terça-feira, 21 de junho de 2011

Hoje ela não pensou em sexo


No metrô, quando ia para o estúdio, ela notou que um sujeito não parava de encará-la, e ficou morrendo de medo de estar sendo reconhecida. Pensou novamente em passar a andar de peruca e óculos escuros. O problema é que odiava peruca desde que soubera que em São Paulo havia assalto de cabelo. Perambular por aí coberta por cabelos roubados certamente daria azar, e azar era tudo que ela não queria agora que estava quase conseguindo comprar um apartamento nos Jardins. Talvez fosse melhor ir de táxi, mas sairia caro no fim do mês, e ela teria de economizar em roupa ou comida, o que seria um tremendo sacrifício. Agora que se acostumara a um almoço decente, não queria voltar a viver de esfirras e sanduíches.

O sujeito mal encarado saltou depois de algumas estações, e ela ficou mais tranqüila. Voltou a pensar na decoração do apartamento que estava prestes a comprar. Gostava muito de cozinha americana, mas o sofá devia ficar com cheiro de gordura, e seria horrível ver televisão ou descansar ou fazer as unhas sentindo cheiro de gordura. E quando sua mãe a visitasse, provavelmente diria algo como “por que você não põe uma divisória nessa cozinha?” ou “por que você não troca o estofamento do sofá? Está fedendo!” Com isso concluiu que uma cozinha separada era melhor. Se a sala fosse grande, ela poderia colocar uma mesa, e serviria o jantar ali, quando recebesse as amigas.

Só voltou a pensar no problema do reconhecimento quando entrou no estúdio, e um dos técnicos a cumprimento pelo nome artístico. Decidiu que ia perguntar ao Lucélio se não dava para mandar um motorista buscá-la e levá-la em casa. Alegaria que precisava de privacidade, estava sendo a toda hora reconhecida pelos fãs, que a cobriam de convites indecorosos. (Era mentira; mesmo depois de quatro anos fazendo filme, ela fora reconhecida uma única vez, por um sujeito tão tímido que não ousaria sequer chamá-la para um café com leite.)

Quando a maquiadora começou a passar o rímel, ela pensou duas coisas: para quê tanto capricho na maquiagem, se os homens só iam prestar atenção no sexo? E por que a maquiadora a tratava com tanta frieza? Afinal, quem pagaria o salário dela, se não fossem as atrizes?

Na cena de sexo oral, ela fechou os olhos e lembrou de um sofá lindo que vira na Style Decor, por apenas três prestações de quinhentos e poucos. O estofado era de um azul tão suave que dava até um pouco de sono. Era tudo que ela queria para sua sala, estava cansada de viver cercada de tanto vermelho. Quando o ator gozou em seu rosto, ela ficou se perguntando quanto custaria uma boa banheira. Depois de dançar, o que ela mais gostava era um bom banho quente. Teria uma banheira em casa, nem que precisasse fazer filme por mais dez anos!

No intervalo, o direitor parecia de ótimo humor. Pediu pitsa para todo mundo, fez uns comentários engraçados com a maquiadora, falando que ia abrir uma linha de filmes com gordinhas. Ela riu deliciosamente, e achou que era um bom momento para falar no lance do motorista. Estava enganada. Quando ela falou a palavra “motorista”, Lucélio a fulminou com os olhos, depois perguntou: “sabia que eles exigem previdência? No fim das contas sai mais caro que um ator!” Ela não estava segura de saber o que era previdência, e apenas riu, tentando disfarçar a decepção.

Na cena de dupla penetração, houve um momento em que ela olhou para o teto e reparou pela primeira vez que no estúdio havia sancas de gesso. Sua mente disparou automaticamente algumas perguntas: "será que é muito caro? Mais quanto tempo de trabalho?" Daí ela lembrou que não queria trabalhar depois dos trinta; precisaria de um tempo para ter filhos. Tentou fazer mentalmente algumas contas para estimar quanto ganharia até lá, mas não conseguiu. Quando voltou a si, um dos caras já estava gozando, e ela pensou: "Meu Deus, foi muito rápido, o Lucélio vai querer gravar de novo." Mas o Lucélio não falou nada, e ela ficou aliviada.

No metrô, de volta para casa, ela usou a calculadora do celular, e fez as contas sem dificuldade. Até os trinta, daria para pagar o apartamento, e talvez ainda sobrasse para um smart. Ser reconhecida de vez em quando era um preço que valia a pena pagar. Depois dos trinta, ela pretendia largar a carreira, e se dedicar de verdade a encontrar um marido; de preferência de olhos azuis, com um corpo bem cuidado, e um apartamento um pouco maior que o dela.


Entrou no seu conjugado bastante cansada, mas ainda deu tempo de mandar um email para aquela amiga que vendia cosméticos. O esfoliante estava acabando, e ela precisava encomendar mais um. Depois tomou um banho rápido, sem lavar os cabelos, e foi se deitar. Não demorou a dormir; estava exausta. Hoje foi apenas mais um dia em que ela pensou em sexo. 

4 comentários:

  1. Não entendo por que os homens sempre acham que o maior sonho de uma mulher é casar e ter filhos...

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  2. Não acho que seja de todas as mulheres. Mas de muitas, com certeza.

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  3. Salvei seu blog nos meus favoritos e estou sempre lendo seus contos, por sinal, muito bons. Tb escrevo algums coisas, mas ainda não tive a coragem de mostrar prá ninguém. As vezes fico me perguntando: e se for uma merda?
    Com relação ao conto "Hoje ela não pensou em sexo", achei-o muito bem escrito, pois retrata, de uma forma suscinta, a realidade das pessoas que trabalham com sexo, ou seja, o fazem maquinalmente.
    Com relação a opinião de "anônimo" de 26.06.11, creio que ele não entendeu bem o q. vc escreveu. Mas fazer o quê?
    Mario

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  4. Se estiver uma uma merda, o negócio é jogar fora e escrever de novo. Não tem outro jeito. Temos que pensar a literatura como um processo de constante aprendizagem e aperfeiçoamento. Se o que fizermos não estiver bom, temos que ter a humildade de jogar fora e recomeçar. Já passei por isso várias vezes. Tem conto que nem coloquei aqui no blogue, porque acabou ficando banal, sem nada interessante. Outros estão no blogue mas não vão para o meu livro, porque são bons, mas não memoráveis. Essa auto-avaliação tem que fazer parte do nosso trabalho, e da vida.

    Obrigado pela atenção
    e boa sorte.
    Rbr

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