outro dia pedimos o Melhor.</span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O homem acabou por concordar. Pediram um Médio para dois.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Na mesa ao lado, outro casal acabava de se acomodar. Agora era a mulher que estranhava o cardápio, e o mostrava ao marido, indagando se não seria algum tipo de brincadeira. O homem também estranhou, e perguntou se ela queria tentar outro restaurante. A mulher alegou que isso já seria exagero. Não queria passar pela vergonha de se levantar e sair da mesa, diante de todos. Por fim, conformou-se à situação, e disse ao marido para pedir o Médio. Erguendo o cardápio, ele expressou uma ligeira contrariedade:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Amor, o Pior está com um preço razoável. Hoje não é nenhuma comemoração, por que não pedimos o Pior?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Querido, você está falando sério? — Ela se sentia mal em ter de explicar algo tão óbvio.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Se fosse para pedir o Pior, eu ficava em casa e esquentava o almoço. Se saímos de casa, vamos pedir pelo menos o Médio.</span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O marido concordou. Não era todo dia que comiam fora.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> E todos iam chegando e encontrando algum motivo para pedir o Médio. Não queriam o Pior, mas, por alguma razão, não se sentiam dignos do Melhor. Não era tanto pelo preço, era a audácia daquele nome, que para alguns soava exagerado, para outros, até repulsivo. O Médio sempre acabava parecendo a melhor opção. </span> </span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Mas um homem que chegou mais tarde, também acompanhado, pareceu não se importar com esse protocolo. Depois de manusear rapidamente o cardápio, pediu o Melhor. O garçom, acostumado a ouvir outra coisa, não compreendeu de imediato. Reclinou-se ligeiramente e perguntou:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Como disse, senhor?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O homem repetiu claramente — O Melhor, por favor — e como falasse um pouco mais alto, foi ouvido nas mesas mais próximas.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O garçom anotou o pedido vagarosamente, depois acrescentou num tom ligeiramente teatral: — Perfeitamente, senhor. Temos o Melhor — como se quisesse se fazer ouvir também nas outras mesas. Em seguida se voltou para a mulher, e perguntou delicadamente:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — E para a senhora?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Ela sorriu, quase não logrando controlar o nervosismo. Olhava para seu companheiro, tentando lhe transmitir a dificuldade que enfrentava. O homem, parecendo não perceber o problema, perguntou com naturalidade:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Você não vai querer o Melhor?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Visivelmente constrangida, a mulher não sabia o que responder. Queria recusar o Melhor, mas não diante do garçom. Seu desespero aumentou quando percebeu que as pessoas das mesas mais próximas estavam atentas ao que dizia. Seus olhares oblíquos pareciam ansiar que ela pedisse o Médio, e desse fim àquela hesitação.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Vou querer o Médio! — ela disse bruscamente, olhando severa para o parceiro. Depois, como se precisasse se justificar, acrescentou: </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Não estou com apetite para o Melhor. Talvez outro dia.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O garçom, mais aliviado, despediu-se com tranqüilidade — Pois não, senhora. O Médio, perfeitamente — e se dirigiu à cozinha. </span> </span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> A mulher ficou olhando de soslaio para o homem, como se tentasse lhe transmitir que ele cometera uma grave indelicadeza. Pedira o Melhor para si, e a deixara a cargo do Médio. Isso não era justo com ela, que procurava fazer de tudo para lhe agradar. Tinha certeza que devia repreendê-lo, para que o erro não se repetisse, mas não sabia como abordar o assunto.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Enquanto ela pensava, certa ansiedade aumentava nas pessoas em redor. Todos estavam um tanto indignados com o atrevimento daquele homem, mas não sabiam exatamente o que comentar. Pressentiam que não seriam justos se o criticassem apenas por ter pedido o Melhor. Afinal, era um prato previsto no cardápio.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> De repente os olhos da mulher faiscaram de júbilo, pois ela encontrou finalmente uma saída. Dirigindo-se ao parceiro, com o nariz ligeiramente erguido, começou o ataque.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Não precisava ter falado tão alto. As pessoas ouviram.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Não falei “tão” alto. Falei apenas um pouco mais alto. O garçom não estava me entendendo.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Você sabe que falou mais alto. Não precisava disso. Você quer mostrar a todos que prefere o Melhor?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O homem percebeu que havia alguma coisa errada.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Do que você está falando? Não quero mostrar nada a ninguém.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — É mesmo? Pelo tom que você usou, me pareceu outra coisa.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Ele se calou por um instante, e olhou atentamente para a parceira. Não eram casados. Havia pouco tempo que estavam saindo. Começou a pensar que talvez não fosse a mulher certa para ele.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Nas outras mesas, o homem ia se tornando o assunto principal. As mulheres o censuravam gravemente, pois não achavam de bom tom pedir o Melhor, muito menos daquela forma, fazendo que todos ouvissem. Os homens concordavam prontamente com suas esposas — sim, ele cometera uma indelicadeza, sem dúvida — mas alguns pensavam intimamente em voltar sozinhos ao restaurante, justamente para experimentar o Melhor. Não cometeriam o erro de o pedir explicitamente, apenas o indicariam com o dedo, e o garçom compreenderia a necessidade de discrição. Ficaram felizes por pensar numa solução tão engenhosa. Eram, sem dúvida, homens de uma astúcia fora do comum, e agora acreditavam realmente merecer o Melhor. E quanto mais se satisfaziam com essa conclusão, mais concordavam com suas mulheres: — Sim, que homem indelicado, o Médio basta para qualquer um...</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Na cozinha se passava uma inquietação ainda maior. O gerente estava sabendo do acontecido, e fora se certificar com o cozinheiro. Estava tenso e um pouco angustiado, não sabia exatamente como se expressar.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Então, um cliente pediu o Melhor, não foi?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Sim, já estou sabendo — disse o cozinheiro, tranquilamente.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Você sabe como fazer?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Sei, sim. Fiz esse prato muitas vezes no curso de gastronomia.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O gerente não se sentiu muito bem com essa resposta. Achou que o homem não precisava fazer lembrar que havia feito um curso superior.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Olha, eu sei que você tem um diploma, não precisa falar disso o tempo todo.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Não estou falando disso, apenas respondi sua pergunta.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Você está me entendendo errado — o gerente resolveu usar de sua grande complacência. — </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Não estou questionando sua capacidade. Apenas achei que... bem, como o prato não é muito pedido, talvez você não lembrasse como fazer.</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Obrigado pela consideração, mas sei como fazer. Não se preocupe.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O cozinheiro agia com tranqüilidade, e já tinha começado a preparar o prato. O gerente ficou perambulando pela cozinha, fingiu verificar os ingredientes, abriu o armário, arrumou alguma coisa no escorredor, depois se voltou abruptamente para o colega, e desabafou:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Olha, se você quiser, podemos dizer que hoje não temos o Melhor. Podemos inventar que falta algum ingrediente, sei lá. Não precisa se matar para fazer o Melhor. Sei como seu trabalho é duro, não vá se esgoelar para satisfazer um almofadinha.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O cozinheiro não entendeu bem a razão daquela proposta. Mas, de fato, o Melhor dava mais trabalho, e, se o próprio gerente estava dizendo que não precisava fazê-lo, talvez ele devesse desistir. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Ficou algum tempo pensando nessa possibilidade, mas também especulou que aquilo podia ser um teste de confiança. Talvez o gerente quisesse medir o quanto ele estava disposto a se dedicar ao trabalho. Depois de hesitar alguns segundos, ele falou, ainda desconfiado: — De fato, acho que não temos alcachofras.</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Mas calhou que o gerente tinha acabado de ver as alcachofras no armário e, por reflexo, respondeu: — Elas estão ali!</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Houve um breve constrangimento. Nenhum deles sabia o que dizer, até que o gerente abriu um largo sorriso, e anunciou: — Já sei! Vamos dizer que estamos apenas com um estagiário na cozinha, e ele ainda não sabe fazer o Melhor.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O cozinheiro a princípio concordou, mas de repente percebeu que a idéia não lhe era favorável. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Se alguém descobrisse a farsa, a culpa recairia toda sobre ele, pois aquela justificativa não comprometia em nada os outros empregados. De súbito segurou seu superior pelo braço, e lhe pediu que esperasse. O gerente o olhou com enorme reprovação. Sem saber o que fazer, o cozinheiro despistou, cabisbaixo: — Diga... diga apenas que vai demorar. O Melhor demora mais para fazer, não é tão fácil quanto o Médio.</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O homem aprumou o paletó, olhou com certo desprezo para o cozinheiro e concordou com um aceno de cabeça. Subiu as escadas para dar a notícia ao cliente. Quando chegou à mesa, notou que a mulher não estava. Obviamente não fez comentário sobre isso, apenas justificou a demora do prato. O cliente pareceu não se importar, e aproveitou para pedir um aperitivo. </span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;">Enquanto isso sua parceira tinha ido ao banheiro e fazia uma ligação pelo celular. Ela ainda não tinha formado uma idéia precisa sobre o que estava acontecendo, e sentiu a necessidade urgente de consultar uma amiga. Do outro lado da linha, uma voz atendeu sonolenta. A mulher explicou demoradamente a situação. Descreveu em detalhes o restaurante e o homem com quem estava, depois finalmente tomou coragem para contar o momento mais humilhante.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Aí ele fechou o cardápio, pediu o Melhor para ele e o Médio para mim! Fez isso com a maior naturalidade, como se eu simplesmente não merecesse o Melhor!</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Não é possível! Você está falando sério, querida?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Nunca falei tão sério, amiga! Dá para acreditar? Eu, que já tolerei oito anos de casada, nunca pensei que voltaria a passar por essas coisas!</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Mas ele pediu mesmo o Melhor para ele e o Médio para você? Assim, sem mais nem menos?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Ai, amiga, o pior não foi isso! O pior é que ele falou em voz alta, praticamente gritou: 'O Melhor para mim, e o Médio para ela!' Não acreditei! Até agora não acredito. Por que isso está acontecendo logo comigo?!</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Olha, querida, você vai me desculpar, mas sabe o que está parecendo?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Ai, pode falar, amiga. A essa altura, já posso ouvir qualquer coisa. Pode ser totalmente sincera, estou preparada.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Eu ia dizer que está até parecendo que ele é... é... você sabe: um arrogante! Eu não queria falar, mas você mesma disse para eu ser sincera.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — O quê!? Ah, meu Deus! Eu estava suspeitando, amiga, mas não queria ir tão longe. Você acha mesmo?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Sem dúvida! Qualquer homem deixaria você escolher. Ele não apenas pediu o Melhor para ele, mas ainda fez questão de decidir por você! Isso é sério, acho que você sabe perfeitamente que isso é arrogância.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Sei, amiga, claro que sei! Ah, meu Deus, o que eu vou fazer?! Olha, acho que essa é a última noite que saímos juntos. Ele me parecia um cara tão legal, tão educado... mas agora, isso?! Não sei se posso tolerar.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Eu entendo, querida, eu entendo. Já passei por situações parecidas. Olha, não quero te desanimar, mas homens assim querem ser tratados como reis. Não têm humildade nenhuma, sentem-se como se o mundo lhes pertencesse. Deus me livre! Se eu fosse você, pelo menos dava um tempo. </span> </span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Agora ela estava arrependida. Queria desabafar com alguém, mas não pretendia ir tão longe. Sabia que o homem era gentil e não passara dos limites outras vezes. Seria precipitado terminar com ele.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Pois é, amiga. Vou pensar. Realmente, já fui casada por oito anos. Não quero ter que agüentar outro capitão, ha, ha, ha! — Ela riu, tentando suavizar as acusações que acabava de fazer.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> A amiga concordou sem acréscimos, e deu a entender que precisava se deitar por causa de um compromisso no dia seguinte. Na verdade não tinha compromisso nenhum, apenas ficara desapontada ao perceber, pelo tom da mulher, que nada iria acontecer. No máximo em dois dias ela já teria esquecido aquela noite.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> E, de fato, ela a teria esquecido em dois minutos, não fossem os olhares atentos dos garçons quando ela voltava para o segundo andar. A mulher sentiu que eles a examinavam meticulosamente, e no íntimo deviam estar pensando que o homem que pedira o Melhor não fora tão exigente na hora de escolher uma namorada. Um dos empregados não se contentou em apenas considerar essa idéia, mas sentiu que um pensamento tão sagaz precisava ser comunicado a alguém. Correu para a cozinha e foi logo dizendo ao cozinheiro:</span></span></div><div class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Sabe esse homem que pediu o melhor?</span></span></div><div class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Sim.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — A mulher que está com ele nem é assim tão bonita...</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — É mesmo?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Parece que ele não quis o melhor na hora de escolher a mulher! Ha, ha, ha!</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Hum... sei, sei como é.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — E tem mais! Ele nem está bem vestido. Eu conheço aquela camisa de uma loja de departamento. Não é cara. Eu poderia comprar uma, se quisesse. Não compro, você sabe por quê.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Por quê?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Ora, como assim, por quê? Você sabe perfeitamente. Não quero ficar esbanjando por aí. Eu tenho bom senso!</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Ah, sim, foi o que pensei.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O garçom viu que não estava fazendo muito sucesso, e ficou um pouco envergonhado. Mas não queria sair dali sem falar no que realmente lhe importava. Aproximou-se do cozinheiro, tocou de leve seu ombro, e disse com gravidade:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Olha, você não vai fazer o Melhor, vai? O gerente mesmo disse que não precisa se esforçar. Basta fazer o Médio, e pôr umas alcaparras assim por cima. Pronto! O homem não vai notar a diferença, pode ficar despreocupado. E veja bem: não sou eu quem está dizendo, o próprio gerente falou isso, pode confiar.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O cozinheiro não suportava mais a situação.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Tudo bem, tudo bem! Não vou fazer o Melhor, vou fazer o Médio e coloco umas alcaparras por cima, está bem assim? Umas alcaparras e pronto! Afinal, ninguém vai perceber...</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Eu sabia, eu sabia! Você é dos nossos, sabia que você não iria nos decepcionar. — Sua alegria era sincera. — Vou dar uma subida, ver se alguém está querendo alguma coisa. Já volto para buscar o Médio com alcaparras. Vou falar com o gerente, tenho certeza que ele vai adorar a notícia.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> E depois, com tapinhas nas costas, acrescentou: — Eu sabia, meu jovem. Sabia que podíamos contar com você.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O garçom deixou a cozinha, e o jovem se viu finalmente sozinho. Respirou, deixou cair os ombros, sentiu-se estranhamente derrotado. Não compreendia a razão de tanto alvoroço, sabia apenas que estava jogando fora sua primeira oportunidade de fazer o Melhor. E com tanta contrariedade, talvez fosse a última. No curso de gastronomia, não o haviam preparado aquela situação: fazer o Melhor não era apenas uma questão técnica; era preciso estar disposto a enfrentar a reprovação de todos. Estava prestes a se valer das alcaparras, e entregar mesmo o Médio como se fosse o Melhor. Mas alguma coisa dentro dele se recusava a acatar aquela decisão. Entre estar de acordo com todos e consigo mesmo às vezes é difícil decidir. Por isso, ainda desorientado, ele abriu a lata de alcachofras, pegou um dos corações, e o colocou sobre um prato vazio. Sem saber direito o que fazia, perguntou:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — E então? Você é uma alcachofra. Você é parte deste problema. O que tem a dizer?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Feche a porta. Não precisamos de testemunhas — cochichou a alcachofra.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Só então ele notou que a porta que dava para o corredor estava aberta. Não se sentiu louco ou infeliz por poder ouvir uma alcachofra, mas extremamente grato. Era sem dúvida um poder bem interessante para um cozinheiro. Fechou rapidamente a porta, e se voltou, ansioso, para ouvi-la. Quase não acreditou no que ela disse:</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Não me olhe assim. Não espere muita coisa de mim. Você sabe que a decisão é inteiramente sua.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Ele nunca havia conhecido uma alcachofra tão lúcida. Sentiu que era alguém em quem podia confiar. </span> </span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Mas e o gerente? Ele não vai me demitir, se eu fizer o Melhor?</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Não exagere. Ele vai demorar no máximo uma semana para esquecer o assunto. Além do mais, você sabe que para ele não faz diferença, desde que o cliente pague a conta.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> A alcachofra tinha toda a razão, e agora o cozinheiro estava mais seguro que nunca. Ele intuía que, depois que fizesse o Melhor, pisaria na cozinha de forma diferente. Cada vez que abrisse uma lata, cada vez que acendesse o forno, cada vez que cortasse uma verdura e o cheiro fresco lhe excitasse as narinas, ele saberia merecer aquela cozinha, como os lobos merecem a noite e os pássaros merecem a generosidade do vento. Com essa convicção serena, ele foi ao fríser, pegou os cogumelos marinados, baixou o forno e picou o estragão. Antes de completar, voltou-se para a alcachofra, e foi sincero com ela, como ela tinha sido com ele.</span></span></div><div class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Tomei minha decisão. Vou ter que parti-la em duas.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> — Meu amigo, acredite: desde que entrei naquela vidro de óleo de girassol, não tenho esperado por outra coisa.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Ele acenou com a cabeça, ficou contente por ser chamado de amigo naquele momento crucial. Cortou a alcachofra com o coração tranqüilo e feliz. Em poucos minutos, chamou o garçom e anunciou: — O Melhor está pronto.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> O empregado, terrivelmente contrariado, não ousou fazer sequer um comentário. Percebeu imediatamente que estava diante de um poder maior e mais estável que o dele próprio. Pegou o Melhor, pegou o Médio, que já estava pronto, e os levou ao segundo andar. Passou o resto da noite em silêncio. Mesmo que quisesse dizer alguma coisa, não saberia se expressar.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="line-height: 25px;">No andar de cima, o cliente chegou a fechar os olhos ao mastigar. Estava surpreso. Quando pedira o Melhor, ele mesmo não acreditava que experimentaria algo tão delicioso. A mulher mastigava com raiva o seu Médio e, vendo o prazer do parceiro, não hesitou em interrompê-lo. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 25px;">— Não vai me dar uma provinha?</span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"></span><br />
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
O homem era generoso e compôs uma garfada para a mulher. Depois de mastigar rapidamente, ela declarou: </span>— Amor, é quase igual ao Médio.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"></span><br />
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Ele provou o Médio e objetou: — Não tem comparação, é muito diferente.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Ela fez questão de enfatizar: — É praticamente igual! </span> </span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; page-break-before: auto; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Vendo que não havia solução, o homem fingiu concordar, enquanto intimamente decidia terminar com aquela mulher. Não havia afinidade entre os dois, e ele intuía que isso não ia resultar num casamento feliz. No mesmo momento a mulher pensava que não lamentaria se aquele homem deixasse de procurá-la. Ele parecia realmente acreditar na diferença entre o melhor e o médio, e isso não podia ser um bom sinal. Não contaram esses pensamentos um ao outro, mas foi de fato a última vez que se viram.</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm; orphans: 0; widows: 0;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span style="font-size: small;"> Na cozinha, o jovem </span><span style="font-size: small;"><i>chef</i></span><span style="font-size: small;"> nem imaginava a separação que tinha causado. Mas estava mais seguro que nunca de saber a diferença entre o melhor e o médio. Uma diferença que agora estaria inscrita na sua própria história de vida, para sempre.</span></span></div><div align="JUSTIFY" style="line-height: 160%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-89535916479566399302011-06-21T15:17:00.011-03:002011-09-02T18:11:30.479-03:00Hoje ela não pensou em sexo<div class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="font-weight: normal; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">No metrô, quando ia para o estúdio, ela notou que um sujeito não parava de encará-la, e ficou morrendo de medo de estar sendo reconhecida. Pensou novamente em passar a andar de peruca e óculos escuros. O problema é que odiava peruca desde que soubera que em São Paulo havia assalto de cabelo. Perambular por aí coberta por cabelos roubados certamente daria azar, e azar era tudo que ela não queria agora que estava quase conseguindo comprar um apartamento nos Jardins. Talvez fosse melhor ir de táxi, mas sairia caro no fim do mês, e ela teria de economizar em roupa ou comida, o que seria um tremendo sacrifício. Agora que se acostumara a um almoço decente, não queria voltar a viver de esfirras e sanduíches.</span></div><div class="western" style="font-weight: normal; margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">O sujeito mal encarado saltou depois de algumas estações, e ela ficou mais tranqüila. </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Voltou a pensar na decoração do apartamento que estava prestes a comprar. Gostava muito de cozinha americana, mas o sofá devia ficar com cheiro de gordura, e seria horrível ver televisão ou descansar ou fazer as unhas sentindo cheiro de gordura. E quando sua mãe a visitasse, provavelmente diria algo como “por que você não põe uma divisória nessa cozinha?” ou “por que você não troca o estofamento do sofá? Está fedendo!” Com isso concluiu que uma cozinha separada era melhor. Se a sala fosse grande, ela poderia colocar uma mesa, e serviria o jantar ali, quando recebesse as amigas.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Só voltou a pensar no problema do reconhecimento quando entrou no estúdio, e um dos técnicos a cumprimento pelo nome artístico. Decidiu que ia perguntar ao Lucélio se não dava para mandar um motorista buscá-la e levá-la em casa. Alegaria que precisava de privacidade, estava sendo a toda hora reconhecida pelos fãs, que a cobriam de convites indecorosos. (Era mentira; mesmo depois de quatro anos fazendo filme, ela fora reconhecida uma única vez, por um sujeito tão tímido que não ousaria sequer chamá-la para um café com leite.)</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Quando a maquiadora começou a passar o rímel, ela pensou duas coisas: para quê tanto capricho na maquiagem, se os homens só iam prestar atenção no sexo? E por que a maquiadora a tratava com tanta frieza? Afinal, quem pagaria o salário dela, se não fossem as atrizes?</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Na cena de sexo oral, ela fechou os olhos e lembrou de um sofá lindo que vira na Style Decor, por apenas três prestações de quinhentos e poucos. O estofado era de um azul tão suave que dava até um pouco de sono. Era tudo que ela queria para sua sala, estava cansada de viver cercada de tanto vermelho. Quando o ator gozou em seu rosto, ela ficou se perguntando quanto custaria uma boa banheira. Depois de dançar, o que ela mais gostava era um bom banho quente. Teria uma banheira em casa, nem que precisasse fazer filme por mais dez anos!</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">No intervalo, o direitor parecia de ótimo humor. Pediu pitsa para todo mundo, fez uns comentários engraçados com a maquiadora, falando que ia abrir uma linha de filmes com gordinhas. Ela riu deliciosamente, e achou que era um bom momento para falar no lance do motorista. Estava enganada. Quando ela falou a palavra “motorista”, Lucélio a fulminou com os olhos, depois perguntou: </span><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">“sabia que eles exigem previdência? No fim das contas sai mais caro que um ator!</span><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">” Ela não estava segura de saber o que era previdência, e apenas riu, tentando disfarçar a decepção. </span> </div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Na cena de dupla penetração, houve um momento em que ela olhou para o teto e reparou pela primeira vez que no estúdio havia sancas de gesso. Sua mente disparou automaticamente algumas perguntas: "será que é muito caro? Mais quanto tempo de trabalho?" Daí ela lembrou que não queria trabalhar depois dos trinta; precisaria de um tempo para ter filhos. Tentou fazer mentalmente algumas contas para estimar quanto ganharia até lá, mas não conseguiu. Quando voltou a si, um dos caras já estava gozando, e ela pensou: "Meu Deus, foi muito rápido, o Lucélio vai querer gravar de novo." Mas o Lucélio não falou nada, e ela ficou aliviada.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span style="font-size: large;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">No metrô, de volta para casa, ela usou a calculadora do celular, e fez as contas sem dificuldade. Até os trinta, daria para pagar o apartamento, e talvez ainda sobrasse para um <i>smart</i>. Ser reconhecida de vez em quando era um preço que valia a pena pagar. Depois dos trinta, ela pretendia largar a carreira, e se dedicar de verdade a encontrar um marido; de preferência de olhos azuis, com um corpo bem cuidado, e um apartamento um pouco maior que o dela.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Traditional Arabic', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Entrou no seu conjugado bastante cansada, mas ainda deu tempo de mandar um email para aquela amiga que vendia cosméticos. O esfoliante estava acabando, e ela precisava encomendar mais um. Depois tomou um banho rápido, sem lavar os cabelos, e foi se deitar. Não demorou a dormir; estava exausta. </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;">Hoje foi apenas mais um dia em que ela pensou em sexo. </span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Traditional Arabic', serif; font-size: large;"><br />
</span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-1209749318955737542011-02-25T16:17:00.005-03:002011-06-24T18:21:58.352-03:00Um leve exagero<div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando eu estava passando perto da Parmê, vi um cartaz com uma foto de fetuccine, e tive uma forte impressão de que eu estava com vontade de comer — mas muito forte mesmo, como se fosse fome. Entrei e pedi um fetuccine com filé de frango, pensando em comer só metade. Mas foi só eu lembrar como tem gente passando fome, que não tive coragem de deixar sobra no prato. Matei tudo, e já ia pedir a conta quando notei que eles agora estão servindo musse de manga. Eu nunca tinha comido, e resolvi experimentar. Ia pedir com um café expresso, mas o garçom falou que a máquina de café estava estragada, então acabei pedindo com um <i>milkshake</i> pequeno de chocolate. Não sei por quê, chocolate me lembra café. Consigo substituir um pelo outro, na maior facilidade. O que nunca consegui é passar mais de um dia sem um dos dois. </span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois eu estava voltando para casa, e resolvi passar no Empório Árabe, para levar um pouco de <i>homus</i> e beringela defumada. Adivinha quem eu encontrei lá? Isso o mesmo, o Beto, o Marcos Flávio, a Irene, o pessoal estava todo lá. Tive que sentar para tomar uma cervejinha com eles. E a cerveja me abriu o apetite, e resolvi experimentar os tais quibes de coalhada que todo mundo está comentando desde que o Empório foi inaugurado. Meus amigos adoraram, e até aproveitaram para me apresentar ao patê de azeitona preta, que também é muito comentado, só que eu já não achei grande coisa. Mas claro que comi, para não fazer desfeita; por isso cheguei em casa sem fome nenhuma, e fui logo falando para minha mulher que eu não ia jantar. Ela me olhou com uma cara tão esquisita, que parecia que eu estava cometendo um crime. </span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Você está louco, amor? Claro que não vamos jantar. Hoje é o primeiro dia do Festival Gastronômico da Zona Sul. Vamos agora para o Folle Plat, eles já devem estar começando a servir alguma coisa.</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Enquanto eu tomava um banho rápido, percebi nitidamente que já não cabia mais nada no meu estômago. Ah, mas meu estômago não ia fazer aquilo comigo! Era um festival anual, eu não podia perder um evento daqueles por causa do capricho de um dos meus órgãos. Saí do banheiro e fui direto em cima de dois antiácidos. Quando minha mulher perguntou o que eu estava fazendo, </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">claro que não falei nada sobre meu encontro com o pessoal no Empório. Eu conheço minha mulher, ela ia falar que eu esqueci do festival, que eu não ligava para os programas dela, que eu passava mais tempo com meus amigos que com ela... enfim, essas picuinhas de mulher.</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No Folle Plat estavam servindo umas torradinhas com <i>foie gras</i>, e eu fiquei indignado, porque aquilo não era coisa de festival! <i>Foie gras</i> eu já como quase todo dia. Comentei com a Jussara, mas ela ponderou: — Você não notou, amor? Esse é com raiz forte, é completamente diferente. Realmente eu não tinha notado. Depois veio um ravióli de pato que, esse sim, eu nunca tinha provado, e estava delicioso! Minha mulher ficou reclamando que devíamos ter pedido um <i>merlot</i>, porque o pato não combinava com o <i>cabernet</i> chileno que o <i>sommelier</i> tinha indicado. Claro que eu concordei na hora. Não tenho paladar para vinhos, e não queria que ela percebesse que eu estava louco por uma coca-cola. Depois do <i>chessecake</i> de amora (que também me decepcionou; isso eu como todo dia) minha mulher encontrou umas conhecidas, e vi que era uma boa hora para aplicar o golpe do cigarro. Falei que eu ia fumar um pouquinho lá fora, e pedi a um garçom para me levar uma coca zero. Na calçada fiquei pensando que eu devia voltar a fumar de verdade; depois que eu como me dá uma vontade tremenda de sentir aquele gostinho do cigarro. Mas lembrei da Jussara buzinando no meu ouvido que cigarro faz mal para os meninos, que é um péssimo exemplo, e não sei mais o quê, e decidi ficar só na coca mesmo. Minha mãe bem que me avisou que eu não devia casar com uma mulher vinte anos mais jovem. Essa nova geração pensa completamente diferente. Ah, mas minha mãe nunca viu a Jussara nua, nunca viu como os mamilos dela ficam quando ela está excitada. Tem coisas que mamãe nunca vai entender...</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando eu estava voltando para o mezanino, senti uma dor no peito, que foi um troço incrível. Cheguei a pensar que eu ia ter um infarto, e fiquei alguns segundos despistando na escada, fingindo que eu estava tossindo. Foi nesse momento que uma força misteriosa agiu sobre mim. Sinceramente, eu tenho pena de quem não acredita em Deus. Quem não acredita, não entende esses momentos mágicos. Eu fui sentindo um calor no peito, uma palpitação, depois uma pressão, quase uma cãibra, e então... vagarosamente... deliciosamente, saiu aquele arroto fenomenal. Não pensem que eu fiz barulho, pelo amor de Deus! Eu estudei no Santo Inácio! Foi um arroto suave, silencioso, embora constante, convicto, eficiente, quase espiritual. Me senti tão leve que subi o resto da escada saltitando. Quando sentei à mesa, minha mulher já tinha pedido a conta, e fiquei pensando em como eu dormiria soberbamente depois daquele dia incrível. Quibes de coalhada, raviole de pato, <i>chessecake</i>... Acho que o vinho tinha me dado sono, e minha mulher certamente estava notando, porque perguntou: — Você não está com sono, está? Temos que ir agora para o Piacere Reale! As meninas me falaram que eles estão servindo uns caldos incríveis!</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Eu não ligo para caldos, mas lembrei do meu pequeno milagre na escada, e pensei: “Quer saber? Depois de um arroto daqueles, eu topo qualquer coisa.” </span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">E topei mesmo. O caldo de moranga estava uma delícia, o de lentilhas também. Mas nada superou o de feijão branco com calabresa! Claro que eu me controlei: não toquei nas torradas. Comi só uns pãezinhos de alho, e depois um queijinho provolone para acompanhar o licor. Minha mulher adora o Poire Williams, eu estou acostumado com o Cointreau, e preferi manter a tradição. Depois já íamos pedir a conta, e a Jussara exclamou: — Amor, e a sua grapinha? Não é aqui que servem aquela grappa que você diz que é maravilhosa? — Deus do céu, eu tinha esquecido completamente. No Piacere servem aquela grappa divina que vem direto de uma aldeia da Sicília. Mas eu já estava sentindo uma coisa estranha, uma certa indisposição. Falei com minha mulher que eu ia arrematar com a grappa, mas depois de um cigarrinho, e saí pensando na minha coca-cola. Foi aí que cometi um erro terrível, uma coisa idiota mesmo! Em vez de conversar numa boa com o garçom, eu pensei em comprar a coca num quiosque da praia. Estávamos a uma quadra do calçadão, e achei que seria até bom tomar a coca lá, depois voltar caminhando lentamente, dando um tempo para um novo milagre. Tudo ia muito bem, quando eu senti novamente aquela estranha pressão no peito, aquele cansaço inconveniente. Fiquei me perguntando se Deus tinha invertido o milagre, e o arroto viria antes da coca. Para Ele nada é impossível. Mas aí me veio uma fraqueza nas pernas, eu vacilei, meio tonto. Os passantes devem ter rido muito do sujeito de sapatos e calça social que, de repente, ficou de quatro em pleno calçadão. Precisei me deitar por um instante, e quando vi aqueles rostos assustados, falando em ambulância, tentei gritar que eu só queria uma coca, e tudo ia ficar bem em questão de minutos. Mas acho que eles não me ouviam, porque eu também não ouvia nada</span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">, e depois de um silêncio ritmado, que parecia barulho de mar, veio também um escuro completo, avassaldor. Quando eu acordei já estava no hospital.</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Os médicos me explicaram que não foi infarto, apenas faltou um pouco de sangue num músculo do coração. É coisa à toa, que um <i>stent</i> resolve sem dificuldade. Minha mulher mais uma vez brigou comigo, porque eu não falei que estava passando mal, e não sei mais o quê. Ora, por que eu não falei? É óbvio por que eu não falei. Eu ia deixar uma tontura de nada estragar o primeiro dia de festival gastronômico?!</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">E por falar nisso, o Festival é até domingo. Já conversei com o doutor Danilo, ele disse que me libera no máximo amanhã. Vocês já ouviram falar do canelone de amêndoas do Sapore Romano? Me disseram que estão servindo com um molho difenciado, por causa do Festival. E no Gustosità tem aquele tiramisu maravilhoso! Tenho certeza que Deus vai me ajudar. Não posso perder essa de jeito nenhum!</span></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div></div><div style="background-color: transparent; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-73252920553454377272010-09-29T17:34:00.018-03:002011-01-06T21:38:11.963-03:00Controle Remoto<div style="line-height: 22px; margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 15px; padding-bottom: 0px; padding-left: 0px; padding-right: 0px; padding-top: 0px; text-align: justify;"><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: large;"></span></span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Quando surgiu o controle remoto, no final dos anos setenta, Macaulay não deu muita bola. Achou que levantar para mudar de canal era no mínimo um bom exercício, e não valia a pena pagar o dobro numa televisão, só para ter o prazer de comandá-la à distância. Porém, com o tempo, o preço caiu bastante, e o número de canais só aumentou. Mac, como o chamava sua mulher, acabou cedendo, e aderiu à moda sem maiores dificuldades. Desde então, seu entusiasmo pela tecnologia não parou de crescer. Quando o microcomputador surgiu, nos anos oitenta, ele foi um dos primeiros compradores. Também foi pioneiro quando os telefones celulares começaram a tocar nos restaurantes e cinemas, no final dos noventa. Em 2004 fez um curso de </span><i><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">webdesign</span></i><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> e, quando se aposentou, em 2009, trabalhava criando aplicativos para </span><i><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">smartphones</span></i><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">. Na velhice havia se tornado um entusiasta de novas tecnologias, e assinava revistas especializadas, que tratavam desde livros digitais até viagens intergalácticas. Foi por meio delas que descobriu o que era criogenia, e, para desespero de Zelda, nunca mais conseguiu pensar em outra coisa. Chegou a mudar seu círculo de amigos, porque os retrógrados não adeririam à idéia nem depois que o preço caiu para menos que o de um condicionador de ar. Sua maior decepção, sem dúvida, foi não ter convencido a mulher, e, depois de inúmeras discussões, ficou decidido que os dois não falariam mais no assunto, para evitar aborrecimentos. Afeita a seitas esotéricas e idéias orientais, que Macaulay chamava simplesmente de superstição, Zelda fazia questão de defender seu direito a morrer em paz. Argumentava que: ou haveria vida após a morte – e essa seria um pouco melhor – ou haveria o descanso eterno, sem nenhum espaço para saudade. As duas opções seriam melhores que acordar num mundo assombrado por andróides e infestado de aparelhinhos irritantes que seus donos já nem lembrassem para que serviam.</span></span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
Macaulay respeitou o direito da mulher, mas sempre que se encontrava com os amigos não deixava de expressar sua profunda frustração: – Ela não acompanha o progresso da medicina, não vê que é apenas questão de tempo até conseguirem fazer um transplante de cérebro!</span></span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
Os amigos concordavam. Sim, era absurdo. Ela preferia morrer a dar um pouco de crédito à ciência. E agora estava tão barato, apenas quatrocentos dólares por ano! Que mulher mesquinha.<br />
<br />
Mas Zelda também respeitou a decisão do marido, e guardou com cuidado o telefone da equipe de criogenização. Um dia Mac sentiu uma palpitação e lembrou à mulher: – Quando minha hora chegar, não vá esquecer de chamá-los, hem! Depois tomou seu comprimido para pressão, e ficou estranhamente taciturno. Sua mulher logo se preocupou: – O que foi, querido? Por que esse silêncio todo? O homem resmungou um pouco, depois desabafou: – Zelda, você vai casar de novo? – O quê?! – Quando eu for criogenizado, você vai arrumar outro marido? A mulher ficou até lisonjeada. – Ora, o que é isso, Mac! Eu tenho sessenta e quatro anos, você acha que eu ainda penso nessas coisas! – Sei lá, de repente você encontra um velho que nem você, que goste dessas bobagens orientais. – Ora, Mac, não seja bobo!<br />
<br />
Zelda cortou o assunto, mas naquela noite dormiu até melhor. Nos dias seguintes começou a considerar a criogenização com mais simpatia. Mac, afinal, era um bom marido, sempre trabalhara e arcara com as maiores despesas do lar. Não era justo deixá-lo sozinho. Devia ser muito triste passar anos trancado naquele tanque de nitrogênio líquido. E se ele acordasse mesmo no tal futuro, será que se acostumaria a falar com andróides? Como ele se sustentaria? Sua aposentadoria se tornaria vitalícia? Dúvida e compaixão se alternaram no coração da velha, e ela concluiu que, se o marido insistisse mais um pouquinho, ela acabaria indo para o tanque com ele. Não por ela, que detestava qualquer aparelho com mais de quatro botões, mas pelo seu velho Macaulay, que sozinho não conseguia nem achar os óculos. Alguém tinha que cuidar dele, e se fosse preciso passar séculos imersa em nitrogênio líquido, ela estava disposta a fazer esse sacrifício. Decidiu que explicaria tudo ao marido assim que ele viesse com mais uma especulação cansativa sobre o futuro.<br />
<br />
Não podia imaginar que o destino lhe negaria essa oportunidade. No dia seguinte, Macaulay estava vendo televisão, quando de repente o controle remoto parou de funcionar. As pilhas se esgotaram, e ele teve que se levantar para mudar de canal. Mas seu coração, muito desgastado, não suportou o pequeno trajeto. A dor no peito foi até fraca, comparada às outras que vieram após a queda. Contudo Macaulay lamentou mesmo foi a perda da fala, porque o rosto de Zelda, nos momentos finais, parecia mais consternado que ele esperava. O velho te</span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; font-size: small;">meu que ela tivesse perdido o telefone da equipe. Mas seu receio não durou nem dez segundos. Logo ele mergulharia numa calma profunda, sem sonoridade, sem luz, sem nada que pudesse deixar uma lembrança.</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> <br />
Quando acordou, a primeira coisa que viu foi um teto branco, depois notou que ele não era branco, seus olhos é que estavam se acostumando à iluminação. Parecia estar num hospital, e chegou a lamentar que tivesse apenas passado por mais um infarto. Uma voz de mulher o saudou – Bom dia, senhor Smithson. Em breve uma de nossas enfermeiras falará com o senhor – e ele ficou mais aliviado, porque pelo menos era um hospital moderno, com dispositivos eletrônicos que sabiam que ele tinha acordado. A enfermeira era linda, e Macaulay quase não entendeu o que ela dizia, de tanto que ficou vidrado no movimento suave e ritmado dos seus lábios. Quando ela parou de falar, ele arriscou um comentário engraçadinho.</span></span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
– Ah, minha querida, se eu tivesse apenas uns dez anos a menos, não saía daqui sem o seu telefone. </span> </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">– </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">A resposta da garota acelerou seu batimento cardíaco, que ele podia acompanhar num pequeno monitor ao lado da cama.</span></span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> – Senhor, devo avisá-lo que sou uma andróide. Neste pequeno panfleto o senhor encontrará informações sobre minha companhia. Caso tenha interesse, poderemos fabricar uma andróide com noventa e nove por cento de semelhança com a senhora Smithson, inclusive no sotaque e nos hábitos mentais.<br />
<br />
Em seguida a beldade abriu um pequeno armário, e informou: – Esses são os pertences que a senhora Smithson considerou que seriam de interesse pessoal do senhor. Aqui está o cartão de outra companhia que poderá reconstruí-los caso algum deles venha a se desfazer. Ainda em estado de choque, Macaulay perguntou: – Quando ela morreu? – O senhor se refere à Sra. Smithson? – Claro que me refiro à minha mulher, sua máquina estúpida. De quem mais eu estaria falando? – Me desculpe, senhor. Eu precisava confirmar. Ela morreu em 2021. Fará exatamente 218 anos no dia 21 de outubro de 2239.<br />
<br />
Ele ia perguntar quanto tempo ficou dentro da câmara de criogenização, mas as palavras simplesmente não saíram. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro talvez não fosse tão hospitaleiro quanto ele tinha pensado. Ficou alguns segundos contemplando seus objetos pessoais, que eram um leptop, um chapéu de caubói, algumas fotos de Zelda e um controle remoto de televisão.<br />
<br />
Os dias seguintes foram de descobertas paradoxais. Quanto mais Macaulay conhecia coisas novas, mais lhe parecia que o mundo no fundo continuava o mesmo de sempre. Havia mais jardins, as pessoas trajavam estranhos macacões de plástico. Óculos inteligentes – chamados <i>smartglasses</i> – substituíam a televisão, os jornais e quase tudo relacionado a informação. Mas continuava a haver pobres e ricos, e o velho descobriu que precisaria voltar a trabalhar. Depois de alguns meses de treinamento, ele não teve dificuldade em se adaptar, e se tornou inspetor de qualidade numa fábrica de <i>petbots</i> (eram robôs que acompanhavam as pessoas filmando e gravando tudo que elas faziam, para consulta pessoal ou para servir de prova em caso de processos judiciais). Sua maior dificuldade era parar de pensar no passado. Quando ficava sozinho, punha-se a olhar suas fotos antigas, e como não lembrava muito bem dos seus sentimentos, começou a pensar – e até mesmo a acreditar – que tinha sido feliz. A Zelda das fotos tinha seios firmes e um sorriso encantador, não lembrava em nada a mulher rabugenta e entediante que havia se tornado mais tarde. Ele mesmo parecia contente entre os amigos, tinha um riso modesto e franco, um rosto descontraído, parecia um homem realizado. O futuro, por outro lado, era apenas um conjunto de rotinas maçantes que intensificavam sua sensação de vazio e solidão. Um dia recordou os argumentos de sua mulher sobre a morte, e se pegou pensando que, afinal, ela podia ter razão. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; font-size: small;">Morrer não seria mais fácil que se cercar de atividades cada vez mais complexas para conservar a vida?</span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> <br />
Daí para a tentativa de suicídio foi apenas um passo. Se Macaulay ainda está vivo é porque ressuscitar uma pessoa agora é tão banal quanto acender um fósforo. Depois de muita terapia e alguns órgãos substituídos, ele acabou consentindo em tentar de novo. O problema, como lhe explicaram os psicanalistas, era sua tendência a idealizar o passado como um estado paradisíaco, sem conflitos e contrariedades. Parece que Macaulay fazia agora com o passado o que no passado fizera com o futuro.<br />
<br />
Foi também na terapia que ele descobriu uma forma criativa de lidar com essa tendência. Começou a escrever romances de época, que logo cativaram a todos pela riqueza de detalhes históricos. No futuro, familiarizados com os comandos por movimento de íris, todos adoram ouvir uma boa história sobre controles remotos. O próprio exemplar de Macaulay valeria uma fortuna se ele quisesse vender. Mas ele garante que nunca se desfará do objeto. Depois de duas ressurreições, ele começou a acreditar que certas coisas têm, para além de sua função imediata, um imensurável valor sentimental.</span> </span></div><div style="font-size: 12px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;"><br />
</span></span></div></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-42183711719758686392010-05-31T13:54:00.007-03:002010-09-26T22:56:39.311-03:00A menina 2D<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando a menina do espelho começou a conversar comigo, meu tio já tinha sofrido aquela crise, e fui esperta o bastante para não falar dela para ninguém. Eu não estava nem um pouco a fim de passar semanas numa clínica, depois viver entupida de comprimidos, e ser tratada feito criança por todo mundo. Aliás, eu estava entrando na adolescência e tudo que eu queria era ser tratada como adulta. Falar sobre a menina do espelho, contar que ela me dava uns conselhos maneiros — embora às vezes meio radicais — seria praticamente pedir que me internassem. Eu acabaria que nem o pobre do tio Sélton, que agora não tinha emprego e ficava falando que era artista. Por isso eu trancava a porta para conversar com ela, e não contei nem para a Josilene, minha melhor amiga, que a menina do espelho existia. </span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O que mais me impressionava nem era que ela morasse no espelho, mas que ela acertasse todas as suas previsões. Ela foi a primeira a falar que minha mãe ia acabar pedindo o divórcio e </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">que minha irmã ia voltar do exterior ainda mais pobre que antes. Também previu que meu pai ia ficar muito solitário depois da separação, e acabaria gostando bem mais de mim. Eu ficava súper contente em ter uma amiga daquelas, e morria de vontade de contar para as meninas, mas aí eu lembrava do tio Sélton, e tratava de ficar calada. Eu adorava minha amiga secreta, e o silêncio era o sacrifício que eu tinha que fazer para a gente continuar se vendo.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois eu fui crescendo, e comecei a consultá-la para coisas cada vez mais sérias. Quando fiz dezoito anos, por exemplo, todas as minhas amigas já tinham silicone, e eu sentia que também já estava precisando. O que não tinha crescido até os dezoito, provavelmente não ia crescer depois. Meu pai, naquela época, andava um amor comigo, adorava me encontrar nas baladas e ser apresentado às minhas amigas. Claro que elas não queriam nada com ele, mas eu falava que elas o achavam uma gracinha, um coroa muito fofo, e ele ficava todo feliz, rindo que nem sambista de televisão. Para minha surpresa, ele não se opôs à cirurgia, apenas perguntou se dava para parcelar no cartão de crédito. Minha mãe é que ficou contrariada, e começou a jogar uma conversa pessimista para cima de mim. Tentou me fazer medo, disse que o silicone podia estourar, que ia prejudicar a produção de leite, que podia tirar a sensibilidade da pele. Hoje sei que era tudo mentira, mas na época eu fiquei assustada, e fui correndo consultar a menina do espelho. Como sempre, ela foi bastante lúcida. Explicou que minha mãe estava era morrendo de inveja, porque meu pai pagava tudo para mim, e não queria nem conversar com ela. Falou que os meninos me dariam muito mais atenção, e isso ia botar minha auto-estima lá nas alturas. Não demorei a perceber que ela tinha toda razão. Coloquei apenas trezentos mililitros em cada seio, mas isso bastou para que mil garotos pedissem meu telefone, e falassem de mim o tempo todo, como se eu fosse uma dessas mulheres do Big Brother. Todo dia eu agradecia à menina do espelho, e ela ficava me elogiando e me olhando com tanta atenção que até fiquei especulando se ela não era bi. Mas eu não tinha que me preocupar com isso, afinal, ela morava no espelho, e de lá de dentro não dava nem para me passar a mão.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas foi só eu pensar nisso que comecei a sentir pena dela. A coitada ficava enclausurada naquele espelho, não podia ir para a balada, não pegava ninguém, não conversava com ninguém a não ser comigo. Sinceramente, eu morria de dó. Às vezes, no meio de uma balada ou de uma festinha, eu ia para o banheiro e contava para ela tudo que estava acontecendo, só para ela se distrair um pouco. De início ela gostava, me ouvia com atenção, e fazia observações interessantes sobre as minhas aventuras. Mas, depois de um tempo, ela começou a falar umas coisas estranhas, ficava me depreciando, enxergava defeito em tudo. Quando eu contava que algum carinha estava me cantando, ela perguntava:</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Você ainda gosta disso? Não está cansada desses joguinhos?</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando eu contava alguma briguinha com a minha mãe, ela apelava:</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Você ainda não percebeu que ela quer você saia de casa? Você já não está muito velha para morar com a mamãe?</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Eu achei que ela estava ficando muito amarga, por isso nem comentei quando conheci o Fernando. Ele era mais velho, tinha um Audi, e trabalhava de executivo numa importadora. Eu não sabia direito o que era executivo, mas nem quis saber quando vi o apartamento lindo que ele tinha no Leblon. Era um quarto-e-sala súper espaçoso. No quarto tinha cama de casal, e no banheiro tinha até bidê. No dia que a gente transou no sofá, eu fique pensando: “Nossa, como essa sala é grande! Se eu morasse aqui, com certeza poderia trazer minhas amigas para ver um filme.” Quando a gente transou na cama de casal, eu estiquei bem os braços e fiquei passando as mãos no lençol. Ele deve ter achado que eu estava gozando, mas eu estava medindo a largura da cama, e pensando que dava tranqüilo para a gente dormir ali sem incomodar um ao outro. Minha alegria culminou no dia que dei uma desculpa para ir à cozinha, e abri a geladeira dele. Meu Deus, tinha tudo que eu adorava comer: palmito, tomate seco, mussarela de búfala! Desde aquele dia foi como se eu estivesse apaixonada, porque comecei a pensar só no Fernando, a sonhar com o Fernando, e a tentar fazer absolutamente tudo para agradar o Fernando — incluindo engolir um bocado de sêmen. Não importava se ele não fosse o homem da minha vida, ele era a porta para o apartamento da minha vida!</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas não fui boba de contar essas coisas para a menina do espelho, porque, do jeito que ela andava amarga, com certeza ia me encher de críticas. Ia falar que eu não amava o Fernando e via nele só uma solução para sair da casa da minha mãe. Ia inventar que ele também não me amava, e estava apenas obcecado pelo prazer que eu lhe dava na cama. Para evitar essas discussões, passei a só cumprimentar a menina do espelho, e quando ela me perguntava alguma coisa mais íntima, eu dava uma desculpa, e virava as costas. Eu já era uma adulta, já estava na hora de tomar minhas decisões sozinha.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Fiquei um tempão sem falar com ela, e não contei como foi o meu casamento, nem como minha mãe ficou contente quando eu me mudei. Não confessei minha enorme decepção com a minha mãe, que nem queria saber se eu estava feliz, só estava louca que eu achasse outro lugar para morar. Não falei das inúmeras piadas que minha irmã ficou fazendo, só porque o Fernando era quase vinte anos mais velho que eu. E também enfrentei calada o preconceito das minhas amigas, que diziam que, se elas quisessem coroa, era só estalar o dedo que vinham duzentos. Mas eu não me ofendia com esse papo. Elas até podiam pegar coroa, mas quantos queriam levá-las para morar com eles? Eram uma burras, umas fúteis, não sabiam fazer um ravióli ao molho de funghi ou um <i>petit gateau</i> com sorvete. Tinham nascido para aqueles burros malhados que só serviam para motobóis. Mas não comentei nada disso com a menina do espelho, porque eu sabia que ela ia me chamar de arrogante, e talvez até insinuar que eu não era assim tão diferente das minhas amigas.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Fui perdendo o contato com elas, e comecei a gostar de literatura. Passei a ler uns livros antigos e demorados que não tinham nada a ver com vampiros ou lobisomens. Fui descobrindo um monte de mulheres que tinham vivido os mesmos problemas que eu, e aquilo me dava um tremendo alívio. Ler era bem mais seguro que falar com o espelho, porque eu podia ver os problemas dos outros, sem que ninguém visse os meus. Acho que esqueci completamente a menina do espelho, de tão fascinada que eu ficava com aquelas estórias de jovens que queriam casar, e casadas que queriam ter amantes.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Nessa época, o Fernando adorava a minha comida, e falava que eu não precisava trabalhar, que eu devia ficar só cozinhando e cuidando da casa. Se eu aceitava essa idéia, era porque queria ler cada vez mais, e depois fazer uma faculdade de psicologia ou letras. Mas, às vezes, a leitura ficava chata, e eu comecei a entrar na internet, e puxar assunto com estrangeiros. Pensei que o Fernando nunca ia ter ciúme de estrangeiro, porque um cara que estivesse do outro lado do mar podia até me cantar, mas não poderia nem me encostar a mão. Eu só conversava com eles para praticar meu inglês e pedir dicas de livros. O problema é que pintavam uns caras meio depravados, que ficavam pedindo para eu fazer umas coisas indecentes. Uns queriam que eu ficasse só de calcinha, outros pediam que eu me masturbasse na frente da câmera. Claro que eu me recusava. Eu confesso que algumas propostas chegaram a me excitar, mas eu não estava nem um pouco a fim de entrar em crise com o Fernando, e ter que voltar a morar com minha mãe. Quando eles vinham com aquele papo estranho, eu desconversava e começava a falar sobre livros. Foi assim que eu fiquei sabendo da Jane Austen, da Emily Brönte, e de outras mulheres que pareciam bem mais infelizes que eu. Depois alguém me indicou umas autoras iranianas, e quando li os livros delas, aí sim, me senti satisfeitíssima com a vida! Meu Deus, como tinha mulher infeliz no mundo. E eu tinha aquele apartamento arrumadinho, morava no Leblon, ia ao cinema todo sábado. Só sentia falta de sair para dançar, mas isso eu resolvia colocando uma música bem alta para arrumar a casa. Comecei a me sentir bem comigo mesma, e até pensei em voltar a falar com a menina do espelho, só para ter uma companhia.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas eu não devia ter pensado nisso, porque umas coisas muito estranhas começaram a acontecer. Já no dia seguinte recebi uns emails de caras da internet, agradecendo minha perfórmance, dizendo que eu tinha arrasado, que tinha sido incrível para eles, e não sei mais o quê. Eu não fazia idéia do que eles estavam falando, e achei que eles tinham pirado de ficar tanto tempo na internet. Mas toda semana chegavam mais emails, pedindo para eu fazer mais, alguns oferecendo até dinheiro, e fiquei feito louca perguntando o que estava acontecendo, de que diabo eles estavam falando. Quando um cara me contou, eu simplesmente não acreditei! Lógico que não era eu! Ou eles estavam me confundindo ou era uma puta alucinação coletiva! Mas logo me bateu uma intuição de que a menina do espelho podia ter alguma coisa a ver com aquilo, e fui correndo no banheiro tirar satisfação com ela.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Pode aparecer, e me explicar tudo que está acontecendo — eu mandei.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O que mais me impressionou foi que ela admitiu tudo sem a menor vergonha. Eu fiquei súper chocada, não conhecia esse lado pervertido dela.</span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Coitados desses moleques — ela alegou. — Eles são uns nerdes, nunca devem ter visto uma mulher pelada. Quê que custa mostrar um pouquinho para eles?</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Ah, você é louca, é?! Você vai me dizer que usou a minha imagem para ficar se exibindo pela internet?!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Lamento, minha filha, mas a imagem que eu tenho é essa. Não posso usar outra. </span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas ela falou aquilo de um jeito que quase me matou. Uma espécie de satisfação maldosa, misturada com escárnio. Eu percebi que ela tinha prazer em se passar por outra, em poder ser uma completa fraude, sem levar culpa nenhuma por isso. Me subiu uma raiva tão grande que, se ela não estivesse fechada dentro daquele espelho, eu tinha enfiado a mão na cara dela! Foi aí que eu lembrei que ela morava dentro do espelho. Como é que a safada tinha entrado na minha <i>webcam</i>? Perguntei na mesma hora, e tive que engolir um papo suspeito.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Eu não moro só no espelho — ela falou. — Eu posso me projetar em qualquer superfície plana que produza uma imagem dotada de sentido. Os monitores são superfícies planas, e produzem imagens que... bem, você entendeu, não é?</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas eu não tinha entendido direito. Que papo era aquele? Superfície plana, imagem dotada de sentido?! Além de safada, a putinha agora era filósofa?!</span><br />
<br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Fiquei meio transtornada, e passei dias sem usar o computador. Meu medo era que o Fernando descobrisse alguma coisa, e achasse que a culpa era minha. Passei a ter ódio da menina do espelho. Não era justo que essa loucura toda pudesse acontecer. Ela podia aparecer em qualquer tela por aí, e todo mundo ia achar que era eu. Comecei a ficar súper tensa quando pensava nisso, e passei a buscar mais e mais sexo com o Fernando, para me aliviar, e para ver se eu parava de pensar no assunto. Aliás, depois que a gente se casou, ele já não fazia muito, e aquilo às vezes me incomodava. Não que eu gostasse de sexo, porque eu não gostava, mas era uma das poucas coisas que me deixavam com uma sensação de dever cumprido. Eu não trabalhava, não estudava, passava os dias lendo e acessando a internet. Quando fazíamos sexo, eu pensava: “Pelo menos isso eu sei fazer. Pelo menos consigo satisfazer meu marido.” Mas o problema é que ele já não estava querendo, e aquilo acabava me deixando nervosa. Um dia insinuei que de vez em quando ele bem que podia tomar um viagra. Eu não conhecia tanto os homens, e não sabia que isso era suicídio. A partir daquele dia, tudo mudou no nosso casamento. O Fernando passou a ser ciumento, me ligava toda hora, perguntava onde eu estava. Quando a gente ia numa festa, ele ficava me olhando de longe, depois falava que eu tinha olhado para fulano ou ciclano. Claro que era tudo loucura da cabeça dele, e eu ficava puta de ter que me explicar mil vezes, falar que eu o amava, pedir perdão o tempo todo pelo papo do viagra. Fui ficando cansada dele, e me sentindo cada vez mais incompreendida. Agora eu não tinha nem a menina do espelho para me entender. Mas o pior era que eu nem podia me separar. O apartamento era dele, se eu pedisse o divórcio, ia ter que voltar a morar com minha mãe. Tudo era aceitável, menos conviver de novo com minha mãe, principalmente agora que ela tinha arrumado um namorado mais novo e estava matando a família de vergonha. O jeito era tentar um emprego, e eu sabia que nunca ia conseguir um bom salário, porque não tinha faculdade. Mas era a única alternativa que me restava. Talvez juntando por uns dez anos, eu conseguisse comprar um apartamento, e ter uma vida só minha. Eu queria esquecer o Fernando, com aquele ciúme doentio, e minha mãe, com aquele egoísmo, sei lá, doentio também. Aí entrei na internet e comecei a me inscrever nos saites de emprego. De repente, quem apareceu no meu monitor e começou a falar comigo? Sim, ela mesma, a garota de espelho. Lembrei daquele papo sobre superfície plana, e falei que era melhor começar a chamá-la de menina 2D. </span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— É mais apropriado mesmo — ela falou. — E mais contemporâneo também. </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Não sei de onde a putinha tirava essas palavras. Eu ainda estava meio irada com ela, mas não estava muito a fim de brigar. Minha situação era deprimente, e talvez ela pudesse ser de alguma ajuda. E acho que ela adivinhou esse pensamento, porque do nada resolveu me passar o endereço de alguns saites.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Entra neste aqui ó: “stripweb.com” E neste: “meancams.com”.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Quando entrei nos saites, me arrependi na hora de ter dado papo para aquela putinha. Era só mais uma das idéias pervertidas que ela tinha.</span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Você acha que eu sou que nem você, sua louca?! Acha que eu vou ficar fazendo strip pela internet, só para ganhar dinheiro?</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Não é só strip — ela falou. — Tem que se masturbar também.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Eu nem respondi. Desliguei o computador e fui para a cama chorar. Meu casamento era um fracasso, eu não tinha uma carreira, e minha única amiga, que me conhecia desde criança, estava sugerindo que eu me tornasse uma espécie de prostituta. Chorei sem parar, depois fiz uma maquiagem meio trash, para o Fernando não descobrir que eu passei a tarde chorando. Mas justamente nessa hora ele me ligou, para falar que tinha um lance complicado rolando lá no trabalho, e ele ia chegar súper tarde. Aí voltei para o computador e olhei de novo aqueles saites. Meu marido bem que estava merecendo um chifrezinho. Ele não me amava, não ligava nem um pouco para meu estado emocional. Quando vi que uma menina podia ganhar uns trezentos por dia, só fazendo aquelas bobagens, eu quase caí para trás. Meu Deus, trezentos reais por dia! Em quanto tempo daria para comprar um apartamento?! Mas eu não podia fazer aquelas coisas, não tinha nada a ver comigo. Mostrar os peitos e me masturbar na frente da câmera?... Eu nem gostava de me masturbar! Foi então que me veio aquela idéia incrível. A idéia redentora, a idéia perfeita, que me mostrava como eu podia me aproveitar completamente daquela situação. Eu não era safada, não gostava daquelas indecências, mas ela gostava. Se eu entrasse no saite, e ficasse só conversando com os meninos, aposto que a menina 2D ia se excitar, e fazer um monte de loucuras! Ela podia se dar ao luxo desses descaramentos, porque a culpa sempre cairia em cima de mim. Mas a culpa agora era uma transferência bancária para a minha conta corrente. Vasculhei os saites, e peguei todas as informações. No dia seguinte, abri a conta. Mas continuo com a minha política, e não faço nada daquelas bobagens. Eu só entro no saite, e fico conversando sobre Jane Austen e mulheres iranianas. E ela faz o que gosta de fazer. Voltamos a ser amigas, e nunca estive tão feliz por conhecê-la. Acho que a menina 2D finalmente se tornou, para mim, uma imagem dotada de sentido.</span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-50231087273218610272010-04-22T14:11:00.005-03:002010-10-14T18:41:54.869-03:00Desordem<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Eu odeio bagunça. Meu quarto nunca foi bagunçado, pelo contrário, eu achava tudo que eu queria em questão de segundos. Minha mãe é que pensava que estava tudo bagunçado, ela não percebia que as coisas estavam absolutamente no lugar, porque eu podia lembrar onde as tinha colocado e pegá-las na hora que eu quisesse. Acho que a única pessoa que entendia isso era o Paulinho. Ele ficava à vontade na minha bagunça, não mexia em nada, sentava, deitava, às vezes pegava um livro, mas depois colocava onde tinha encontrado. Eu lembro perfeitamente quando comecei a amá-lo, porque eu tinha levado um fora do Alessandro, e estava percebendo que o Caio também não queria nada comigo. Mas o Paulinho estava sempre lá em casa, a gente conversava sobre coisas legais, como seriados de televisão e livros de vampiro, e eu comecei a pensar que tudo seria mais fácil se eu amasse o Paulinho, se eu conseguisse ver um charme especial naquele jeito calado, naquela cara impassível que ele mantinha diante tudo, até das contrariedades. Fui aos poucos criando uma estratégia para me aproximar, até que um dia estávamos vendo televisão, e eu falei:</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Estou numa fase ótima para homem, tenho recebido um monte de cantada.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— É mesmo?</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Só você ainda não me cantou. Você se segura, bem, hem! Ha, ha, ha!</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— É mesmo? — Ele era meio lerdo, mas pelo menos chegou a rir. Aí eu mandei essa:</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Me dá uma cantada só para eu ver como é o seu estilo. </span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Como assim? </span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Me dá uma cantada, seu tonto!</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Ah... Você é linda, ué!</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Ele não era muito original, mas naquela hora eu percebi claramente que ele gostava de mim. Sei lá, a cantada saiu com um jeito tão sincero. Depois ele ficou me olhando sem graça, rindo de nervoso, e eu fiz aquela carinha de quem quer ser beijada, para facilitar para ele, mas como ele nem se mexeu, eu o agarrei e o beijei com força, com decisão, acho que até com raiva — não dele, mas de Deus, que não me mandava um homem melhor. Depois o beijo foi engrenando, e ficou até gostoso. Tenho certeza que ele queria me beijar naquele dia, mas ele era muito tímido, aos poucos fui entendendo isso melhor.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Aí veio aquela fase em que eu não pensava mais no Caio nem no Alessandro, porque eu ficava horas com o Paulo no meu quarto, beijando e curtindo aquela fissurinha. Quando ele tentava alguma coisa, tipo colocar a mão dentro da minha calça, eu falava: — Você ouviu esse barulho? Acho que minha mãe está subindo — mas não havia barulho nenhum, eu só queria me exercitar nessa arte de aceitar e rejeitar que eu estava descobrindo ser o maior e mais verdadeiro prazer feminino. O Paulo era bem comportado e não tentava nada muito ousado, e às vezes eu me perguntava se eu gostava realmente dele ou se ele não era só um estágio que eu estava fazendo antes de encontrar o homem da minha vida.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas a minha bagunça continuava a mesma, e a minha mãe já falava que não ia entrar nunca mais no meu quarto. É difícil explicar como eu achava chato tirar as coisas do lugar e colocar dentro de uma gaveta, do armário ou em cima da estante. Me parecia que eu estava traindo a minha própria ordem, e aderindo a um esquema externo que não tinha nada a ver comigo. Acho que foi por isso que passei a gostar bastante do Paulinho. Ele nunca reclamava da minha bagunça, pelo contrário, ficava lá, deitado no meio das minhas coisas jogadas, às vezes olhando para o teto, às vezes rabiscando num dos meus cadernos velhos. Ele integrava a minha bagunça e eu gostava disso. Aos poucos fui deixando que ele fizesse cada vez mais coisa, liberei os seios, deixei ele enfiar a mão na minha calcinha, e até comecei a explorar o corpo dele. No dia que eu o chupei, e o deixei gozar na minha boca, fiquei pensando que ele nem devia imaginar o quanto meu amor tinha a ver com aquele quarto desordenado onde a gente ficava. Mas em vez de falar sobre isso, eu acabei dizendo que o amava, e eu mesma não entendi por que a voz saiu fraca e meio trêmula. Ele me olhou com um olhar meio vazio, e eu achei que ele ia falar “eu também”, mas ele disse: — É mesmo?</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Acho que foi a partir desse dia que começou a acontecer uma coisa estranha: eu não achava mais nada no meu quarto. Devia ser culpa da minha mãe, porque, quando eu era obrigada a guardar alguma coisa, eu não lembrava onde tinha guardado. Era um ato artificial, que não tinha partido de mim, e minha mente não registrava. Mas depois eu já não achava nem o que eu tinha deixado no chão. E também comecei a me incomodar com a sujeira que acumulava de baixo da cama, e passei a sentir com nitidez o cheiro do Paulo no lençol, e aquilo me desagradava, porque significava que ele passava semanas sem ser lavado. E o tonto do Paulinho continuava no centro daquela bagunça, olhando para o teto, rabiscando folhas velhas, costas de envelopes usados, ou até mesmo dormindo, como se fosse um gato de estimação e tivesse o direito de dormir em qualquer canto da casa.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Um dia eu estava procurando uma caneta, e como não a encontrava, perguntei ao Paulinho se ele não se incomodava com aquela bagunça toda. Ele respondeu que sabia que eu lembrava onde eu tinha deixado as coisas, e confessei que eu já não lembrava mais, que talvez precisasse aderir à maldita ordem da minha mãe para encontrar a minha própria tralha. Achei que ele ia me apoiar e dizer que aquilo ia passar ou qualquer coisa assim, mas ele disse: — É mesmo? — e foi aí que eu percebi que alguma coisa estava muito errada com o Paulinho. Não era certo ele me aceitar daquele jeito. Ele tinha que, pelo menos, tentar me transformar numa pessoa mais organizada, mais disciplinada, mais capaz de alguma atitude. Ele me aceitava do jeito que eu era, mas eu queria ser outra pessoa, por isso não aceitava que ele me aceitasse. Fiquei meio confusa, não sabia direito o que dizer, e acabei por pedir que ele fosse embora. Ele fez uma carinha meio triste, e eu pensei: “pelo menos isso! Pelo menos ele é capaz de fazer outra cara!” Naquele dia coloquei algumas coisas dentro do armário, depois pensei em ligar para o Paulinho e pedir desculpa, mas senti que eu podia segurar a vontade até o dia seguinte.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">E no dia seguinte eu já me sentia melhor, porque vi que eu era capaz de colocar certa ordem nos meus impulsos. O Paulinho voltou com a sua cara habitual, e, no maior cinismo, me perguntou se eu estava mais calma. Fiquei com tanto ódio que respondi: — Claro que eu estou mais calma — e ainda o beijei com uma ternura fingida. Comecei a ver que eu podia não apenas controlar meus impulsos, mas decidir se eu ia demonstrá-los ou não. Fiquei mais introvertida, passei a pensar um pouco antes de falar, e pedia licença ao Paulinho para arrumar a cama e guardar minhas roupas. Então foi ficando mais claro para mim algo que eu já sabia, mas não gostava de admitir. Eu nunca havia amado o Paulinho, eu apenas me acostumara com ele. O homem da minha vida devia ser mais organizado, mais ativo, e ao mesmo tempo mais estrategista. Pensava antes de falar, e falava as coisas certas. Sabia impressionar uma mulher. Naquela mesma semana decidi que ia terminar com o Paulinho e, quando chegou sexta-feira, eu me arrumei toda e me maquiei como uma putinha, e o levei para dançar. Fiquei dançando e flertando com outros homens na frente dele, e aquilo me divertia, e me fazia sentir poderosa, mas acho que o sonso nem estava ligando. Fiz a mesma coisa outras semanas, depois ainda dei em cima de um amigo dele, e quando o cara finalmente soltou uma indireta, eu fui correndo contar para o Paulinho.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Sabe quem fica jogando indireta para mim? Seu amigo, o Arsênio. Ele fica falando que eu sou bonita demais para ter um namorado só. </span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Pensei que ele ia dizer “é mesmo?”, mas ele disse: — Ah, o Arsênio, grande figura!</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Então comecei a pensar que eu mesma ia ter que terminar, não ia ter outro jeito. Mas pensar é fácil, difícil é fazer. Eu não conseguia achar uma ocasião apropriada. Sempre que eu ia abordar o assunto, acontecia alguma coisa que me mostrava que o Paulinho, afinal, era um carinha legal, tranqüilo, sem muita neura. Além disso, ele estava começando a demorar mais para gozar, e até dava para gozar com ele. Às vezes eu lembrava do Caio e do Alessandro, e ficava com medo que os outros homens me desprezassem, e eu não conseguisse outro namorado. Aquilo me irritava, e eu gritava com o Paulinho, e o chamava de sonso, de preguiçoso, de mané. Ele abaixava a cabeça e começava a assobiar, e aquilo me fazia subir um ódio tão grande que eu quase vomitava. Mas depois comecei a ver que esse ódio podia se transformar em energia para arrumar o quarto. No início era só uma desculpa para mandar o Paulinho embora, mas depois fui descobrindo a delicadeza do ato de dobrar, de acomodar as coisas na gaveta, o prazer de varrer, de esticar o lençol. Descobri como era gostoso e gratificante ficar de quatro, e puxar a sujeita de baixo da cama. E tirar todas as teias de aranha, nos cantinhos mais imprevisíveis, me fazia sentir vitoriosa, feliz comigo mesma — era quase como ter um orgasmo.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Uma nova amizade começou a surgir entre mim e mamãe, e ela me apresentou à cozinha, com seus odores variados e ruídos metálicos. Fazer compras também era gostoso, apertar os legumes, sentir sua consistência, cheirar as frutas, perscrutar datas de validade. Fui descobrindo um mundo que não dependia do Paulinho, um mundo mais permanente e silencioso, que ele nem devia saber que existia. Passei a pensar menos nele, e vi que terminar não podia ser tão difícil. Eu era muito nova, provavelmente ainda teria uma porção de namorados antes de casar. Estava me acostumando a essa idéia quando resolvi trocar os móveis de lugar, só para tirar a poeira que acumulava em baixo, e me surpreendi com uma das folhas rabiscadas pelo Paulinho. Tentei ler a caligrafia canhestra dele, e descobri um poeminha todo bonitinho, falando de um cara que se sente à vontade no quarto desarrumado da namorada. Ainda lembro os versos finais, que diziam:</span></div><em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">E ela nem deve suspeitar</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Que seu mundo fora de lugar</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Já tem um canto reservado</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No sonho improvisado</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Que eu sonhei para nós dois</span></em><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Acho que fiquei vermelha, porque senti um calor forte no meu peito, que subia para o rosto e enchia meu olho de água. Me deu vontade de ligar para todas as minhas amigas e contar que o Paulinho tinha escrito um poema para mim, mas naquela tarde só consegui falar com a Flávia, a Vanessa, a Cláudia e a Samira. Elas disseram que seus namorados também escreviam para elas, e fiquei pensando: “Meu Deus, como elas são idiotas! Aposto que eles apenas copiam frases feitas de cartões de papelaria. Não são como o Paulinho, que escreveu uma coisa que tem tudo a ver comigo!”</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois pensei em fazer um blogue para mostrar para todo mundo o poema lindo que meu namorado tinha escrito. Liguei para o celular do Paulinho e falei: — Vai para casa agora, e me liga! — E quando ele me ligou, eu mandei:</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Sabe o que achei aqui em casa?</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— O quê?</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Olha só, vou ler os primeiros versos:</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">A ordem que eu procuro</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Não está dentro de uma gaveta.</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Não está fechada no escuro,</span></em><br />
<em><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Morta, impassível, obsoleta.</span></em><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Senti que ele ficou um pouco emocionado, porque fez um longo silêncio, e fiquei contente por tirar um silêncio daqueles do Paulinho. Eu ria por dentro, queria encontrar uma forma de dizer que o amava, mas não daquele jeito que eu tinha falado da outra vez. Só que não consegui encontrar uma frase melhor, e soltei: — Eu te amo, sabia? — E quando ele falou — Puxa, amor, eu também! — senti que eu já podia morrer, porque fiquei feliz feito uma passarinha! Depois eu perguntei se ele ia passar lá em casa, e ele falou — Olha, amor, pode ser amanhã? — mas eu nem liguei, porque eu queria mesmo fazer uma surpresa para ele.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No dia seguinte, acordei cedo, e comecei a desarrumar o quarto. Tirei as roupas do armário, joguei no chão e na cama. Depois fiz o mesmo com a cômoda. Deixei folhas e cadernos espalhados, para o caso de ele querer escrever, e ainda comi biscoito e fiz o farelo cair em cima do teclado do computador. Assim que ele chegou, eu o arrastei para o quarto, e acho que ele entendeu que aquilo era o meu poema para ele, aquilo era a minha declaração de amor, porque ele falou — Nossa! Que bagunça! — e me beijou de um jeito que nunca tinha beijado. Depois me jogou na cama, e enquanto tirava a minha roupa, eu fiquei pensando que era uma pena eu não poder colocar certas coisas no blogue.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Depois a gente ficou deitado de conchinha, e eu estranhei quando ele falou — Amor, lembra do Arsênio? — porque aquilo não era hora para pensar no Arsênio. Mas aí ele contou uma coisa que me deixou ainda mais surpresa. O Arsênio tinha uma banda, e os dois tinham feito uma música juntos. O Paulinho escreveu a letra e o outro pôs os acordes. Claro que eu fiquei encantada, e me deu vontade de falar outra vez que eu o amava, mas eu me segurei porque já tinha falado no dia anterior; não queria que o Paulinho ficasse se achando o cara. Depois, quando fui ao banheiro, fiquei pensando que eu era uma tonta. O Paulinho tinha essa veia artística, e eu nem tinha percebido, eu achava que ele era só um banana mesmo. Voltei para cama ainda mais entusiasmada, com vontade de ser todinha dele, de deixar ele fazer tudo que quisesse, até me amarrar e gozar na minha cara, mas ele já tinha colocado a roupa, e começou a me falar sobre o dia e o lugar onde a banda ia tocar. Eu achei legal, e pensei: “amanhã ele vai estar com mais vontade”. Mas quando ele foi embora, eu ainda estava sentindo uma energia vibrante, e me tranquei no quarto e me masturbei, pela primeira vez pensando no Paulinho. Imaginei que ele estava em cima do palco cantando e apontando para mim na hora que falasse “amor” ou “princesa”, depois fiquei especulando se eu devia contar para ele que eu às vezes me masturbava, depois não pensei em mais nada, porque fiquei exausta.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No dia do chou, o Paulinho não cantou, e a gente ficou só numa mesa vendo o Arsênio e a banda tocar. Fiquei me sentindo meio mal, porque eu já tinha jogado charme para cima do Arsênio, antes de saber que o Paulinho era um artista. Depois chegaram as minhas amigas e começaram a lhe dar os parabéns, e eu pensei: “Ah, Meu Deus, agora essas putinhas vão dar em cima dele!” Lembrei aquele dia que eu tinha levado o Paulo para uma boate e flertado com vários caras, e fiquei pensando que eu merecia mesmo que ele paquerasse outras meninas, talvez ele ia até me trair e eu ia ter que agüentar. Fiquei tão mal que nem entendi direito a música. Falava de amor de uma forma meio exagerada, e fiquei um pouco decepcionada, pensando que o Paulinho devia ser meio falso, porque me amar daquele jeito eu sei que ele não amava. Mas não liguei muito para isso. Se ele fizesse sucesso, para mim estava bom. No final da apresentação, o Arsênio chamou a gente para tirar foto com ele, e fiquei feliz como uma doida. Abracei os dois e tive até vontade de beijar os dois, mas claro que beijei só o Paulinho para não dar vexame. Depois o Paulo me levou em casa, e fiquei de novo me sentindo mal, pensando que eu era meio putinha, e ele era tão atencioso, tão gracinha comigo. Ele não merecia a namorada que tinha.</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Na semana seguinte a minha situação piorou, porque o Paulinho me mandou por email um linque para um conto dele que tinha saído num saite de literatura. Levei um susto, eu nem sabia que ele escrevia. Não perguntem se estava bom — aliás, acho que não estava, não se parecia com nenhum texto da Anne Rice — mas eu adorei assim mesmo, porque percebi que o assunto mais uma vez era eu. Era a estória de um cara que adorava a namorada, bagunceira e destrambelhada, e de como ela tinha transformado a vida dele. Na mesma hora coloquei um linque para o conto no meu blogue, depois mandei um email para todas as minhas amigas. No dia seguinte, quando encontrei com elas na faculdade, todas falaram: “ainda não li, não tive tempo”, e me subiu aquele ódio mortal que me deixa até sem ar. Cheguei em casa e li o conto mais umas dez vezes, depois mandei emails para mais uns vinte amigos, divulgando o saite. Alguém ia ter que ler aquilo, nem que fosse à força.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas quando o Paulinho chegou lá em casa, fiquei me sentindo estranha. Lembrei que eu tinha pensado várias vezes em terminar, e tinha até achado que não o amava. E no entanto ele parecia realmente gostar de mim: tinha escrito o poema, falava súper bem de mim no continho. Fiquei pensando se ele não merecia uma namorada melhor, que o amasse de verdade, que tivesse algum talento como ele. O Paulinho era calado e meio sonso, mas quando fazia alguma coisa, era algo que valia a pena ver. Eu era destrambelhada, e sonsa também, mas da minha bagunça não saía nada que merecesse atenção. Eu era só uma burra mesmo! E o Paulinho estranhou que eu estivesse meio distante, e perguntou o que eu tinha, mas eu não consegui responder. Apenas levantei e comecei a arrumar o quarto. Quando ele desceu, eu fechei a porta e deixei o choro aflorar. Era triste ver que eu não o merecia. Ele era inteligente, carinhoso, fiel, eu não tinha metade dessas qualidades. Depois lavei o rosto e voltei para a cama. Mas tive que trocar o lençol, porque ainda estava com o cheiro do Paulinho. Quando o levei para a área de serviço, minha mãe me viu, e fez um elogio, tipo “olha como ela está ficando organizada”, e, não sei por quê, me deu vontade de voltar para o quarto e chorar de novo. Mas, assim que entrei no quarto, decidi escrever uma lista de tudo que eu ia fazer no dia seguinte: passar roupas, arrumar o quarto, começar a economizar para comprar um cachorro. Fiquei pensando que nome colocar no cachorro, e isso me ajudou a dormir.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No dia seguinte, fui fazendo algumas coisas da lista, e antes de acabar já fiquei louca para escrever outra. De noite escrevi mais uma, na outra noite também, depois chegou o fim de semana e eu deixei prontas as listas de segunda e terça-feira. Na segunda comprei uma agenda, na terça passei tudo a limpo, desde a primeira lista, porque eu queria registrar tudo que eu tinha feito. Assim fui descobrindo que eu adorava programar o meu dia. Agora eu arrumava o quarto, não porque gostasse de dobrar as roupas e colocá-las no lugar, mas porque era um item a cumprir da minha lista. Resolvi escrever tudo que eu tinha que fazer, até o fim do mês, e de repente apareceu o item “Terminar com o Paulinho”. Ele foi lá em casa nesse dia, e eu tinha guardado a agenda no fundo de uma gaveta. Fiquei pensando como era engraçado que eu já tivesse até data para terminar, e ele não fazia idéia, não podia nem suspeitar. Quando chegou o dia 27 de março de 2009, eu liguei para o Paulinho e disse: “A gente precisa conversar”. Ele perguntou: “Pode ser amanhã?”, e eu falei: “Não, não pode.”</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Naquele mesmo dia a gente conversou, e eu achei que não ia sentir emoção nenhuma, porque já estava tudo programado. Mas ele ficou me olhando com aquela carinha de desorientado, e de repente eu chorei. Depois eu achei que precisava pedir desculpa, e falei:</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Desculpa, Paulo. Eu ainda não consigo ser totalmente organizada.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">— Mas por que é que você cismou com esse negócio de ser organizada? — Ele perguntou, quase gritando. E eu pensei na minha mãe, pensei no Caio e no Alessandro, pensei no poema do Paulinho, e chorei de novo. Depois voltei para o quarto, e pensei que assim que eu começasse a fazer uma lista ia me sentir melhor.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Mas eu só fui me sentir melhor no dia seguinte, porque contei o dinheiro que estava juntando e vi que já quase dava para um cachorro. Depois eu estava descendo a rua, e o Caio passou de carro. Ele me ofereceu uma carona, e falou que tinha visto no meu Orkut que eu tinha voltado a ser solteira. Na mesma hora eu lembrei que o Caio era um traste. Ele era galinha, já tinha ficado com todas as minhas amigas, fumava maconha, era burro, tinha tentado direito, mas só passara em publicidade. Para piorar, ele estava namorando a Cátia, uma conhecida minha. Percebi de repente que um cara daqueles jamais ia me fazer sentir culpada. Qualquer besteira que eu fizesse, ele poderia fazer pior. A Cátia ia me desculpar, mas eu precisava tentar. Assim que eu cheguei na faculdade pensei em abrir a agenda e escrever umas coisas que eu estava pensando. Mas depois concluí que era melhor guardar aquilo apenas na memória. Tem coisa que é melhor ninguém saber que foi planejada.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">No outro dia passei pelo mesmo lugar. No outro também, e persisti nessa tática até o Caio aparecer e me dar outra carona. Quando eu desci do carro, me inclinei diante da porta para me despedir, e percebi que ele meteu os olhos nos meus peitos. Era um traste mesmo, não havia como defendê-lo. Se, alguns dias depois, a gente acabou se beijando, não era porque eu gostava dele, mas só porque eu precisava mostrar para a Cátia que ela estava namorando um cretino. Depois que os dois terminaram, ele veio com um papo dengoso para cima de mim, e eu percebi que ele nem gostava de mim, nem sabia direito quem eu era, só queria alguém porque não agüentava ficar sozinho. Aí fiquei com ele sem culpa nenhuma, porque eu também já tinha visto que eu não gostava dele. E hoje eu sei que é melhor assim. Não quero passar por toda aquela humilhação que eu passei com o Paulinho. Se qualquer dia eu trair o Caio, não vou ficar me sentindo péssima. Aliás, eu nem penso muito sobre isso. Agora eu tenho minha agenda, e consigo fazer tudo que eu programo. No fim do ano vou comprar um cocker spaniel. E o poema do Paulinho, eu ainda não tive coragem de jogar fora. Às vezes eu releio aqueles versos, e me dá saudade de alguma coisa que eu não consigo compreender. Alguma coisa que parece que eu nunca mais vou ter, tipo a infância. Mas eu já tenho data para acabar com isso. Deixa chegar o dia trinta e um de maio, que esse maldito poeminha nunca mais vai existir! E eu vou continuar sendo organizada. Vou continuar fiel à minha agenda. Pelo menos nela eu sei que eu posso confiar.</span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-4422615911433067442010-03-03T10:57:00.007-03:002011-01-16T00:27:58.014-03:00Como me tornei o marido de Heloísa<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Eu amo Heloísa, e nisso definitivamente não sou original. Qualquer homem entre dezoito e cinqüenta anos pode amá-la sem dificuldade, pricipalmente se notar que ela não consegue levantar a voz — nem quando quer. Loira, alta, de olhos claros, sua beleza seria trivial, não fosse por um nariz exagerado e duas narinas pontiagudas que parecem vírgulas de cabeça para baixo. Aliás acho que foi esse nariz que a fez pensar, por um tempo, que poderia ser uma espécie de atriz cult. Embora formada em direito, ela acabou grudando nesse pessoal metido a artista, tão comum aqui no Rio, e que no fundo não passa de um bando de desempregados. Mas, quando eles apareceram com a idéia de um curta-metragem, ela ficou tão entusiasmada que acabei concordando em usar nossa poupança conjunta para bancar parte do filme. Dava gosto vê-la tão animada, e o roteiro, no fim das contas, não era dos piores. O protagonista descobre que sua mulher já havia trabalhado em filmes pornôs. Ele passa por alguns conflitos antes de perdoá-la, e chega a traí-la com a cunhada, numa vingança desesperada e inútil, tentando atenuar seu enorme sentimento de humilhação. Acho que gostei do filme porque ele me ajudou a compreender essa estranha adoração que eu sentia por Heloísa. Mesmo que ela me traísse, mesmo que me humilhasse marcantemente, eu me sentia impotente para deixá-la. As outras mulheres que passaram pela minha vida eram feias, ou de uma beleza banal, ou meio burras. Heloísa não era inteligente, mas tinha certo dom para fazer frases espirituosas que fascinavam a todos. </span></span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Além disso, era divertida e capaz de me surpreender; e eu, que sou um homem rotineiro e pacato, preciso de alguém assim para me animar um pouco.</span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">O curta-metragem acabou não dando muito certo, mas rendeu a Heloísa o convite para uma peça — que também teríamos de ajudar a produzir. Eu a incentivei bastante, pois naquela época cheguei mesmo a acreditar que ela queria ser atriz. Mas, assim que começou a ensaiar, ela não pôde deixar de perceber que o teatro exigia dedicação, autodomínio e alguma outra coisa misteriosa, que talvez seja o que chamam de talento. Isso a desanimou bastante, e ela acabou por providenciar, algumas semanas antes da estréia, uma sinusite, uma bronquite alérgica e não sei que outra "ite" que a salvaram de um vexame maior. Um dia cheguei em casa mais cedo e a surpreendi chorando no nosso quarto, encolhida na borda da cama, na posição fetal. Eu nunca entendi se ela chorava por ter perdido uma boa oportunidade ou por se dar conta que não tinha nascido para o palco. Mas fiquei feliz em estar lá para consolá-la. Sua carreira de atriz me causava certa aflição que eu já não estava conseguindo controlar. Quase chorei com ela, mas por dentro eu sentia alívio, e até certa alegria. Foi a primeira vez que pensei que, apesar de tanto tempo juntos, ainda sentíamos os acontecimentos de forma bem diferente.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Depois desse episódio, Heloísa foi ficando mais quieta, mais conformada com seu trabalho administrativo na Justiça Federal. Comecei a pensar que talvez fosse o momento de falar num filho. Mas esperei que a iniciativa viesse dela, porque, em todos os filmes que eu tinha visto, era a mulher que falava nessas coisas, e o homem até fingia contrariar, nem que fosse só para manter a pose. No entanto ela acabou não falando em filho, e, em vez disso, começou a escrever certos textos confusos que ela chamava de contos. Passou a frenqüentar um evento ainda mais confuso, chamado Clube da Leitura, e eu, com aquele receio incômodo de perdê-la, comecei a ir com ela. Nunca entendi direito como o evento funcionava — as regras eram bem complexas — mas os textos dela eram lidos em voz alta, e, quando tudo acabava, sempre aparecia alguém para dizer que tinha gostado deles. Mesmo sem compreender, eu ficava feliz, contagiado pela felicidade dela. Acho que passei a ser assim desde que a conheci: meu riso sempre vinha por tabela, provocado pelo riso dela, que por sua vez era provocado por coisas cada vez mais imprevisíveis. Quando ela não estava por perto, eu não sabia direito o que sentir, e falava a primeira banalidade que me viesse à cabeça. Talvez por isso eu tenha concordado tão prontamente quando falaram num livro de contos que seria rateado pelos membros do clube. Nossa poupança foi ficando cada vez menor, e o filho dos meus sonhos foi envelhecendo, aprendeu a falar, e já me chamava para jogar<i> playstation</i>, antes de passar pelo ventre da mãe.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">O livro teve um lançamento bacana, com um bifê de comida árabe, e muita gente pedindo autógrafo. Heloísa me fez uma dedicatória bonita, dizendo que não conseguiria escrever uma linha sem meu amor e minha compreensão. Fiquei tão feliz que não liguei a mínima para a falta de retorno financeiro. Durante algumas semanas me senti muito próximo dela, cheguei a ler alguns de seus textos, e até desejei ter mais dinheiro para bancar seus sonhos. Comecei a fantasiar que, se ela se tornasse escritora, seria uma mãe mais dedicada, talvez lesse poesia para os filhos, talvez lhes ensinasse francês, que ela sabia um pouco, mas não falava na minha frente por insegurança. Imaginei uma Heloisinha delicada, introspectiva, cercada de livros e diários, falando em francês com a <i>mère</i> os segredinhos que desejasse esconder do pai. Nessa época ela andava escrevendo uns contos de mulheres tresloucadas que queriam abandonar o emprego e o marido, e nem sequer sabiam por quê — nem sequer tinham amantes. Claro que eu não compreendia nada daquilo, e logo comecei a sugerir, sorrateiramente, que ela escrevesse sobre filhos. Talvez fosse interessante abordar o tema de uma mulher que a princípio tem certo receio da maternidade, mas aos poucos acaba sendo conquistada pela fragilidade e delicadeza de seu bebê.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Fiquei surpreso e feliz quando vi que minha sugestão fazia efeito. Ela começou a escrever sobre um homem que adorava a vida de solteiro, a independência, a liberdade, e ainda tinha vontade de conhecer Las Vegas. Esse pobre diabo descobre que tem um filho com uma mulher do seu passado, e o moleque já passa dos oito anos quando os dois se conhecem. Então vão surgindo uma série de situações engraçadas nas quais ele vai aprendendo a aceitar e a gostar do filho. Pode não ser uma idéia original, mas eu vibrei a cada página. Não entendo de literatura, e não saberia dizer se estava bem escrito, mas eu ficava pensando que Heloísa, afinal, começava a aceitar a idéia da maternidade. Acreditei que aquele menino atrevido e inteligente, com que eu tanto sonhava, estaria agora morando também nos sonhos dela. Daí até ele mudar para o nosso apartamento seria só um pulo.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Adorei a forma como o livro terminava. Os dois tinham uma discussão, e o menino demonstrava uma astúcia fora do comum. O homem acabava por dizer: "Você é mesmo bem parecido com seu pai, hem!", tentando salvar sua autoestima. "Então você conhece meu pai?", o menino perguntava. E só nesse momento o protagonista e o leitor percebiam que a mulher ainda não tinha contado a verdade para o filho. O sujeito descobre que tem a chance de sumir, de desaparecer da vida dos dois, e o menino ia se lembrar dele apenas como o amigo da mamãe que o ensinou a jogar damas. Mas, após alguma hesitação, o personagem responde: "Sim, eu conheço seu pai. Graças a você, eu o estou conhecendo cada vez melhor", e depois disso fica implícito que ele decidiu aceitar definitivamente o papel de pai.</span></span></div><div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Poucas vezes chorei com um livro, e durante muito tempo esse choro me fez acreditar que Heloísa era mesmo uma ótima escritora. Foi com enorme prazer que a ajudei na revisão, depois imprimimos várias cópias e começamos a mandar para as editoras. Ela parecia muito feliz, e pensei que seria apenas questão de semanas até ela me dizer que parou com os anticoncepcionais. Mas essa notícia acabou não vindo. Em vez disso, ela passou a perguntar sempre: "Você olhou a correspondência? Nada ainda?" Depois ela se fechava no quarto, ou ficava horas absorta, olhando para o nada, e mexendo nos cabelos. Eu sentia sua angústia por tabela, e me perguntava o que estaria faltando. Afinal, a estória era bem pensada, comovente. O que mais as editoras queriam? Essa aflição não demorou a passar. Logo começaram a chegar as respostas.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">"Concluída a avaliação do original em referência, informamos que sua publicação não foi indicada, ainda que apresente evidentes qualidades."</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">ou</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">"Apesar de apresentar qualidades literárias", etc, etc. "Os originais serão destruídos conforme as normas da editora", etc.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Todas as cartas diziam mais ou menos a mesma coisa. Heloísa as lia, depois as passava para mim, com um olhar resignado: "Não foi dessa vez, amor".</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Às vezes tentava ser mais leve: "Não tem jeito, não não dá para enganar profissionais". Mas eu sentia o quanto ela estava desapontada e intimamente revoltada. Notei que ela nunca falava a respeito, e procurei também evitar comentários. Imaginei que lhe seria mais fácil esquecer se não conversássemos sobre o assunto. De vez em quando ela dizia alguma coisa como "Esse pessoal só está publicando estórias sobre prostitutas", e eu dizia: "É verdade, é uma vergonha". Um dia ela brincou: "Se eu me tornasse garota de programa e fizesse um diário, aposto que eles publicariam!" Eu respondi "Por que você não inventa um diário? Os escritores costumam ter uma imaginação bem fértil". Mas ela desconversou, e senti que alguma coisa nesse argumento não lhe agradava. Ao mesmo tempo fiquei pensando: será que ela seria capaz disso? Seria capaz de fazer programa só para escrever um livro? Logo concluí que não. Minha mulher podia ser excêntrica, mas quebrar as regras não era seu forte.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Algum tempo depois ela já não falava sobre livros, e fiquei pensando que de repente a fase de escritora tinha sido como a de atriz: uma dessas aventuras de juventude que vivemos apenas para ter o que contar aos netos. A idéia de um filho voltou a me seduzir, principalmente quando vi que meus amigos já estavam com seus pequenos Tiagos e Daniéis. Passei a convidá-los incessantemente à nossa casa, e adorava quando eles perguntavam à Heloísa: "E vocês, quando vão encomendar um?" Mas eu notei que ela andava meio desanimada, calada, sisuda. Fiquei com medo de ela inventar uma nova moda; talvez agora quisesse aprendar a cavalgar, ou pilotar avião. Felizmente, nada disso se passou. Acho que Heloísa estava apenas envelhecendo.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Uma noite eu voltava de uma sinuca com amigos, e me surpreendi com uma cena realmente trágica. Heloísa tinha tirado seus vestidos do armário, e os estava picotando, reduzindo-os a tiras e retalhos, formando uma massa caótica de tecido pelo quarto. Fiquei pasmo. Eram vestidos caros, que imitavam cortes dos anos cinqüenta, com golas e botões enormes. Ela pagava metade do seu salário num vestido daqueles, por que agora estava se empenhando em destruí-los? Num primeiro momento suspeitei que estivesse pensando numa carreira de estilista. Mas notei que ela ria nervosamente, jovaga as tiras para o alto, chegou a atirar algumas pela janela, "Está gostando, amor? Está vendo como eu mudei?" Depois teve um brusco ataque de choro. Soluçava, sacudindo os ombros e a cabeça, chorando com o corpo inteiro. Percebi imediatamente que se tratava de um ataque nervoso. Abracei-a com carinho, procurei tranqüilizá-la. Encarnei rapidamente o papel de marido compreensivo que tanto me agradava.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— Não fique assim, linda. Eu te amo. Apenas me diga o que está acontecendo. Me deixe cuidar de você.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— São esses vestidos! — Ela gritou. — Nunca mais vou usar esses malditos vestidos!</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Obviamente não entendi, e deduzi que era caso para um psiquiatra, ou pelo menos um analista. Fiquei ali, abraçado nela, pensando em como eu era bom, amável, paciente. Talvez ela estivesse descobrindo que também não queria ser escritora. Queria apenas alguma profissão que justificasse o uso daqueles vestidos exóticos. Ou talvez começasse a perceber que era uma pessoa medíocre, sem nenhum talento fora do normal. Mesmo que fosse escritora ou atriz, teria uma carreira discreta, sem nada que destacasse seu nome. Seu nariz excêntrico não bastava para lhe dar uma personalidade autêntica.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Em contrapartida, eu descobria em mim algo realmente descomunal. Era essa capacidade para adorar Heloísa, para amá-la mesmo no fracasso, para servi-la sem compreendê-la. O que antes me parecia uma fraqueza agora eu via claramente como um talento raro e especial. Qualquer homem no meu lugar teria pensado imediatamente em divórcio. Mas eu estava disposto a cuidar de Heloísa, a pagar um tratamento, a perder os amigos, e encarar a reprovação da minha família se fosse preciso. Eu aceitava — e acho que até desejava — que ela fosse uma espécie de destino elevado e inevitável ao qual eu me entregaria com a bravura dos guerreiros e a convicção dos mártires.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Depois de algumas semanas ela começou com a análise. Os remédios eram apenas ansiolíticos fracos, e isso me surpreendeu menos que o fato de ela passar a usar terninhos de poliéster. Ainda mais estranha foi a notícia de que ia fazer uma plástica no nariz. Eu nunca gostei realmente daquele nariz, mas gostava de ser um homem capaz de aceitar uma mulher com nariz feio. Conversei com ela, falei que não precisava renunciar à sua originalidade para se encaixar em nenhum padrão de beleza. Eu a aceitava do jeito que era, eu a amava. Não previ que eu me decepcionaria tanto com sua resposta.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— Renunciar à minha originalidade? Que originalidade?</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">De fato ela parou com suas pequenas extravagâncias. Não falou mais em livros, não comprou vestidos estranhos. Quando chegava do trabalho, ligava a televisão, conversava sobre previdência privada, planos de saúde, drenagem linfática, férias em Cabo Frio. Alguma coisa me incomodava naquilo tudo, mas eu não sabia o que era. Às vezes ficava contente, planejava com ela um cruzeiro até Buenos Aires, uma viagem à Itália, ou alguma outra coisa que nossos amigos já tinham feito. Mas depois ia para o quarto, ficava olhando para o teto, me perguntando o que estava errado afinal. Por que eu me sentia tão vazio?</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Um dia arrisquei abordar o assunto. Estávamos num barzinho, a bebida me deu coragem para falar sobre algo real.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— O que está acontecendo, amor? Você não sente que está faltando alguma coisa?</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— Eu sei o que você quer dizer — ela falou num tom resignado, sem nenhuma emoção. — Se você quiser, eu paro com os anticoncepcionais.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Fiquei muito assutado, não com essa resposta, mas com a súbita percepção de aquilo parecia não me importar.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— Claro, amor. Por que não? Minha mãe sempre me cobra um neto.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">— A minha também...</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">E em poucos meses tínhamos a notícia para nossas mães. Elas pareceram realmente contentes, ao contrário de Heloísa, que continuava meio amuada, e agora estava até mais pálida — mas eu não arriscava comentar, porque talvez fosse algum efeito da plástica. Quando comecei a falar sobre nomes, ela disse que ainda era muito cedo. Eu sabia que era cedo, mas queria preencher aquele silêncio incômodo que tinha se instalado entre nós. Decidi não contar de imediato para meus amigos. A coisa estava ainda muito recente, e eu queria esperar pelo menos um ultrassom. Hoje me pergunto se essa decisão não foi fruto de algum pressentimento. Quando a levei ao hospital, naquela noite confusa, de alguma forma eu já sabia o que estava acontecendo. Quanto mais eu lhe dizia que era só um sangramento, uma coisa normal em qualquer gravidez, mais eu me preparava para a notícia fatídica. Estranhei que ela não parecesse triste, e isso até me incomodou. "Meu Deus, será que é isso que ela quer?", me perguntei, assutado. Mas evitei pensar no assunto. Sempre preferi enxergá-la com outros olhos.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Estávamos no quarto quando o médico chegou com a notícia. Vi que ela ficou com os olhos marejados, e ansiei que ficássemos a sós. O médico disse ainda algumas palavras de praxe, "Você é jovem, saudável, poderá tentar muitas outras vezes". Ela levou as mãos ao rosto, e eu assumi um ar grave, logrando esconder que não sabia como agir. Mas quando o homem saiu do quarto, tudo foi ficando mais claro e confortável. Abracei Heloísa, falei de como ela era importante para mim, mais importante que um filho, mais importante que qualquer outra coisa que eu pudesse encontrar na vida. E logo fui me sentindo mais à vontade, sabendo como agir e o que dizer. As palavras vinham quase espontaneamente à minha cabeça, e depois que as pronunciava, eu ficava satisfeito com a sonoridade, a elegância. Eu aprovava minha índole generosa, minha paixão constante e elevada. Acho que foi nesse dia que percebi com mais clareza que não era propriamente Heloísa que eu amava, era esse homem generoso e compreensivo que eu havia me tornado. Um marido compassivo, protetor, fiel. Quando chegamos em casa, levei-a para a cama no colo, e fiquei pensando: meu Deus, que homem eu construí! Que homem eu sou! Nessa noite percebi que a situação que sempre havia durado entre nós agora tinha se invertido. Eu não a amava mais em primeiro lugar. Amava primeiro a mim mesmo, depois a Heloísa, pelo homem que ela me permitia ser. A partir desse dia me senti preenchido por uma paz quase sobrenatural. Nunca mais temi que ela me traísse, nem que me deixasse. Essas coisas pareciam simplemente não me atingir. Também não a atormentei com a idéia de filhos. O posto de marido passou a me satisfazer completamente.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br />
</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Poucas semanas depois, ela voltou à idéia dos livros. Mas agora queria escrever uma estória infantil. Obviamente não contrariei, dei todo o apoio necessário. Cheguei a dizer que bancarei a edição do livro, se as editoras não se interessarem. Quem sabe ela não faça sucesso com um público menos exigente? Quanto a mim, estou feliz com minha descoberta. Agora vejo que meu amor é algo muito maior que eu tinha pensado — é como uma matriz que justifica e define minha vida. A decisão de ficar com ela de certa forma me deixa imune às adversidades, imune até à própria Heloísa. Não temo mais o que ela possa fazer. Tenho a satisfação de ser algo que ela ainda não conseguiu alcançar, algo que eu mesmo construí. Um dia talvez ela se dê conta disso, e quem sabe resolva escrever um livro sobre mim. Por hora me contento em ser meu próprio personagem.</span></span></div><div><br />
</div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-67115449433688506192010-01-13T10:47:00.003-03:002010-10-24T15:03:45.590-03:00Estranha São Paulo<div align="justify"></div><div align="justify"><span style="font-family: georgia; font-size: small;">Sinceramente, eu gosto de São Paulo. Muitos reclamam da chuva, mas há ótimos restaurantes, as pessoas são educadas, as garotas de programa são carinhosas e bem humoradas, apesar do sotaque caipira. Porém confesso que não lembro o que vim fazer aqui. Eu queria estar na Cidade do México, para fugir do calor torturante do Rio. E de repente acordo neste apartamento em São Paulo, descalço, todo amarrotado, embrulhado numa roupa de ontem. Da janela vejo prédios pequenos e carros velhos, certamente não estou nos Jardins, nem no Sumaré. Noto que os outros que dormiram na sala também começam a acordar. Aguardo alguns segundos, e pergunto:<br />
— Quem me trouxe para cá? </span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">Eles se olham intrigados, as duas garotas riem. São morenas de olhos pequenos, mas estranhamente corpulentas para descendentes de japoneses. Faço outras perguntas que só causam mais risadas. Então surge do corredor uma figura conhecida. É o Maurício, já está calçado, certamente acordou há mais tempo.<br />
— Não fale em português, eles não entendem com facilidade.</span></div><div align="justify"><span style="font-size: 85%;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family: georgia; font-size: small;">O que será que ele quer dizer?, me pergunto um segundo antes de começar a entender. Volto para a janela e vejo uma placa no prédio em frente: "Ferreteria Reina - Accessorios para muebles". Começo a recordar algumas cenas, o pequeno restaurante em Santa Fe, depois a cervejaria na Plaza de Toros. Uma canção em espanhol me vêm à cabeça, mas provavelmente não a ouvi no bar, onde só se tocava música americana. Deve ter sido no avião. Maurício me dá um café, e o sabor me confirma a localização geográfica. Mas eu preferia estar no hotel, assim poderia tomar um banho e me recompor mais à vontade. Fico olhando para as duas morenas, estão abotoando as calças e as sandálias. São bonitas, apesar das sobrancelhas grossas. Conversam sobre alguma coisa engraçada, que não chego a compreender. Eu falo espanhol, mas não o entendo bem, principalmente quando pronunciado assim, entre risos e onomatopéias. Noto que uma delas é mais agitada e falante. A outra é introspectiva e serena. Penso que seria bom se essa fosse a minha.<br />
— Qué harás esta noche? — Pergunto depois de alguns rodeios.</span></div><div align="justify"><span style="font-family: georgia; font-size: small;">— Encontraré a mi marido, ya lo sabes. — Ela responde quase sem me olhar, e percebo que é uma cretina. Me dá vontade de sair daquele lugar. O cara que acordou com elas está num canto lendo jornal. Talvez seja o marido da metida, e tenha dormido na sala só para garantir que não rolasse nada. No táxi penso em perguntar ao Maurício quem eram aquelas pessoas, mas ele zombaria de mim, e espalharia a história para metade do Rio de Janeiro. Procuro falar de outra coisa:<br />
— Eu queria comprar aquele rum venezuelano que tomei na sua casa.<br />
— Vai ser difícil encontrar. A Venezuela está meio brigada com a Colômbia.<br />
— Ah, odeio política.<br />
— Por falar nisso, comprei ingressos para uma luta de boxe.<br />
— Boxe? Mas eu queria ver uma tourada.<br />
— Não tem tourada de noite.<br />
— Mas não está amanhecendo?<br />
— Você está ruim mesmo, hem. Está anoitecendo. Você deve estar confundindo por causa do fuso-horário.</span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">Vejo que isso torna ainda mais difícil entender como fui parar naquele apartamento. Aceito humildemente o boxe, e deixo de pensar no assunto. Aposto no americano só para ser do contra. Na platéia, deduzo que o negro seja o americano, e começo a torcer por ele. Chega uma hora em que ele dá uma porrada tão bem dada no queixo do branco, que este fica com os braços caídos e os olhos arregalados, como se estivesse tentando lembrar o que foi fazer ali. Quando ele finalmente cai, vibro e digo que sabia que a noite era do negão. Maurício me olha intrigado:<br />
— Então por que você apostou no branco?</span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">Depois me bate aquela fome e lembro que a última vez que almocei foi em outro meridiano. Maurício está cansado e diz que vai para o hotel. Mas, quando entro no táxi, fico me perguntando quando foi minha última trepada. Se foi há mais de dois dias, já posso procurar uma bela garota de programa. Explico a situação ao taxista, que parece compreender, e me leva a um bar cheio de morenas com cabelo amarelo. Mas escolho uma beleza local, com cabelos negros e pequenos olhos de índia. Ela me lembra Catalina, minha agente em Bogotá. Se meus livros venderem bem na Colômbia, pretendo comprar uma jóia cara e levar Catalina para jantar. Meus amigos dizem que sou muito antiquado com as mulheres. Eles são pobres, não fazem idéia de como essa tática funciona.</span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">A garota compete comigo pelas <em>arepas</em>. Depois me explica por que devemos ir a um hotel mais afastado, distante da agitação do centro. Não estou seguro de ter entendido, mas posso ir a qualquer lugar que aceite cartão de crédito. No quarto noto que ela tem seios meio ovalados, tipo os da ex-mulher do Gustavo. Então recordo que transei há pouco tempo com essa mulher, pode ter sido há menos de dois dias. Mas percebo, aliviado, que isso não prejudicará minha performance. O corpo jovem da garota já acionou minha virilidade. Enquanto abro a camisinha, ela mantém minha ereção com os lábios e as mãos. É uma mulher compreensiva, deve ter mais que os vinte anos que aparenta. Quando começa a me cavalgar, fico pensando em Catalina, se ainda está casada, se é católica, se isso fará muita diferença. Depois trocamos de posição e reparo mais na garota. Ela geme delicadamente, tem uma doçura jovial que a profissão ainda não estragou. Fecho os olhos e me entrego ao prazer seguro das batidas. Depois saio de cima dela e me enrosco nos cobertores. Volto a pensar em Catalina, e recordo uma coisa que ela me disse quando nos conhecemos. "Detesto llegar al fin de tus libros. Me gustaria leerlos para siempre." Sei que é mentira, as mulheres odeiam meus livros. Mas eu saco um pequeno estojo aveludado e digo que é só uma lembrança, que quero que ela pense mais em mim que em meus personagens. Ela o abre avidamente, e seus olhos brilham como os pequenos diamantes incrustrados na platina. Seguro firme uma de suas mãos. "He esperado tanto para decírtelo, e ahora no me salem las palabras." Assim vou passando da imaginação ao sonho. Catalina me acaricia, suas mãos são leves e frescas como uma brisa marinha. Mas logo se tornam quentes e ásperas, e um buzinaço vindo da rua me faz abrir os olhos e dar de cara com o sol. A garota não está no quarto, pego minhas roupas e as apalpo em busca do passaporte. Felizmente, tudo em ordem. Pela janela, vejo que o hotel fica ao lado de um cemitério. Me divirto pensando que, se eu escrevesse isso, todos tentariam — e conseguiriam — enxergar alguma bobagem simbólica neste trecho.</span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">A água do chuveiro demora um pouco a se aquecer, mas saio do banho renovado, lamentando apenas ter de vestir uma camisa que já começa a feder. Penso em ligar para o Maurício, deve haver ao menos uma tourada marcada para hoje. Encontro, amassado no bolso de trás da calça, o cartão de um hotel em Rosales. Quando lhe passam a ligação, ele me parece ligeiramente desesperado:<br />
— Onde você está?<br />
— Estou num hotelzinho em Las Mártires, em frente ao cemitério.<br />
— Que diabo você está fazendo aí? Por que não veio para o hotel que reservamos?<br />
Agora lembro vagamente de uma conversa sobre um hotel com vista para um braço dos Andes.<br />
— Bem... encontrei uma garota...<br />
— Tudo bem! Me dá o endereço, passo aí para te pegar.<br />
— Você sabe de alguma tourada?<br />
— Depois a gente fala sobre tourada. Sua palestra começa em quinze minutos.</span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">Que diabo será isso de Palestra? Só pode ser idéia da Catalina. Essa gente formada em Letras realmente acredita em palestras. Mas talvez haja tempo para o café. Fico um pouco decepcionado quando me servem os mesmos bolinhos que comi no jantar de ontem. Peço ovos mexidos, e ouço, do saguão, um espanhol arrastado, cheio de vogais abertas. É o Maurício que já me descobriu. Está com uma cara afetada, como se realmente se importasse com um atraso de cinco minutos. No táxi, tento pensar em algo para dizer. Não quero contar pela milésima vez que meus pais queriam que eu fosse advogado, e que depois, quando ganhei o Jaburu, mudaram de idéia e me deram um apartamento na zona sul. De repente chegamos a uma sala escura e sem mobília, com um pé direito monumental. Deduzo ser a coxia de um anfiteatro. Entre ecos, reconheço a voz de Catalina. Parece estar dizendo que meu último livro vendeu cem mil exemplares na Colômbia. Será que ouvi direito?! Quando verei esse dinheiro? Um sujeito de terno claro me indica um corredor. Chego ao palco e sento à mesa que deve ser para mim, pois é a única vazia. As palmas me ensurdecem por alguns segundos, mas logo cessam, ao contrário de uma luz ofuscante que jogam na minha cara. Sinto que é hora de dizer alguma coisa, quero fazer um gracejo qualquer, mas nada me vem à cabeça. A luz decai lentamente e começo a ver os olhinhos pequenos que me fitam ansiosos; parecem realmente esperar que eu diga alguma coisa.<br />
— Minha mãe queria que eu fosse advogado — começo, sem muita convicção.<br />
— Quando encaro uma platéia desse tamanho, fico me perguntando por que a contrariei.</span></div><div align="justify"><br />
<span style="font-family: georgia; font-size: small;">Todos riem, e rio com eles. Ainda não sei o que dizer, mas estou relaxado, talvez até feliz. De repente, como um relâmpago, lembro perfeitamente o que aconteceu quando cheguei a Bogotá. Tudo começou numa livraria, onde uma jovem me perguntou se eu era aquele escritor brasileiro que tinha dado uma entrevista ao <em>Espectador</em>. Sim, eu sou aquele escritor brasileiro. Nunca conseguir ser outra coisa, e agora tenho cem mil testemunhas. Olho para Catalina, ela está aflita, certamente já percebeu que não preparei nada para dizer. Começo a ter uma idéia mais definida da jóia que vou lhe dar. Cem mil exemplares! Será que dá para uma casa em Cartagena? Não, melhor levar Catalina para o Rio. Lá ela não conhece ninguém, dependerá totalmente de mim. Será apenas preciso fazê-la desistir do marido, mas agora isso me parece mais fácil que nunca.</span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-2711461092348079492009-12-20T16:33:00.005-03:002010-12-10T14:16:22.671-03:00Onde estão minhas fadas?<div align="justify"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"></span><br />
<div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> </span><br />
<div align="JUSTIFY" class="western" style="line-height: 120%; margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">A vida é amarga, mas não é amarga como um bom café. Ela é chata, pequena, mesquinha. Depois dos dezesseis anos todo sonho já vem com o carimbo de Sonho Impossível. Mas eu sou teimosa: eu sonhei assim mesmo. Eu quis enxergar um charme especial naquele cabelo grisalho, não apenas o sinal de que ele mentia a idade. Acreditei que a ex-mulher de Petrópolis era uma megera que só se preocupava com academia e botox. Depois ainda vislumbrei um amor paternal na forma como ele falava da <i>cocker spaniel.</i> Sonhei que aquele carinho e aquela dedicação um dia seriam para mim. No hotel em Cabo Frio, eu chupei como uma profissional, eu abri as pernas em cima da mesa, depois ainda fiquei me perguntando se eu tinha sido perfeita. Ah, como eu queria acreditar que eu tinha sido perfeita! Quando as flores começaram a chegar, eu pensei: “Até que não foi tão difícil. A proposta e o anel vêm depois”. Ainda havia nos meus olhos cansados, um resquício de comédia romântica que me fazia pensar em anel, em dança de salão, em palavras de filmes antigos. Naquela manhã constrangedora, ele disse que seu único vício era o café, e eu quis acreditar também nessa bobagem. Os filmes não me ensinaram dos outros vícios, da capacidade para mentir, do desprezo inabalável que um homem pode sentir, mesmo depois de dois anos na mesma cama. Isso eu tive de aprender aos tropeços, entre um riso fingido e uma manhã de ressaca, um orgasmo fingido e um telefone mudo. Mas eu sou teimosa: eu vou sonhar assim mesmo! Vou acreditar que ele temia me perder para alguém mais jovem, que ele gaguejava quando falava minha idade para os amigos — talvez escondesse os famosos comprimidos azuis no bolso interno do paletó. Semana que vem já vou olhar aquelas fotos com outros olhos. Vou me deixar convencer pelo meu próprio riso falso, e jurar para qualquer amiga que eu fui feliz. E esse choro irritante de hoje, esse silêncio, que não me deixa perguntar onde errei, vai ser só mais uma lembrança indigesta, como o sêmen que engoli em Cabo Frio. Quando outro homem falar em <i>cocker spaniel</i>, quando eu vir outra gravata de seda e outro anular sem aliança, os meus olhos vão estar prontos para mais poesia, e a minha boca, para mais de sêmen. Porque eu sou teimosa, eu vou sonhar com tanta força que a realidade vai acabar se parecendo com minha fantasia, nem que seja por piedade.</span></div><div align="JUSTIFY" class="western" style="margin-bottom: 0cm;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></div></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5175613312726469304.post-67300748455049756432009-10-31T17:36:00.001-03:002010-10-26T17:02:34.882-03:00A notícia do século<div style="text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: 13px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Meu último artigo havia suscitado uma péssima repercussão. Acho que os leitores não estavam preparados para o impacto do avanço biotecnológico sobre a vida moral. Muitos enviaram críticas ferozes à revista, dizendo que eu tinha deturbado o conceito de "direito natural" e, principalmente, o caráter sagrado da maternidade. Mas nada daquilo me surpreendia. As pessoas são assim mesmo: aponte a mínima possibilidade de mudança nos seus hábitos, e elas o acusam de ser uma espécie de demônio. Não toleram mudanças, não suportam o fato de que a vida como é agora é só uma das muitas vidas possíveis. Se tomarmos outros caminhos, o mundo que surge diante de nós pode ser tão belo e desejável quanto o anterior, o sofrimento está apenas na nossa resistência.</span></span></div><div><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana; font-size: 13px;"></span><br />
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana; font-size: 13px;"><div style="margin-bottom: 0px; margin-top: 0px;"><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Mas eu havia estudado o assunto por mais de 10 anos, e minha opinião não era mero palpite. O custo das técnicas Cold Milltered já havia baixado bastante, facilitando a abertura de clínicas no terceiro mundo. Além disso, nos países pobres, era mais fácil encontrar mulheres dispostas a alugarem seus ventres para a geração de filhos alheios. Quando a prática se tornasse mais comum, haveria um efeito reverso, e ela se popularizaria também nos países ricos. O ato que atende as expectativas dos interessados sempre se alastra com rapidez e facilidade. Logo a prática da barriga de aluguel seria comum no mundo todo. As jovens alugariam seus ventres para pagarem a faculdade. As mulheres mais ricas gerariam seus filhos pelos ventres das mais pobres, e não apenas por motivos de saúde, mas também por razões estéticas. Quando o processo se tornasse mais fácil e mais comum, muitas mães optariam pela barriga de aluguel apenas para poupar as transformações do corpo e a dor do parto. Quem realmente estudasse o assunto veria que era apenas uma questão de tempo. Só retrógrados e ignorantes se opunham às minhas opiniões. Eu não estava dando a mínima para a enxurrada de críticas, pois sabia que ela não vinha de gente balizada.</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Quando o doutor Chertrol me telefonou, encarei a situação com naturalidade. Eu era o jornalista que mais entendia desse assunto. Era normal que ele me chamasse para registrar e divulgar as mais novas técnicas da área. Não fiquei envaidecido, não me senti privilegiado. Eu havia dedicado grande parte da vida a compreender e divulgar as técnicas de fertilização artificial. Ele provavelmente queria anunciar uma técnica nova, algo que possibilitasse uma geração de aluguel mais barata e eficiente, e me escolhia para portador da notícia. Era um corolário dos meus anos de esforço. Compareci a sua clínica tranqüilo e preparado para o trabalho. Não tinha idéia de que sairia de lá tão chocado, tão estupefato, e ao mesmo tempo feliz.</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Doutor Chertrol vinha se destacando na área de reprodução humana. Mulheres do mundo todo vinham contratá-lo para administrar suas complexas gestações transuterinas. É claro que elas vinham também pela facilidade de se encontrar uma barriga de aluguel no Brasil, mas tenho certeza que a competência e o renome do médico também pesavam na sua decisão. Ele tinha fama de ser um homem frio, um pouco rude, com um jeitão meio caipira. Diziam que havia estudado primeiro veterinária, porque não gostava muito de tratar gente — ouvir lamentações, lidar com neuroses — mas, quando vira o que poderia fazer na área de reprodução humana, regressara à faculdade e conseguira um diploma de medicina. E, de fato, o setor só melhorou com sua decisão. Desde que ele assumira a clínica Nova Gênesis, as notícias de aperfeiçoamento e barateamento operacional eram constantes. Eu estava ansioso por conversar um pouco com ele, conhecer sua personalidade, tentar entender suas motivações. Enquanto estava no táxi, cheguei a pensar numa possível biografia. Cairia muito bem na minha carreira de jornalista científico. Mas era uma idéia ainda muito fresca, e tocar nesse assunto talvez seria precipitar-me. De qualquer forma, eu ficaria atento às oportunidades. Estava tão entretido com esses pensamentos que não me aborreci por esperar quase duas horas antes que ele me recebesse com seu entusiasmo e bom humor.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Não há desculpa para meu atraso. Não vou nem pedir, sei que não há...</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Ora, não se preocupe, doutor. Sei como é seu trabalho. Não há como prever quanto tempo certas coisas vão durar...</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Sem dúvida! Você não faz idéia de como tem razão. Podemos prever muitas coisas, mas não quanto tempo vão durar, às vezes não sabemos nem quando poderão começar.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Senti que ele não estava falando apenas sobre horários e atrasos.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Prever nem sempre é fácil...</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Sim, sim! Prever não é fácil. E por falar em previsão, li seu artigo. Quer dizer, nós lemos! Todos aqui na clínica o leram, e comentamos muito.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Eu estava lisonjeado. A essência do meu trabalho é popularizar a ciência, mas confesso que nada me agrada mais que merecer o reconhecimento dos especialistas.</span></div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Fico muito contente com isso, doutor. O que o senhor achou das previsões? Será que tenho chance de acertar? — Eu não esperava entrar nesse assunto tão cedo, mas o bom humor e o elogio do doutor Chertrol me deixaram confiante.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Falaremos sobre isso, meu caro. Falaremos ainda sobre essas coisas. Por hora digo apenas que você é brilhante. Vejo como você acompanha com atenção o assunto da reprodução humana. Sua intuição lhe faz um enorme bem, pois de fato acho que esse tema vai render as mais importantes inovações científicas do século XXI.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Óbvio que fiquei bastante lisonjeado. Queria muito ter gravado o que ele havia dito, e me arrependi de não ter ligado um gravador escondido. Meus escrúpulos muitas vezes me fazem perder um pouco da glória que mereço.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— De fato, sempre achei que esse assunto tem potencial para uma verdadeira revolução na forma como concebemos a sociedade e a família. — Preferi não dizer que eu me interessara pelo assunto simplesmente porque tenho uma irmã de proveta.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Sim, você está certo. Não gosto dessa palavra, “revolução”, mas você tem razão. As novas técnicas de reprodução poderão mudar a forma como pensamos o homem e a família. Falaremos mais sobre isso, oh, sim, falaremos...</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Ele estava um tanto enigmático. Confesso que eu já estava me cansando daquela história de "falaremos mais..." mas minha ansiedade estava prestes a terminar. Ele me encaminhou para um enorme salão cheio de aparelhos e pessoas trabalhando. Trajavam aqueles jalequinhos brancos, provavelmente eram veterinários ou enfermeiros. No centro havia uma espécie de jardim interno, cercado por barras de ferro, iluminado por uma grande cúpula de vidro. Quando me aproximei, tive a primeira surpresa de nossa entrevista. Vi uma cabra, deitada num gramado artificial, ligada a uma série de aparelhos por fiozinhos de capa transparente. Tive um momento de grande decepção, pois percebi que o motivo da visita não era a reprodução humana, como eu havia imaginado. Doutor Chertrol provavelmente voltara à veterinária e queria divulgar alguma nova descoberta, talvez ligada a clones. O assunto não me interessava muito, mas resolvi não reclamar. Se a coisa fosse realmente nova, pelo menos eu teria um furo, e isso faria bem à minha imagem recém abalada na revista.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Alguns enfermeiros ou veterinários, passavam um emplastro transparente na barriga da cabra. Ela estava estranhamente desanimada, provavelmente dopada. Pelo tamanho de suas tetas e barriga, supus que estava prenha.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">O doutor Chertrol não se deu ao trabalho de me explicar inteiramente a situação.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Vamos fazer uma ultrassonografia. Logo teremos uma imagem.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Alguma técnica de clonagem? — Perguntei, um pouco ansioso.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Logo teremos a imagem! — Ele respondeu, sem tirar os olhos do vídeo.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Senti que a imagem era algo definitivo, mais importante que uma explicação. Pus meus olhos no pequeno monitor preto e fiquei atento aos vultos que se formavam. Não consegui enxergar nada demais. Minha mente esperava encontrar alguns cabritinhos nebulosos, algo como as formas que vemos nas nuvens quando somos crianças. Mas eu não via nada parecido com isso, as manchas brilhantes do ultrassom não estavam fazendo muito sentido para mim.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Você vê o coração? Está vendo o coraçãozinho do bebê? — Doutor Chertrol me apontou entusiasmado uma pequena bolinha pulsante. De fato reconheci algo parecido com um coração, pelo menos dava para ver que batia.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Aqui está a cabeça... Sim, a pequena cabecinha do bebê, não é lindo?!?</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Não consegui ver a cabeça, talvez por que não fazia idéia de como devia ser a cabeça de um feto de cabra; se tinha chifres, se já era alongada, com um princípio de focinho, etc. Mas fiquei impressionado com a forma carinhosa com que ele se referia ao pequeno animal. Não dizia cabrito ou feto, mas bebê. Pensei em anotar isso para a reportagem, o Doutor Chertrol era de fato um homem emocionalmente envolvido com seu trabalho.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Desculpe a pergunta, doutor, mas os fetos de cabra já têm chifres? Não estou reconhecendo a cabeça.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Uma risada alta e contagiante encheu o salão. Todos começaram a rir com ele.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Chifres?! Você está procurando chifres, ha, ha, ha!</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Fiquei imaginando o quanto minha pergunta era ridícula. Assim como nascemos sem dentes, as cabras deviam nascer sem chifres. Era óbvio, como pude ser tão idiota!</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Perdoe minha ignorância, doutor Chertrol. Minha especialidade é reprodução humana, não tenho acompanhado nada sobre veterinária.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— O que é isso, amigo! Não se desculpe. Eu é que devo me desculpar. Acho que confiei demais naquela história de que uma imagem vale mais que mil palavras.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— De fato, doutor, olhar para esse ultrassom é como olhar para uma nuvem. Você não enxerga nada, se não souber o que está procurando.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Oh, meu rapaz, quanta sabedoria! Você não sabe o que está dizendo, suas palavras são mais precisas que imagina... Além disso, tem toda razão, não adianta ficar aqui olhando para esse ultrassom. Vamos voltar para a minha sala. Pessoal, mantenham a diploptamina. Vou voltar logo.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Fiquei envergonhado. Certamente ele esperava que eu tivesse entendido algo só de olhar para o ultrassom. Talvez algo filosófico, sublime, que não tivesse nada a ver com uma simples cabra prenha. Fiquei me questionando enquanto o acompanhava cabisbaixo, evitando os olhares de decepção dos veterinários, que certamente também esperavam algo de mim.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Assim que entramos ele me serviu uma pequena dose de cachaça. Fiquei encantado com sua autenticidade. Um médico medíocre certamente teria uísque importado em sua sala. Agradeci e bebi com prazer o primeiro gole.</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Sabe, Lucas, eu sempre achei um pouco difícil lidar com gente. As pessoas são emotivas demais, não conseguem agir racionalmente...</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Eu não tinha idéia de onde ele queria chegar.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Veja esse caso das mães de aluguel, por exemplo. As mulheres aceitam as condições, assinam um contrato, depois voltam atrás começam a nos encher de processos.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Muitas não fazem isso por uma emoção verdadeira. São mal intencionadas, querem explorar o casal que as contrata.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Exato, meu rapaz! Você é a pessoa certa para conversar, você entende minhas dificuldades. Não é fácil trabalhar neste ramo, ainda mais com o atraso da legislação, que insiste em não legalizar a coisa. Os contratos ficam à mercê da confiança mútua, e, você sabe, confiança é algo raro hoje em dia...</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Sei, sei, claro que sei. — Eu conhecia bem o assunto, sabia que algumas mães de aluguel tentavam extorquir o casal contratante ou a clínica, ameaçando processos e ações judiciais diversas para ficar com o bebê.</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Pois é isto, meu caro. Não é fácil lidar com gente. — Enquanto falava, ele ia bebericando sua cachaça. — Então fiquei pensando se não seria possível criar uma espécie de gestação artificial. Um feto crescendo e se desenvolvendo fora da mãe, mas que não fosse numa outra mulher, que não dependesse de outro ser humano, entende? Uma gestação que dependesse exclusivamente de nós, profissionais. Pessoas que não iriam interferir no processo, pessoas que não iam mudar de idéia no meio do caminho...</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Um dia aconteceu uma coincidência, um evento que me ajudou a ter essa idéia. Fui passar as férias na fazenda de um amigo, em Mato Grosso do Sul. Ele tinha uma criação de caprinos, e uma cabra resolveu entrar em trabalho de parto no meio da noite. O veterinário mais próximo estava a uns duzentos quilômetros de distância, e meu amigo me pediu para supervisionar o parto. Ah, foi uma experiência ótima! Não só relembrei minha juventude, minha perambulação de fazenda em fazenda, o cheiro de mato, de esterco, os rugidos dos bichos... mas revivi mais uma vez a magia da vida. Não precisamos fazer muito para que a vida se reproduza, basta lhe dar boas condições e ela faz o resto. Isso não é maravilhoso, rapaz? A vida faz mais vida, precisamos apenas dar uma mãozinha!... — Eu ainda não sabia onde ele queria chegar, mas seu entusiasmo era algo bonito de se ver.</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Ah, meu amigo, essa é a beleza da minha profissão: ver a vida se reproduzir... — o álcool fazia seu efeito. Ele estava sorridente: — Mas, voltando às cabras, voltando àquela noite imprevista, na fazenda do meu amigo, eu fiquei encantado ao ver aqueles bichinhos escapando do ventre da mãe, escapando para o mundo, para a vida! Depois, enquanto ajudava a limpar a pobre fêmea, que estava exausta, reparei numa coisa interessante. O feto humano é relativamente pequeno. Ele caberia com facilidade em outro animal. Numa vaca, Numa porca, talvez até numa cabra... Então, meu amigo... então... acho que você está me acompanhando... Uma cabra não pode processar uma clínica, pode? Você percebe, percebe a grandeza da idéia que estava me ocorrendo naquele momento? O resto, meu amigo, são detalhes técnicos... Proteínas, hormônios, anti-soros... enfim, essas coisinhas sobre as quais debrucei minha juventude.</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Eu estava atônito. Sabia exatamente o que ele queria dizer, mas não acreditava. É difícil explicar tudo que passou pela minha cabeça naquele momento. Fiquei zonzo, cheguei a pensar que eu estava passando mal. Doutor Chertrol não pôde deixar de notar:</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">— Você está bem, meu rapaz?</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="justify" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Mas logo me recuperei: — Estou bem, doutor. Vamos voltar ao salão. Acho que estou preparado para a imagem que vale mais que mil palavras.</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px; text-align: justify;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;">Enquanto eu caminhava, ainda estava dominado pela dúvida. De alguma forma eu sabia que aquilo estava acontecendo, um profissional como o doutor Chertrol não iria me falar tudo aquilo em vão. Mas ao mesmo tempo eu parecia estar vivendo um sonho. Algo naquela história era fantástico demais para eu aceitar como realidade. Mesmo assim parei diante do vídeo e esperei. Agora eu sabia o que deveria enxergar, e a imagem logo faria sentido em minha cabeça. De fato, os pontinhos brilhantes foram formando um contorno nítido. Vi os bracinhos retorcidos para dentro, o dorso, a cabeça. Julguei ver até uma pequena orelha. A cabra estava deitada no gramado artificial, indiferente a toda emoção que me perpassava. Ainda em certo estado de choque, olhei para o doutor Chertrol. Ele sorria, parecia ter previsto todo o espanto que me ocorreria com aquela visão. Eu também sorri, na verdade comecei a gargalhar, quase sem controle. De repente percebi que tudo que eu havia previsto estava errado. A barriga de aluguel não se popularizaria, não se tornaria uma prática comum, não geraria renda para estudantes e mulheres mais pobres. Eu era um péssimo profeta. E no entanto estava completamente feliz, pois eu era o portador da notícia científica mais importante do século. Não sabia como agradecer ao doutor Chertrol, e de fato não havia como agradecê-lo. Há homens que simplesmente nasceram para alargar o horizonte do possível. É graças a eles que chegamos até aqui. É graças a eles que cada geração pode fazer muito mais que a anterior. Eu era apenas um jornalista. Tudo que eu podia fazer era contar. Minha tarefa era simplesmente colocar em palavras aquela imagem valiosa que eu havia testemunhado, e que valia infinitamente mais do que elas. Ali mesmo, ainda atordoado pela surpresa, pensei num título para a reportagem: “Barriga de aluguel está com os dias contados”. O resto são apenas detalhes da profissão.</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><br />
</span></div><div align="left" class="western" style="margin-bottom: 0px; margin-left: 0px; margin-right: 0px; margin-top: 0px;"><span class="Apple-style-span" style="font-family: Tahoma;"><b><span class="Apple-style-span" style="font-family: georgia;"><span class="Apple-style-span" style="font-weight: normal;"><br />
</span></span></b></span></div></div></span></div>Ronaldo Brito Roquehttp://www.blogger.com/profile/06190960099699856433noreply@blogger.com2