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terça-feira, 31 de março de 2020

A Garota Lésbica



A garota lésbica

Depois que ela foi demitida da prefeitura, continuou a usar a camisa de trabalho, uma blusa branca, com mangas alaranjadas, escrito “Juntos podemos mais”. Sua namorada também usava essa blusa, principalmente quando andavam de moto, o que me dava a impressão de que as duas trabalharam na prefeitura e foram demitidas simplesmente por serem lésbicas; mas isso já é coisa da minha cabeça.


Um dia eu estava na festa de um amigo e ela estava por lá (com outra camisa). Fiquei com vontade de perguntar alguma coisa mas não tive coragem. Por fim foi ela quem puxou assunto e perguntou com quê eu trabalhava. Eu disse que era escritor, ela perguntou sobre o que eu escrevia. Inventei que meu último livro era sobre um cara bem apessoado que vivia pedindo dinheiro emprestado a mulheres maduras, solteironas ou divorciadas. Em troca dos empréstimos ele ia com essas mulheres a eventos sociais, casamentos, festas de aniversário, inaugurações de lojas e coisas desse tipo; eventos que as mulheres não gostavam de frequentar sozinhas. Ela me perguntou se ele fazia sexo com elas, eu disse que não. Ela riu e disse que a mãe dela tinha lido esse livro e gostado muito. Falsa, mentirosa, pensei; e acrescentei que um dia talvez eu pudesse conhecer a mãe dela, para conversarmos sobre o livro, sobre canalhas em geral, e darmos algumas risadas. Ela ficou meio sem graça, “Pode ser, por que não?” e foi andando para a cozinha. Depois chegaram o bolo e os docinhos. Só então percebi que eu estava numa festa de aniversário. Cantamos a música, comi alguma coisa que não caiu muito bem com a cerveja, mas deixei rolar. 


Mais tarde me aproximei de um grupo que já estava meio bêbado, e estava falando sobre mulheres. Alguns perderam a noção e falavam de coisas que constrangiam suas esposas. Alguém me perguntou por que minha mulher não estava na festa; eu disse que ela estava com meu filho, que estava meio doente, com febre, tossindo. Uma mulher, que conhecia minha mulher, disse que não sabia que eu tinha filho. É do primeiro casamento, eu falei. Não mora com a gente, vem para cá só de vez em quando. Não entendo por que sempre minto quando estou em público. E quando vejo que falo uma mentira, só consigo reforçá-la, não consigo voltar atrás. Sem a menor dúvida, preciso de um bom psicólogo.


Ouvi mais um pouco das piadas e mentiras dos bonachões, depois comecei a me despedir deles, que também já começavam a se despedir de si mesmos.


Encontrei então a mulher ou garota lésbica. Perguntei se ela queria uma carona para o lado da Vila Miranda. Ela disse que não estava indo para casa, ia ficar num bar no centro, e perguntou se eu podia deixá-la por lá. “Claro, por que não?”, eu disse, descendo atrás dela. E quando chegamos, ela me chamou para entrar por uns minutos. Estava muito cedo para ir para casa. Eu disse alguma coisa como “só mais uma cerveja”, e notei que as pessoas ficaram nos olhando quando passamos pela porta, provavelmente porque era um bar de lésbicas, e nós éramos, afinal, um homem e uma mulher.  


O segundo andar era bem decorado com dois sofás grandes nas laterais e luminárias antigas que pareciam grandes castiçais de cabeça para baixo. Quem estivesse num dos sofás quase não via o que se passava no outro. Pegamos uma cerveja e sentamos num deles. Ela me contou que seu cachorro poodle, ou yorkshire, estava com câncer. Eu disse que era uma pena e que ela devia estar sofrendo muito. E de repente nos abraçamos e começamos a nos beijar. E beijamos forte, como se estivéssemos a uns seis meses sem contato sexual. De cinco em cinco minutos ela passava a mão no meio das minhas pernas para ver se o tripé estava armado. Eu me perguntava: será que ela quer fazer aqui? O bar estava quase vazio, havia apenas algumas pessoas no sofá da frente e outras debruçadas nas janelas. De repente, sem tirar as botas, e com a maior naturalidade do mundo, ela se ajoelhou em cima de mim, abriu meu zíper e me cobriu com seu vestido. Dali começamos um sobe-desce profundo, transpirante, ritmado. Ela quase não olhou para o meu rosto, nem eu para o dela. Quando terminamos, ela disse: espere aqui, e correu para o banheiro. Enquanto eu abotoava minha calça, vi que algumas pessoas olhavam para mim, mais por curiosidade que por reprovação. Quando ela voltou, segurava uma bolsa que eu nem tinha visto com ela. Tomou mais um trago e disse: acho que vou ter que sacrificá-lo. Não suporto vê-lo sofrer. Percebi que falava do poodle. Dei uma desculpa qualquer, peguei o número dela e disse que precisava ir para casa. Ela me disse: nunca ligue nos fins de semana; depois acrescentou: não me mande mensagens. Era das duronas.


Cheguei em casa, tomei rapidamente um banho e fui me deitar. Cátia já estava de camisola, vendo televisão. Seu cabelo está com um cheiro estranho, ela disse. Respondi que na festa tinha muita gente fumando. E o Nelinho, está bem? Pensei comigo que Nelinho devia ser o aniversariante ou algum amigo mais chegado de Cátia. Está ótimo, garanti. Sempre sorrindo. Que bom, ela disse, já deve ter arranjado outro emprego. E se enroscou em mim, para dormirmos juntinhos, como fazemos no inverno. E eu dormi como uma criança, sem pensar em nada.


Algumas semanas depois encontrei a mulher lésbica na sala de espera de um médico. Ela disse que seu poodle tinha morrido. Quase tive pena.


Ronaldo Brito Roque

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Sala Privê




Conheci Luciana numa reunião do Clube da Leitura, que é um clube onde as pessoas lêem trechos de livros e comentam sobre o que gostaram ou não gostaram. Na verdade acontece mais coisa, mas eu nunca entendi direito, então é melhor nem tentar explicar. Faz tempo que parei de frequentar, primeiro porque não gosto de ler, e segundo, e mais definitivo, porque lá só dava coroa. Luciana era uma exceção, com seu vestido preto, seu decote autoafirmativo e sua maquiagem vulgar, avacalhada pelo verão do Rio. No dia que nos conhecemos ela tinha ganhado o premiozinho da noite e não me deu muita atenção. Algumas semanas depois, justamente quando eu estava percebendo que aquilo não era lugar para mim, ela veio falar comigo.
Gostei do trecho que você leu.
Eu tinha lido o trecho de um livro que peguei lá em casa, acho que era da minha mãe.
Legal, né. Olha, eu estou só dando um tempo aqui, depois eu vou para a Homens de Terno. Você está a fim de ir? Meu carro está ali na Hilário de Gouveia.
Homens de Terno, o que é isso?
É essa boate nova que abriu aqui em Copa. Tá bombando, tá todo mundo indo para lá.
Homens de Terno? Não, acho que eu não conheço, não... Mas olha, eu tenho estágio amanhã, então fica para outro dia, tá. Você vem sempre aqui, a gente vai acabar se encontrando.
Preferi não dizer que eu não voltaria mais ao clube. Peguei o carro e fui para a Homens de Terno. Lá tem um lance legal, você escolhe algumas músicas numa tela, e o sistema vai tocando automaticamente as mais pedidas. As que eu escolhi nunca foram tocadas, mas claro que eu não ligo. Eu gosto mesmo é de tecnologia. Sou webdesigner e estou pensando em fazer um curso de programação.
Fiquei por ali, dançando e bebericando minha caipvódica. De repente quem eu vejo na pista? Era a Luciana, achei que ela parecia mais alta, mas era ela mesmo.
Ué, você falou que não vinha.
Olha que louco. Uma amiga me ligou, perguntei onde ela estava, e ela falou que estava aqui. Achei uma súper coincidência.
E cadê sua amiga?
Ela já foi.
Ah, tá.
Fiquei dançando um pouco, depois fui comprar um Red Bull. Quando voltei para a pista, eu já estava um pouco alto e fui me aproximando da Luciana e dançando com os braços meio abertos. Ela deve ter achado que eu queria abraçá-la, e me abraçou, e a gente ficou dançando agarradinho, até nossas bocas se encontrarem meio sem querer ou por querer ou por nada. Ela não era assim aquela gata, mas tinha um corpo legal e beijava gostoso. Passamos um tempo nos beijando e dividindo o Red Bull, depois ela falou que queria uma água e a gente foi para uma mesinha. Eu notei que ela estava sem sutiã, e uma mulher sem sutiã me dá uma aflição que eu não sei explicar. Esperei ela acabar a água, e falei:
Olha só, tem umas salas privês aqui, só que a consumação é mais cara.
Eu não ligo para sala privê. Você liga para sala privê?
Pois é, eu prefiro a sala privê, a gente fica mais à vontade, tem ar condicionado... Olha só, se eu pagar a consumação, você acha que dá para rolar um sexo legal?
O quê?! Você tá doidão, cara? O quê que você tomou?
Tomei só o Red Bull mesmo. Estou perguntando para evitar mal entendido. Não quero pagar a sala privê para a gente ficar só beijando.
Quê é isso, cara?! Você é louco? Isso não é jeito de falar com mulher, não. Se você está acostumado a falar assim, você deve estar andando com gente muito vulgar.
Desculpe, eu queria falar antes, para não ter mal entendido. Ia ser muito chato se a gente entrasse lá na privê e você não quisesse transar.
Pô, cara, não é que eu não queira ir para a privê, mas desse jeito que você falou, sinceramente, isso brocha qualquer uma.
Tudo bem, tudo bem. Não precisa ficar nervosa. Eu só queria perguntar antes para evitar mal entendido...
Sei... Você é muito sinistro, viu.
É... Eu sou meio sinistro...
Ficou aquele clima estranho. Eu não sabia o que dizer, e estava louco para ir para a sala privê. Deixei passar um tempo, e falei:
Olha, a gente pode se ver outro dia. Deixa seu telefone comigo.
É, acho que vai ter que ser outro dia mesmo. Hoje foi estranho, né.
É, pois é...
Vem cá, me fala só uma coisa. Você já falou assim com outra mulher?
Já, já falei, sim.
E deu certo?
Não é uma questão de dar certo. Ela também queria ir para a sala privê.
Meu Deus, mas você não entende, né! Não é que eu não quisesse ir, mas desse jeito que você falou, simplesmente não dá, cara. Não é assim que se fala com uma mulher.
Eu sei, você já falou isso... Mas eu sou assim mesmo, gosto de deixar as coisas bem claras. É o meu jeito, sei lá. Mas olha, agora eu vou lá para a privê, tá. Outro dia a gente conversa. Me fala seu telefone aí, qualquer dia eu te ligo.
Ela falou o telefone e eu salvei por puro reflexo. Não estava pensando em vê-la de novo. Quando entrei na privê, senti aquela sensação gostosa, aquele conforto, aquela tranquilidade. Tinha ar condicionado, tinha um sofazão, o vidro fumê dava para a pista. Fiquei um tempo curtindo aquele clima gostoso, depois liguei para o Minuto (o nome do cara é esse mesmo, Minuto).
Fala aí, Minuto! Beleza?... A Bárbara está por aí?
A Bárbara não está aqui em baixo, não. Deve estar atendendo alguém.
Tem alguma peituda, aí?
Tem uma charmosona aqui, que chegou há pouco tempo do Espírito Santo.
Quando o Minuto fala “charmosona” é porque a mulher é meio coroa. Não curto coroa, falei com ele para me ligar se chegasse alguma garota mais nova.
Passou um tempo, o Minuto me ligou.
Chegou uma menina aqui.
É branca? Cabelo liso?
Sim, é branquinha, cabelo liso. Duzentos reais.
Fala com ela para subir.
A garota valia até mais que duzentos. Era novinha, tinha um corpaço. O foda é que tinha aquele sotaque carregado do interior de Minas. Odeio esse sotaque. Faz a mulher parecer uma empregadinha. Mas a vida é assim mesmo, não se pode querer tudo na mesma noite, na mesma mulher.
Apesar de novinha, a garota era experiente e conduziu muito bem a situação. Me relaxou de várias formas. Depois me bateu uma fome danada e eu pedi um chisbúrguer com batata. Quando vi que ela ficou de bobeira, fazendo hora ali na sala, disse que estava esperando um amigo e pedi que ela se retirasse. Se eu não fizesse isso, ela ia avançar na minha batata. Eu conheço bem essas meninas, sei o que estou fazendo. Comi meu chisbúrguer numa boa, depois fiquei de bobeira, simplesmente ouvindo música e me sentindo feliz. Não sei se é assim com todo mundo, mas depois do sexo eu sinto uma coisa tão boa que só pode ser felicidade. Depois fui para casa dormir com a minha felicidade.
Algumas semanas depois, eu estava sozinho, e resolvi voltar no Clube da Leitura. Não gosto muito daquele lugar, mas, como não consigo ficar em casa, acabo indo para qualquer lugar onde tem alguma coisa acontecendo. Peguei um livro da minha mãe, e fui.
Assim que cheguei, vi a Luciana. Achei que ela nem ia me cumprimentar. Mas ela veio falar comigo.
E aí, tudo bem? Como é que foi aquele dia lá na boate? Você encontrou alguém que queria ir para a privê?
Encontrei, sim. Chamei uma garota de programa.
Ah, chamou uma garota de programa?! Então você é um homem moderno, século XXI?
É, acho que eu sou, sim.
Alguém chamou a atenção da gente. Estávamos atrapalhando o evento. Ficamos quietos, aguardando nossa vez. Depois abri o livro em qualquer página e li um trecho lá. No fim do evento todo mundo votou no meu trecho, e fiquei em dúvida se devia ficar contente ou envergonhado. Mas resolvi ficar contente.
Quando tudo acabou, a Luciana veio falar comigo.
Legal esse livro. É da Anaïs Nin, né.
É...
Vem cá, você vai para a Homens de Terno hoje?
Posso ir.
Você me leva?
Levo, sim. Tudo bem.
Quando entrou no carro, ela ficou folheando o livro, depois falou: ― Parece que é muito maneiro esse livro. Você me empresta?
O livro é da minha mãe, não posso emprestar, não.
Ah, tá... Tudo bem... Eu vou anotar o nome, depois eu tento baixar na internet...
Chegamos na Homens de Terno e ficamos dançando assim de bobeira, sem muita vontade. Acho que ela estava chateada comigo, porque no outro dia eu a tinha deixado sozinha. Mas o que eu podia fazer? Eu estava muito a fim de transar. Se a gente fosse para a privê, e ela não transasse, eu ia ficar muito puto. E de repente, quem eu vejo na pista? Leandra, aquela loira catarinense inacreditável! Ela estava com uma blusa rendada, transparente, chamando bastante atenção. Se eu não agisse rápido, ia perder a oportunidade. Cheguei nela já falando: ― E aí, Leandra, você está linda!
E aí, gatinho. Tudo bem?
Vamos subir para a privê?
A gente pode ir, mas hoje eu estou cobrando trezentos, tá.
Pô, trezentos, Leandra? Por que é que aumentou assim, de repente?
A cidade está com pouco movimento, sei lá. Não está dando para pagar as contas.
Tudo bem, eu entendo. Eu tenho aqui, não tem problema.
Ela abriu um sorrisão para mim, depois me deu um selinho. Meu Deus, não tem nada melhor que uma mulher como a Leandra! O homem que inventou a garota de programa fez um bem tremendo para a humanidade. É um dos meus heróis, sem dúvida.
Mas a Luciana estava ali do meu lado, e ela ficou me olhando com uma cara súper amarrada. Fiquei meio sem graça, e resolvi apresentar as duas.
Olha só, Luciana. Essa aqui é a minha amiga, Leandra.
A Leandra estava de salto e chortinho de látex. Ela tinha cabelos pintados, quase amarelos, e seios do tamanho de bolas de vôlei. Estava meio na cara que ela era garota de programa. A Luciana ficou meio confusa, não sabia o que dizer.
Prazer... Eu conheço o Rodrigo lá do Clube da Leitura.
Eu conheço ele daqui mesmo... ― Ela riu, com uma cara maliciosa. ― Ele não sai daqui.
Exagero dela, Luciana. Eu venho no máximo duas vezes por mês. Também não sou nenhum Eike Batista, né.
Rimos um pouco, falamos algumas trivialidades, depois subi com a Leandra para a sala privê. Ela estava maravilhosa. Já temos alguma intimidade. Ela é como uma velha amiga para mim, mas não perdemos muito tempo conversando.
Mais uma vez, encontrei aquela felicidade serena e ao mesmo tempo vibrante. Depois me deu um pouco de fome e fui para o bar, comer alguma coisa. Assim que pedi uma batata, quem apareceu? A Luciana.
Ué, pensei que você já tinha ido.
Resolvi ficar um pouco.
Me dei mal. Quando a batata chegou, ela meteu a mão. É por isso que eu não gosto de comer perto de mulher. Elas se sentem no direito de comer o que é seu.
Passou um tempo, falei: ― Tô indo. Ela me segurou pelo braço: ― Deixa eu te perguntar só uma coisa. ― Fala, o que é: ― É que... essa Leandra... Quer dizer, foi com ela que você subiu para a privê, não foi? ― Foi ela mesmo. ― E ela... quer dizer, quanto ela cobra para ficar lá com você? ― Duzentos. ― Nossa, duzentos reais?! Duzentos reais para ficar uma hora na privê? ― Não sei se foi uma hora, você marcou? ― É... Marquei... só de curiosidade. ― Pois é, então é isso. Duzentos reais, uma hora. Agora eu preciso ir, estou morrendo de sono. ― Você vai voltar no Clube da Leitura? ― Não sei. ― Vai, sim, pô. Aparece lá. ― Tá, eu vou. Tchau.
Passaram algumas semanas, lá estava eu no Clube da Leitura, de novo me perguntando que diabo eu ia fazer naquele lugar. A Luciana viu que eu estava com o mesmo livro, e perguntou: ― Anaïs Nin, de novo? Eu nem sabia que o autor daquele livro se chamava Anaïs Nin. Os outros livros que tinha lá em casa eram sobre dietas ou sobre os não sei quantos passos das pessoas de sucesso. Aquele era simplesmente o único que eu podia levar.
Chegou minha hora, li qualquer trecho lá. Eles gostaram, até bateram palmas. A Luciana me perguntou: ― Quando é que você vai me emprestar?
Você não conseguiu baixar pela internet?
Por que você não baixa para mim? Você tem cara de ser meio hacker.
Ah, meu Deus, mulher é um saco. Dei um tempo e saí de fininho e nem falei para a Luciana que eu estava indo para a Homens de Terno. Fiquei com medo de ela pedir carona e ficar insistindo para eu emprestar o livro.
Cheguei na boate. Não deu cinco minutos e ela estava lá. Ficou falando besteira, nhém, nhém, nhém, Anaïs Nin, não sei mais o quê. Eu não aguentava mais, daí falei: ― Você me paga um Red Bull? Ela falou: ― Tá sem grana? tudo bem, posso pagar. Então resolvi ficar mais um tempo, porque pelo menos ela estava pagando o Red Bull. Daí de repente me deu a impressão de que ela estava falando “se eu fosse cobrar não seria menos de trezentos”, e acho que meu olho brilhou. Eu pensei: a minha cabeça está latejando ou o quê?
O que foi que você falou?!
Eu falei: Anais Nin, nhém, nhém, nhém, não sei mais o quê.
Não! Sobre os trezentos reais?
Ué, se eu fosse cobrar, não seria menos de trezentos. Não sou nenhuma vagabunda, né. Eu tenho classe.
Olhei para os peitos dela. Ela estava de sutiã, mas deu para ver que era um sutiã honesto, sem enchimento. Daí mandei:
Vamos subir, eu tenho os trezentos aqui!
Ah, você é louco, né. Você era bem capaz de me dar esses trezentos mesmo.
Chega de conversar, vamos para a privê, agora! Falei isso com raiva e tesão, depois a agarrei e a beijei com força. Quando fomos para a sala privê, meu coração estava a mil, eu sentia que estava me acontecendo uma coisa estranha e bonita, uma coisa que não pode acontecer todo dia. Abaixei o vestido dela, tirei o sutiã e nadei naqueles seios lindos, porque eu era uma criança feliz, encontrando uma piscina ou um brinquedo fantástico ou um milagre. Tudo foi quase perfeito, mas teve hora que ela ficou me olhando com uma cara interrogativa, como se estivesse perguntando: “eu estou fazendo direito? É assim que as putas fazem?”, mas também podia ser: “você vai baixar o livro para mim? Você vai contar para alguém do Clube da Leitura?”
Só que, mesmo não sendo perfeito, a felicidade do sexo me dominou; fiquei mais uma vez com a impressão de que a vida valia a pena. O dinheiro, o sexo, as prostitutas, tudo isso é muito bom, não entendo por que tem tanta gente que fala mal. Assim que ela se vestiu, eu passei para ela os trezentos reais. Ela enfiou na bolsa e falou: ― Você sabe que eu só estou aceitando isso porque é uma fantasia sua, né. Você sabe que isso não tem nada a ver comigo, é tudo uma loucura que você criou.
Eu sei, isso não está acontecendo.
Ela riu.
Você vai ficar mortão aí, não vai descer?
Vou ficar mais um tempo aqui, só curtindo o ar condicionado.
Tá, você tem meu telefone. Qualquer coisa me liga.
Fiquei um tempo lá, deitado, só ouvindo a batida que vinha da pista, pensando em como eu gostava daquele lugar, como eu gostava do meu dinheiro, das mulheres brancas, dos peitos grandes... ou talvez eu não estivesse pensando em nada, o que era ainda melhor.
Passou um tempo e me deu aquela vontade de ir para o Clube da Leitura. Mas eu queria ser forte, queria não ir. Peguei o telefone e liguei para a Luciana.
Eu estou aqui na Homens de Terno ― ela falou.
Você não vai no Clube da Leitura?
Hoje eu acho que vou ficar por aqui.
Peguei o carro e fui para a Homens de Terno, feliz por conseguir evitar o Clube. Cheguei lá, não vi a Luciana, mas não liguei. Pedi uma caipivódica e fiquei de bobeira. Daí a pouco aparece o Minuto.
Sabe quem tá aí?
A Suzana?
Não, a Bárbara.
A Bárbara, que maneiro! Cadê ela?... Ah, tá, já vi, já vi.
Fui dançando para perto da Bárbara, cumprimentei, perguntei se ela estava esperando alguém, que é o jeito de perguntar se uma garota está livre. Graças a Deus, ela não estava esperando ninguém, e subimos para a privê. Eu não preciso descrever a Bárbara, pense nas garotas mais bonitas que você já viu. Ela é tipo um resumo disso, com a diferença de que nela você tem como chegar.
Relaxamos gostoso, depois ficamos deitados de conchinha, num silêncio quase íntimo. Ela perguntou: ― Você não sente frio com esse ar condicionado? Eu falei que não, mas na verdade eu estava com um pouco de frio, sim. E também estava com fome, e pensei uma coisa bem óbvia: se eu pedisse comida pelo interfone, a Bárbara ia comer comigo e não ia pagar. Então me vesti e falei que eu tinha que voltar para o bar. Quando eu estava saindo da sala, vi uma coisa que eu não podia acreditar, e um segundo depois eu acreditei e achei espantosamente natural. A Luciana estava saindo de outra sala privê e se despedindo de outro cara. Ela me lançou um olhar sério e profundo, e aquele olhar dizia: não me cumprimente, finja que não me conhece. Obedeci candidamente, como quem obedece a uma regra que aprendeu na infância e não lembra que aprendeu. Mas não a perdi de vista e mais tarde consegui me aproximar.
Você foi no Clube da Leitura? ― ela perguntou.
Não fui, não.
Olha só, eu queria te pedir uma coisa.
Pode deixar, eu vou tentar baixar o livro para você.
Não, não é isso, não... É que... Não comenta com ninguém, não, tá. Porque isso é uma coisa temporária, não vou fazer isso por muito tempo.
Que é isso, não vou comentar nada com ninguém. Isso não está acontecendo, é só uma loucura da minha cabeça.
Ela riu uma risada gostosa, e ri com ela e acabamos nos abraçando, deliciosamente. Me deu vontade de falar “eu te levo em casa”, mas senti que isso estragaria o equilíbrio delicado daquela noite. Eu precisava voltar sozinho, para pensar devagar e entender o que eu já sabia. No carro lembrei que, quando nos conhecemos, ela estava com uma maquiagem exagerada, fazia gestos vulgares, parecia uma garota de programa. Naquela noite pensei que a diferença entre minhas amigas e as garotas de programa era apenas o dinheiro dos pais. Agora eu percebia que essa equação não era tão simples. Talvez houvesse, em algumas mulheres, uma alma de prostituta, esperando o momento certo para vir à tona. Eu fui esse momento para Luciana. O destino me usou para permitir que ela se revelasse a si mesma, e fizesse uma transição suave, sem traumas. Essa ideia me animou e confortou ao mesmo tempo, talvez porque no fundo eu ame as garotas de programa. Sem elas eu seria provavelmente mais um maridinho submisso, pai de dois filhos, trabalhando incessantemente para sustentá-los. As prostitutas me libertaram desse destino previsível e banal.
Cheguei em casa feliz. Minha mãe, mais uma vez, tinha dormido diante da televisão. Desliguei o aparelho, fui para o quarto, encontrei, na minha mesa, o livro da Anaïs Nin, que eu nunca tinha lido. Antes pegar no sono, consegui ler algumas páginas.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Eu, leitor


Não dava mais para viver com duzentos por semana. Passei a cobrar quatrocentos. Peguei um pedaço de madeira e fiz uma nova placa:

Cobro quatrocentos reais para ler seu livro.

A segunda e a terça foram mortas, nenhum movimento. Na quarta apareceu um sujeito de óculos e sapatos. Era jovem, mas se vestia como velho.
Você também lê teses? ele perguntou.

Eu sabia perfeitamente o que era uma tese. Minha filha havia feito doutorado no exterior.
─ Posso ler ─ respondi prontamente.
─ Eu posso pagar em duas vezes?

Não costumo parcelar, nem aceitar fiado, mas o sujeito me pareceu honesto. Resolvi lhe dar essa chance. Ele me deu duzentos reais, esclareceu que fazia mestrado em ciências socais. Passaria no dia seguinte para ma deixar uma cópia da sua tese. Era sobre os possíveis motivos do aumento da prostituição no interior do Rio de Janeiro, entre garotas de 18 a 24 anos.

Na quinta peguei a tese, e já fui lendo no ônibus. O sujeito escrevia muito mal, mas seus argumentos tinham lógica. Ele defendia que certos livros de depoimentos de garotas de programa estavam influenciando o comportamento das jovens fluminenses. Os livros não deixavam claro se as mulheres haviam se arrependido de sua opção. Citava muito uma tal de Bruna Surfistinha, que fora bestseller no ano anterior. Li a tese em cerca de três dias, mas ele só apareceu, como tinha prometido, na semana seguinte.
─ Então, o que o senhor achou? ─ Vi que ele estava ansioso.
─ Gostei.
─ Como assim, “gostei”?
─ Seus argumentos têm lógica. Tenho visto muita menina rodando bolsinha, mas não sabia que era por causa desses livros.
─ Bem, é uma hipótese. Eu não fiz nenhuma afirmação cabal.
─ Eu sei, eu sei... Hipótese... Mas eu gostei.
─ Só isso! Gostei!?
─ Que mais eu posso dizer?
─ O senhor fez alguma anotação?
─ Fiz não senhor.
─ O senhor só vai dizer que gostou?

Senti que o rapaz queria confusão. Procurei ser enérgico.
─ Olha, você leu o que está escrito aqui? “Leio seu livro por quatrocentos reais”. Você me perguntou se eu também lia tese, e eu disse que sim. Mas não disse que ia fazer anotação. Agora, por favor, veja o resto do pagamento. Meu trabalho é sério, não sou homem de ler mais de cem laudas por mera diversão.

O rapaz deve ter visto que eu não estava de brincadeira, pois me deu logo os duzentos reais.
Fiquei até contente quando ele foi embora. Eu estava com a impressão de que ele não tinha valorizado meu trabalho.

Na semana seguinte apareceram os clientes habituais. Eram funcionários públicos que me contratavam para ler seus livros de romance ou poesia. Também apareciam jovens autores que se queixavam de não ter a devida atenção da mídia. Eu sempre levei meu trabalho a sério, nunca fui de discutir. Lia todos os livros e exigia pagamento em dinheiro. Às vezes alguém me dava uma garrafa de vinho ou um exemplar autografado. Eu aceitava com gratidão, mas nunca pedi nada. Minha prioridade sempre foi o trabalho.

Depois daquele sociólogo, cheguei a pensar em não aceitar mais teses. Mas tinha muita senhora fazendo mestrado em Pedagogia ou Letras, e elas insistiam bastante. Resolvi aceitar, mas eu esclarecia que não fazia nenhuma anotação. As velhas concordavam numa boa, elas entendiam meu trabalho. Aliás acho que todo mundo continua entendendo meu trabalho. O tal sociólogo, graças a Deus, nunca mais apareceu por aqui.


sábado, 17 de março de 2012

O homem que não adivinhava



De todos os homens que conheci, o menos interessante era aquele que não adivinhava meus pensamentos. Desde o início ficou claro que a gente nunca entraria numa sintonia profunda. Na faculdade ele costumava me oferecer carona, dizendo que passava pela Praça Dezessete e não custava nada me deixar numa das esquinas. Quando ele parava no sinal, eu sempre comentava que minha casa era apenas a duas quadras de distância, na Rua Mochileiro Chileno. Eu pensava que ele ia falar alguma coisa tipo: é logo ali, eu contorno a praça e te deixo lá. Mas o idiota não sacava minha indireta, e respondia: que bom, assim você não tem que andar muito, né. Ele não tinha o menor talento para ler nas entrelinhas.

Uma vez a gente estava na chopada, e ele veio para o meu lado meio bêbado, com um papo estranho: sabia que eu te acho uma gracinha? Sério mesmo, você tem um charme assim, tipo mulher de filme antigo... Eu pensei: porra! Filme antigo? Eu mereço uma cantada melhor, né! Daí comecei a despistar e a encarar outros garotos, para ver se ele se tocava que eu não estava a fim dele, mas o pateta não percebeu, e continuou com aquela ladainha: você lembra um pouco a Eva Jarden, ou aquela atriz brasileira, como é mesmo o nome dela? Paula Zembinsque? Tânia Buginsque? E eu já estava até dando papo para os calouros, mas ele voltava toda hora, cada vez com um nome mais louco, Regina Faranges, Juliana Bitmarche? Como ninguém chegava em mim, eu vi que ia ter que pegar aquele trolha mesmo, e resolvi beijá-lo. Durante alguns minutos fiquei até contente, porque ele fez uma carinha de felicidade que eu achei muito bonitinha. Mas depois eu vi que a Ronize tinha conseguido pegar o Marcelo e fiquei morrendo de ódio! Aquela vaca da Ronize que nem tinha peito! O Marcelo deve ter entrado na dela só porque ela era cheia de tatuagem e toda metida a moderninha! Fiquei muito puta, peguei o homem que não adivinhava, que na época nem podia ser chamado de homem, era só um moleque que sabia dirigir, e fui para perto do Marcelo. Lasquei cada beijo incandescente, cada chupão no pescoço dele, que o Marcelo deve ter morrido de inveja. Na certa pensou em chegar em mim na próxima chopada. Mas quem acabou ganhando foi o idiota que não adivinhava, que nem sonhava que eu estava fazendo aquilo tudo só para atiçar a vontade do Marcelo.

Depois desse dia, ele começou a me beijar sempre que me deixava na Praça Dezessete, e eu ficava me perguntando quando ele ia perceber que eu queria que ele me deixasse na porta de casa. Quando eu não suportava mais aquela aflição, acabei falando: por que você não me deixa na porta de casa? É só contornar a praça e entrar na transversal. Ele disse: tranquilo, eu te deixo lá. Mas aquilo me deu uma estranha vergonha, eu me senti humilhada, derrotada pela minha própria ansiedade. Não tinha graça falar essas coisas em voz alta. Ele não estava ficando comigo? Por que ele não podia adivinhar?! Acho que foi aí que eu comecei a fantasiar um homem que pudesse ler meus pensamentos, que compreendesse o que eu queria sem que eu precisasse falar. Mas quanto mais eu sonhava com esse estranho telepata, menos eu falava, e mais o homem que não adivinhava fazia burrada.

No aniversário da minha mãe, eu achei que ele ia levar um presente bonitinho, fazer um elogio descente, talvez até falar que ela parecia uma atriz antiga, por que não? Se mamãe ficasse contente eu não ia ligar, apesar de ser um comentário ridículo. Mas o homem que não adivinhava não levou presente nenhum, e também não falou nada interessante, só deu os parabéns e ficou na sala falando de futebol com meus tios. Eu fiquei com vontade de sumir da vida dele, de nunca mais aceitar carona, só que o ônibus estava dois e oitenta, e, se eu economizasse, em duas semanas já dava para uma escova.

Depois meus tios ficaram me perguntando se ele era meu namorado, e até a minha mãe perguntou se a gente estava namorando, e como ela acrescentou que ele era bonitinho, eu acabei falando que sim. Afinal, ele já me levava em casa quase todo dia, já conhecia minha família, e o babaca do Marcelo já tinha pegado metade das meninas da faculdade, e  parecia não dar a mínima para mim. Eu precisava de um namorado, e na falta de coisa melhor, ia ser aquele néscio mesmo. Daí comecei a beijá-lo na frente das meninas, para marcar território, e ele ficou todo bobo, falou que a gente já estava junto há muito tempo, e que ia começar a me apresentar aos amigos como namorada. Eu pensei: como esse moleque é ingênuo. Ele nem imagina que bastaria uma palavra de um cara como o Marcelo para eu nunca mais olhar na cara dele, e não lembrar nem em sonho que ele tinha passado a contornar a praça e me deixar na porta de casa. Mas essa palavra nunca apareceu, e o Marcelo, depois de pegar todo mundo, inclusive eu, acabou firmando com uma patricinha alta, de peitos enormes, que dava para ver que era silicone, mas ele parecia não ligar.

Depois da formatura começou aquela pressão da minha família para eu sair de casa, e eu fiquei puta, porque queria usar o dinheiro do estágio para colocar silicone. O homem que não adivinhava tinha conseguido um empreguinho legal e alugado um quarto-e-sala no centro. Quando ele me chamou para morar com ele, eu sabia que ele nunca ia suspeitar que eu estava aceitando só para ter como sair da casa dos meus pais. Pensei em ficar um tempo com ele, até conseguir um homem ou um apartamento melhor. Como eu imaginava, ele foi sonso o bastante para acreditar que eu o amava. Naquela época eu já estava começando a entender que o fato de ele não adivinhar meus pensamentos afinal poderia ser uma vantagem.

Resolvi dar um tempo no apartamento dele, e acho que nem preciso contar que foi um desentendimento atrás do outro. Quando eu queria sair para dançar, ele achava que eu queria transar. Quando eu queria transar, ele achava que eu queria sair para comer fora. E quando eu estava tomando coragem para me separar, ele achou que eu queria um filho. Claro que eu não queria filho, o problema é que minhas amigas já estavam parindo seus brunos e mateuses, e elas pareciam tão felizes que eu não me culpo por ter pensado que eu também precisava engravidar. Imitar minhas amigas sempre foi meu maior prazer. O pior de tudo foi que, mesmo com aquele barrigão de seis meses, o homem que não adivinhava não desconfiou que a gente precisava mudar. Eu tive que conversar com a minha família, e meus pais deram entrada num apartamento de dois quartos, deixando para a gente só as prestações. Vou confessar uma coisa: tinha hora que não dava para perceber se ele não adivinhava mesmo ou se apenas se fazia de tonto.

O fato é que tivemos o filho, e conseguimos passar para um apartamento com mais espaço. Hoje que o Marcelinho está maior, eu tenho mais tempo para mim, e às vezes fico me perguntando por que me casei com o homem que não adivinhava. Acho que no fundo foi pelo mesmo motivo que todo mundo se casa: o cara que eu realmente desejava não quis nada comigo e, se eu ficasse sozinha, minhas amigas me veriam como uma fracassada. Só que eu estou cansada de pensar nessas coisas, não quero mais me preocupar com bobagem. Daqui a pouco ele chega, eu vou beijá-lo carinhosamente e dizer que estava morrendo de saudade. O homem que não adivinhava nunca vai perceber que eu não sou feliz, e vou poder passar o resto da vida acreditando que ele é culpado pela minha infelicidade.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Quando os ET´s chegaram, eu estava dormindo


Quando os ET´s chegaram, eu estava dormindo. Meu pai me acordou aos berros.
— Vem logo, filho! Vai começar a transmissão ao vivo.
— Me deixa quieto, pai. Quero domir — respondi, morrendo de sono. — Amanhã eu vejo os melhores momentos no jornal da tarde.
— Você está louco, rapaz? Você não quer acompanhar o evento histórico mais importante do milênio?! O que você vai dizer aos seus filhos? Que preferiu ficar dormindo na noite em que os ET´s desceram na Terra!?
— Fecha a porta da sala, por favor — liquidei o assunto e voltei a dormir. Meu pai nunca me entendeu, mas eu não achava a menor graça em ver uma coisa que já fora prevista e anunciada mil vezes, que todo mundo já sabia como ia acontecer, que já fora até ensaiada pelas autoridades e representantes das nações.

Os ET´s tinham montado uma base na lua, e vinham trocando informações com a Terra havia décadas. Já sabíamos tudo sobre eles: de onde vinham, o que comiam, como viviam. Centenas de imagens já haviam circulado nos jornais e na internet. Nossos linguistas já tinham até aprendido a ler e escrever no idioma deles. Eu sabia que naquela noite não ia acontecer nada de extraordinário. Só o imprevisto pode ser extraordinário. O que já foi devidamente previsto e planejado, quando vem a acontecer, é apenas o fluxo natural dos fatos, é desinteressante, é banal.

Além disso, eu era adolescente e só pensava em sexo. Já tinha me informado sobre os ET´s, e as fêmeas eram feias demais para despertar meu interesse. Os ET´s são uns bichos esquisitos, meio parecidos com caranguejos, só que ficam de pé e são quase do nosso tamanho. Eles têm exo-esqueleto, pernas e braços finos, olhos sem pupila. Simplesmente não dá para se interessar por uma fêmea assim. Se tivesse alguma ET tipo a Mística dos X-Men, ou pelo menos que nem a índia do Avatar... mas aquelas caranguejas, francamente! Elas não tinham nada que lembrasse nem vagamente um peito ou uma bunda.

No dia seguinte, a TV confirmou tudo que eu esperava. Os ET´s chegaram numa boa, foram recebidos pelos líderes das nações. Eles conversavam conosco por meio de aparelhinhos que emitiam frases em nossos idiomas. Alguns desceram na Europa, outros nos Estados Unidos, outros na China. Naquela época eu já não gostava dos comunistas e preferia que eles tivessem descido no Japão ou na Coréia do Sul. Mas eles quiseram descer na China também, fazer o quê. O fato é que aquela noite em particular não teve repercussão nenhuma na minha vida. Só anos mais tarde eu viveria algo mais diretamente relacionado aos ET´s. Eu estava na faculdade, havia tempo que eles estavam entre nós, mas ainda não tinham personalidade jurídica. Ou seja: não podiam votar, não podiam comprar imóveis, não podiam processar nem ser processados por ninguém. Como era de se esperar, os juristas e estadistas se dividiam basicamente em dois lados. Uns achavam que os ET´s tinham demonstrado inteligência mais que suficiente para lidar com processos e tribunais, portanto mereciam personalidades jurídicas. Outros alegavam que era um risco conceder personalidade júridica aos ET´s. Se eles fizessem alguma besteira, e fossem processados, podiam simplesmente sumir para seu planeta e não cumprir a pena determinada.

Claro que eu fiquei com o primeiro grupo, mas não por entender alguma coisa de justiça ou por ter refletido demoradamente sobre o assunto; o grupo “ET Legal Já” era simplesmente o único que fazia passeatas maneiras, com internveções em centros urbanos, caminhadas, chous de roque e essas coisa toda. Eu era um jovem calouro, precisava participar de alguma passeata, mostrar aos meus amigos que eu tinha ideais, talvez até conhecer uma garota engajada, ousada, liberal... Os ET´s me davam a oportunidade de fazer isso tudo.

Nos outros países, menos na China – aqueles comunistas desgraçados! – os jovens cederam rapidamente ao intenso desejo de imitar, e começaram a fazer as mesmas coisas que a gente: passeatas, vídeos no Youtube, intervenções coletivas. Com toda essa pressão, não demorou para que os ET´s ganhassem suas personalidades jurídicas e pudessem comprar imóveis, fundar empresas, fazer tudo que um ser humano fazia. Nosso eslôgan era bem claro: humanidade é inteligência; se os ET´s são inteligentes, também são humanos. A mídia nos apoiou, os liberais e esquerdistas do mundo todo nos apoiaram. Mas, sem dúvida, o que nos causou mais espanto foi que até o papa ficou do nosso lado. Ele alegava que os ET´s tinham alma, e por isso precisavam conhecer o evangelho. Muitos ficaram revoltados com essa posição da igreja. Receber o apoio do papa na luta por uma causa, qualquer que fosse, parecia envergonhar imensamente os liberais. Mas o papa perseverou na ideia de pregar o evangelho aos ET´s, e fez várias reuniões com eles no Vaticano. Todos ficaram decepcionados quando viram os ET´s assistiando à missa, confessando-se e recebendo a comunhão. Chegaram a questionar a inteligência dos ET´s, alguns intelectuais retiraram seu apoio, mas acabou não dando em nada. Já estávamos acostumados com eles; não iríamos expulsá-los da Terra só porque haviam se tornado católicos. Diziam até que eles tinham ensinado coisas incríveis aos nossos cientistas, tipo substituir órgãos de humanos pelos de animais, obter energia elétrica da ionosfera e coisas desse tipo. Outros denunciavam que os ET´s não tinham ensinado nada daquilo, nossos cientistas é que já haviam descoberto essas coisas, e o mito de que elas vinham dos ET´s apenas facilitou a obtenção de financiamento para as pesquisas. Qual a verdade nisso tudo claro que eu nunca vou saber. Mas nem por isso deixei de ir às passeatas; vociferei os eslôgans em voga, dei meu depoimento aos repórteres. Disse que os ET´s mereciam o direito de procurar nossa justiça, que havia chegado o momento de estender o direito de cidadania a qualquer ser que pudesse ler e compreender nossas leis. Entrei para a história da minha faculdade, tal era minha obediência e meu talento para a repetição. Gosto de pensar que os ET´s me viram de suas naves – àquela altura já na órbita da Terra – e admiraram silenciosamente minha coragem e meu senso de justiça. Mas, infelizmente, nunca conversei com um ET. Pouquíssimas pessoas são autorizadas a isso. Nunca entendi porque eles quiseram manter essa distância. Nem depois de tantas passeatas e manifestações de simpatia, nenhum deles apareceu para tomar uma cerveja com a gente. Acho que essa sempre foi nossa maior decepção.

Depois que eu me formei, acompanhei o caso apenas pelos jornais, como todo mundo. Assim que tiveram suas personalidades jurídicas, os ET´s começaram a criar empresas. Parece que eles tinham muito ouro e diamantes, que traziam não sei de que planeta longínquo, e logo fundaram bancos internacionais que transformaram nossos grandes banqueiros em meros oficebóis. Depois eles compraram mineradoras, e o preço do aço ficou absurdo. É por isso que hoje em dia quase ninguém tem carro. Não tem nada a ver com ecologia, como pensam os idiotas. Simplesmente ficou impossível ter um carro depois que os ET´s passaram a exportar nosso aço para outros planetas. Eu lembro que os equipamentos eletrônicos também eram bem comuns na minha adolescência. Eu tinha um leptope e um celular, passava o dia trocando mensagens com meus amigos. Mas, depois que os ET´s começaram a explorar nosso silício, a coisa mudou. Hoje só grandes empresas podem ter um computador; e há quem diga que essas empresas pertencem aos ET´s. Agora estão falando que a água é que vai encarecer, e que vamos ter que deixar esse hábito ultrapassado de tomar banho. Não dá para saber se é verdade ou apenas boato. A mídia ficou um caos depois que eles começaram a controlar as transmissões via satélite.

Mas o pior disso tudo foi o que eu ouvi outro dia. Eu estava conversando com um jovem, de uns dezesseis anos, e ele disse que a minha geração que é culpada dessa situação, que essa pobreza toda começou quando concedemos personalidade jurídica aos ET´s. Na hora eu não soube o que responder, depois é que me caiu a ficha: esse moleque não passa de um idiota, preconceituoso, retrógrado! O que ele queria que fizéssemos!? Que negássemos aos ET´s o direito de trabalhar e viver dignamente no nosso planeta? Será que ele pensa que o planeta é dele?! É por isso que eu evito conversar com os jovens, eles andam com umas ideias que... francamente! Não sei de onde tiram essa loucura, da televisão sei que não é.

O problema é que aquela frase ficou repercutindo na minha cabeça. “Nossa pobreza começou quando concedemos personalidade jurídica, nossa pobreza começou...” Cheguei a perder noites de sono por causa disso. Ah, meu Deus, que moleque cretino, que falta de visão! Se ele tivesse vivido tudo que eu vivi, se ele tivesse ido às passeatas, sentido aquela euforia, aquele sentimento de coragem, de união. Se ele visse as mulheres que eu beijei nos chous pelos direitos dos ET´s... Ele é apenas um pobre coitado, nem deve ter namorada. A geração dele não fez um milésimo do que fez a minha. Definitivamente, é melhor esquecer tudo que ele falou, e voltar a dormir em paz.

domingo, 30 de outubro de 2011

Canção erótica de segunda-feira


Um dia eu me abri com um amigo, e ele disse que sou obcecado por seios. Não acho que isso seja verdade. Não gosto de seios em geral, mas apenas dos seios lindos. E não tenho a menor necessidade de sair por aí atrás de várias mulheres para ver e tocar milhares de peitos anônimos. Acho que me bastariam os seios de uma esposa, se ela entendesse e aceitasse minha necessidade de venerá-los. Eu quero apenas uma mulher compreensiva, compassiva, silenciosa — e com seios lindos. Não me parece que isso seja uma obsessão.

Numa manhã como esta, ela poderia me levar até a porta, e se despedir de uma maneira especial. Encostando-se na parede, abriria levemente a blusa, e me deixaria ver por um momento a beleza recôndita do seu busto maduro. O volume seria macio e consistente; os mamilos, não muito escuros, se destacariam na pele homogênea, suavemente vibrante. Eu me aproximaria devagar, e os tocaria delicadamente, ora com as costas das mãos, esboçando uma carícia, ora contornando o volume com os dedos, intuindo por trás da carne morna a pulsação oscilante e aflita do coração feminino. Se nesse momento uníssemos os rostos, ela confirmaria pelo tato a sinceridade do meu deleite. Talvez arriscássemos algumas palavras, mas eu logo resgataria o silêncio, aumentando a pressão do toque, causando uma tensão branda, que ela chegaria a sentir como um sutilíssimo princípio de dor. Se ela deixasse escapar um suspiro longo e doce, quase obsceno, aposto que depois se envergonharia, temendo que eu o tomasse por fingimento ou exagero sentimental. Mas eu lhe confortaria com um olhar aliado, e ela se recomporia sem dificuldade, despedindo-se em seguida, carinhosamente, como uma mãe dedicada, que sabe estar transformando um menino em homem. Duvido que, depois de um momento desses, eu ainda me recusasse a ser feliz.

Mas agora que pensei sobre isso, me ocorreu que a saudade daqueles seios talvez me paralisasse o trabalho. Sou um homem fraco, e admito a possibilidade de lançar o olhar sobre minhas colegas, buscando o sucedâneo do busto que teria deixado em casa. Então pode ser que eu descobrisse uma mulher mais jovem, que escondesse por trás da blusa a promessa de uma delícia semelhante à dos meus jogos domésticos. Meus olhos treinados não teriam dificuldade em expressar o convite indecoroso. E assim como nos sonhos sabemos exatamente o que alguém está pensando, ela compreenderia meus planos secretos com uma precisão e uma rapidez absurdas. Um sorriso e um aceno silenciosos expressariam seu consentimento, e lhe bastariam alguns minutos para pensar numa desculpa que justificasse sua ida ao almoxarifado. Eu chegaria em seguida, logrando disfarçar a aflição; ao contrário dela, que soltaria os cabelos e os sacudiria ligeiramente, repetindo um gesto que teria aprendido nas telenovelas. Sua juventude justificaria esses arroubos, e eu não seria louco de reclamar com alguém que me compreendesse tão completamente. Um botão depois do outro, ela me revelaria o viço da sua pele, e eu me surpreenderia ao descobrir que aqueles gestos delicados não seriam exclusividade da minha mulher. Talvez por isso eu me desculpasse por sucumbir tão imediatamente a um prazer que também deveria sentir apenas com ela. Em seguida viria o toque, a leve pressão, o acolhimento. Ela recostaria a cabeça no meu peito, e seus cabelos perfumados me provariam que o abraço não seria mera alucinação. Porém, quando eu me afastasse, olharia covardemente para baixo, para que algo ficasse incompleto, e justificasse nossa retomada no dia seguinte, assim como no próximo, e também no posterior, até que nosso encontro acabasse por se tornar um ritual diário. Eu nunca entenderia por que ela se virava de costas para abotoar a blusa, mas quando ela se voltasse para mim, eu captaria a mensagem silenciosa no seu olhar, intimando-me a sair antes dela, para evitar suspeitas. Porém, depois de voltarmos a nossas mesas, ela permaneceria tão discreta e dissimulada que eu me sentiria torturado, e quase desejaria revelar nosso segredo.

A partir desse dia, acho que uma pequena confusão se instalaria na minha vida: eu tocaria os seios da minha mulher pensando nos da outra; e os seios da outra, pensando nos da minha mulher. Esse intercâmbio teria a vantagem de instalar uma familiaridade reconfortante no ritual do escritório, ao passo que temperaria com certa ousadia o ritual doméstico. Seria como se eu vivesse cada encontro duas vezes, e meu prazer dobraria de intensidade, sem que cada uma das mulheres precisasse repetir um único dos seus gestos.

Para que nada perturbasse minha felicidade, eu me privaria de filhos, porque sei que eles atentam gravemente contra o contorno e a consistência dos seios maternos. E, se algum dia eu encontrasse aquele amigo, aposto que ele me cobriria de perguntas indiscretas. Mas eu não diria uma única palavra sobre meus rituais secretos; sei que ele é o tipo de homem que não sabe distinguir entre um sonho e uma obsessão. Mas eu sei muito bem; e sei que elas também saberão. Elas serão compreensivas, compassivas, silenciosas, e terão seios lindos. Definitivamente lindos.



domingo, 14 de agosto de 2011

O melhor, o pior e o médio




A mulher quis uma mesa no segundo andar porque achou que estaria mais calmo. Na verdade estava mais agitado. No verão, todos preferiam o segundo andar porque as sacadas deixavam o ambiente mais fresco. Para o homem não fazia diferença, desde que o lugar não tivesse televisão. Não gostava de comer ao som das notícias trágicas de um telejornal, ou dos diálogos vulgares de uma novela.

Assim que se acomodaram, o garçom se aproximou e lhes entregou o cardápio. O homem quase não acreditou no que lia. Mostrou à esposa, que também ficou intrigada. Mas, quando perguntaram ao garçom, ele confirmou o que ambos haviam lido. Explicou que a casa tinha mudado de dono, e o menu fora renovando recentemente.
— É até meio cômico — disse o homem, um pouco desconsertado. Depois se voltou para a mulher, com uma cara interrogativa, como se perguntasse: “E agora, o que pediremos?” Ela suspirou, e leu o menu novamente. Na seção de pratos havia apenas três opções:

1. O Melhor
2. O Médio
3. O Pior
Logo abaixo vinha a sugestão do chef: “O Melhor”.

Sem pensar muito, a mulher levantou os olhos e respondeu:
— Vamos pedir o Médio.
O marido, ainda indeciso, fez uma pequena objeção.
— Você não prefere experimentar o Melhor?
— Amor, não vamos arriscar. A casa mudou de dono, não sabemos como está a cozinha. Vamos pedir o Médio, outro dia pedimos o Melhor.

O homem acabou por concordar. Pediram um Médio para dois.

Na mesa ao lado, outro casal acabava de se acomodar. Agora era a mulher que estranhava o cardápio, e o mostrava ao marido, indagando se não seria algum tipo de brincadeira. O homem também estranhou, e perguntou se ela queria tentar outro restaurante. A mulher alegou que isso já seria exagero. Não queria passar pela vergonha de se levantar e sair da mesa, diante de todos. Por fim, conformou-se à situação, e disse ao marido para pedir o Médio. Erguendo o cardápio, ele expressou uma ligeira contrariedade:
— Amor, o Pior está com um preço razoável. Hoje não é nenhuma comemoração, por que não pedimos o Pior?
— Querido, você está falando sério? — Ela se sentia mal em ter de explicar algo tão óbvio.
— Se fosse para pedir o Pior, eu ficava em casa e esquentava o almoço. Se saímos de casa, vamos pedir pelo menos o Médio.

O marido concordou. Não era todo dia que comiam fora.

E todos iam chegando e encontrando algum motivo para pedir o Médio. Não queriam o Pior, mas, por alguma razão, não se sentiam dignos do Melhor. Não era tanto pelo preço, era a audácia daquele nome, que para alguns soava exagerado, para outros, até repulsivo. O Médio sempre acabava parecendo a melhor opção.

Mas um homem que chegou mais tarde, também acompanhado, pareceu não se importar com esse protocolo. Depois de manusear rapidamente o cardápio, pediu o Melhor. O garçom, acostumado a ouvir outra coisa, não compreendeu de imediato. Reclinou-se ligeiramente e perguntou:
— Como disse, senhor?
O homem repetiu claramente — O Melhor, por favor — e como falasse um pouco mais alto, foi ouvido nas mesas mais próximas.

O garçom anotou o pedido vagarosamente, depois acrescentou num tom ligeiramente teatral: — Perfeitamente, senhor. Temos o Melhor — como se quisesse se fazer ouvir também nas outras mesas. Em seguida se voltou para a mulher, e perguntou delicadamente:
— E para a senhora?

Ela sorriu, quase não logrando controlar o nervosismo. Olhava para seu companheiro, tentando lhe transmitir a dificuldade que enfrentava. O homem, parecendo não perceber o problema, perguntou com naturalidade:
— Você não vai querer o Melhor?

Visivelmente constrangida, a mulher não sabia o que responder. Queria recusar o Melhor, mas não diante do garçom. Seu desespero aumentou quando percebeu que as pessoas das mesas mais próximas estavam atentas ao que dizia. Seus olhares oblíquos pareciam ansiar que ela pedisse o Médio, e desse fim àquela hesitação.
— Vou querer o Médio! — ela disse bruscamente, olhando severa para o parceiro. Depois, como se precisasse se justificar, acrescentou: — Não estou com apetite para o Melhor. Talvez outro dia.

O garçom, mais aliviado, despediu-se com tranqüilidade — Pois não, senhora. O Médio, perfeitamente — e se dirigiu à cozinha.

A mulher ficou olhando de soslaio para o homem, como se tentasse lhe transmitir que ele cometera uma grave indelicadeza. Pedira o Melhor para si, e a deixara a cargo do Médio. Isso não era justo com ela, que procurava fazer de tudo para lhe agradar. Tinha certeza que devia repreendê-lo, para que o erro não se repetisse, mas não sabia como abordar o assunto.

Enquanto ela pensava, certa ansiedade aumentava nas pessoas em redor. Todos estavam um tanto indignados com o atrevimento daquele homem, mas não sabiam exatamente o que comentar. Pressentiam que não seriam justos se o criticassem apenas por ter pedido o Melhor. Afinal, era um prato previsto no cardápio.

De repente os olhos da mulher faiscaram de júbilo, pois ela encontrou finalmente uma saída. Dirigindo-se ao parceiro, com o nariz ligeiramente erguido, começou o ataque.
— Não precisava ter falado tão alto. As pessoas ouviram.
— Não falei “tão” alto. Falei apenas um pouco mais alto. O garçom não estava me entendendo.
— Você sabe que falou mais alto. Não precisava disso. Você quer mostrar a todos que prefere o Melhor?

O homem percebeu que havia alguma coisa errada.
— Do que você está falando? Não quero mostrar nada a ninguém.
— É mesmo? Pelo tom que você usou, me pareceu outra coisa.
Ele se calou por um instante, e olhou atentamente para a parceira. Não eram casados. Havia pouco tempo que estavam saindo. Começou a pensar que talvez não fosse a mulher certa para ele.

Nas outras mesas, o homem ia se tornando o assunto principal. As mulheres o censuravam gravemente, pois não achavam de bom tom pedir o Melhor, muito menos daquela forma, fazendo que todos ouvissem. Os homens concordavam prontamente com suas esposas — sim, ele cometera uma indelicadeza, sem dúvida — mas alguns pensavam intimamente em voltar sozinhos ao restaurante, justamente para experimentar o Melhor. Não cometeriam o erro de o pedir explicitamente, apenas o indicariam com o dedo, e o garçom compreenderia a necessidade de discrição. Ficaram felizes por pensar numa solução tão engenhosa. Eram, sem dúvida, homens de uma astúcia fora do comum, e agora acreditavam realmente merecer o Melhor. E quanto mais se satisfaziam com essa conclusão, mais concordavam com suas mulheres: — Sim, que homem indelicado, o Médio basta para qualquer um...

Na cozinha se passava uma inquietação ainda maior. O gerente estava sabendo do acontecido, e fora se certificar com o cozinheiro. Estava tenso e um pouco angustiado, não sabia exatamente como se expressar.
— Então, um cliente pediu o Melhor, não foi?
— Sim, já estou sabendo — disse o cozinheiro, tranquilamente.
— Você sabe como fazer?
— Sei, sim. Fiz esse prato muitas vezes no curso de gastronomia.

O gerente não se sentiu muito bem com essa resposta. Achou que o homem não precisava fazer lembrar que havia feito um curso superior.
— Olha, eu sei que você tem um diploma, não precisa falar disso o tempo todo.
— Não estou falando disso, apenas respondi sua pergunta.
— Você está me entendendo errado — o gerente resolveu usar de sua grande complacência. — Não estou questionando sua capacidade. Apenas achei que... bem, como o prato não é muito pedido, talvez você não lembrasse como fazer.
— Obrigado pela consideração, mas sei como fazer. Não se preocupe.
O cozinheiro agia com tranqüilidade, e já tinha começado a preparar o prato. O gerente ficou perambulando pela cozinha, fingiu verificar os ingredientes, abriu o armário, arrumou alguma coisa no escorredor, depois se voltou abruptamente para o colega, e desabafou:
— Olha, se você quiser, podemos dizer que hoje não temos o Melhor. Podemos inventar que falta algum ingrediente, sei lá. Não precisa se matar para fazer o Melhor. Sei como seu trabalho é duro, não vá se esgoelar para satisfazer um almofadinha.

O cozinheiro não entendeu bem a razão daquela proposta. Mas, de fato, o Melhor dava mais trabalho, e, se o próprio gerente estava dizendo que não precisava fazê-lo, talvez ele devesse desistir. Ficou algum tempo pensando nessa possibilidade, mas também especulou que aquilo podia ser um teste de confiança. Talvez o gerente quisesse medir o quanto ele estava disposto a se dedicar ao trabalho. Depois de hesitar alguns segundos, ele falou, ainda desconfiado: — De fato, acho que não temos alcachofras.

Mas calhou que o gerente tinha acabado de ver as alcachofras no armário e, por reflexo, respondeu: — Elas estão ali!

Houve um breve constrangimento. Nenhum deles sabia o que dizer, até que o gerente abriu um largo sorriso, e anunciou: — Já sei! Vamos dizer que estamos apenas com um estagiário na cozinha, e ele ainda não sabe fazer o Melhor.

O cozinheiro a princípio concordou, mas de repente percebeu que a idéia não lhe era favorável. Se alguém descobrisse a farsa, a culpa recairia toda sobre ele, pois aquela justificativa não comprometia em nada os outros empregados. De súbito segurou seu superior pelo braço, e lhe pediu que esperasse. O gerente o olhou com enorme reprovação. Sem saber o que fazer, o cozinheiro despistou, cabisbaixo: — Diga... diga apenas que vai demorar. O Melhor demora mais para fazer, não é tão fácil quanto o Médio.

O homem aprumou o paletó, olhou com certo desprezo para o cozinheiro e concordou com um aceno de cabeça. Subiu as escadas para dar a notícia ao cliente. Quando chegou à mesa, notou que a mulher não estava. Obviamente não fez comentário sobre isso, apenas justificou a demora do prato. O cliente pareceu não se importar, e aproveitou para pedir um aperitivo. 


Enquanto isso sua parceira tinha ido ao banheiro e fazia uma ligação pelo celular. Ela ainda não tinha formado uma idéia precisa sobre o que estava acontecendo, e sentiu a necessidade urgente de consultar uma amiga. Do outro lado da linha, uma voz atendeu sonolenta. A mulher explicou demoradamente a situação. Descreveu em detalhes o restaurante e o homem com quem estava, depois finalmente tomou coragem para contar o momento mais humilhante.
— Aí ele fechou o cardápio, pediu o Melhor para ele e o Médio para mim! Fez isso com a maior naturalidade, como se eu simplesmente não merecesse o Melhor!
— Não é possível! Você está falando sério, querida?
— Nunca falei tão sério, amiga! Dá para acreditar? Eu, que já tolerei oito anos de casada, nunca pensei que voltaria a passar por essas coisas!
— Mas ele pediu mesmo o Melhor para ele e o Médio para você? Assim, sem mais nem menos?
— Ai, amiga, o pior não foi isso! O pior é que ele falou em voz alta, praticamente gritou: 'O Melhor para mim, e o Médio para ela!' Não acreditei! Até agora não acredito. Por que isso está acontecendo logo comigo?!
— Olha, querida, você vai me desculpar, mas sabe o que está parecendo?
— Ai, pode falar, amiga. A essa altura, já posso ouvir qualquer coisa. Pode ser totalmente sincera, estou preparada.
— Eu ia dizer que está até parecendo que ele é... é... você sabe: um arrogante! Eu não queria falar, mas você mesma disse para eu ser sincera.
— O quê!? Ah, meu Deus! Eu estava suspeitando, amiga, mas não queria ir tão longe. Você acha mesmo?
— Sem dúvida! Qualquer homem deixaria você escolher. Ele não apenas pediu o Melhor para ele, mas ainda fez questão de decidir por você! Isso é sério, acho que você sabe perfeitamente que isso é arrogância.
— Sei, amiga, claro que sei! Ah, meu Deus, o que eu vou fazer?! Olha, acho que essa é a última noite que saímos juntos. Ele me parecia um cara tão legal, tão educado... mas agora, isso?! Não sei se posso tolerar.
— Eu entendo, querida, eu entendo. Já passei por situações parecidas. Olha, não quero te desanimar, mas homens assim querem ser tratados como reis. Não têm humildade nenhuma, sentem-se como se o mundo lhes pertencesse. Deus me livre! Se eu fosse você, pelo menos dava um tempo.

Agora ela estava arrependida. Queria desabafar com alguém, mas não pretendia ir tão longe. Sabia que o homem era gentil e não passara dos limites outras vezes. Seria precipitado terminar com ele.
— Pois é, amiga. Vou pensar. Realmente, já fui casada por oito anos. Não quero ter que agüentar outro capitão, ha, ha, ha! — Ela riu, tentando suavizar as acusações que acabava de fazer.

A amiga concordou sem acréscimos, e deu a entender que precisava se deitar por causa de um compromisso no dia seguinte. Na verdade não tinha compromisso nenhum, apenas ficara desapontada ao perceber, pelo tom da mulher, que nada iria acontecer. No máximo em dois dias ela já teria esquecido aquela noite.

E, de fato, ela a teria esquecido em dois minutos, não fossem os olhares atentos dos garçons quando ela voltava para o segundo andar. A mulher sentiu que eles a examinavam meticulosamente, e no íntimo deviam estar pensando que o homem que pedira o Melhor não fora tão exigente na hora de escolher uma namorada. Um dos empregados não se contentou em apenas considerar essa idéia, mas sentiu que um pensamento tão sagaz precisava ser comunicado a alguém. Correu para a cozinha e foi logo dizendo ao cozinheiro:
— Sabe esse homem que pediu o melhor?
— Sim.
— A mulher que está com ele nem é assim tão bonita...
— É mesmo?
— Parece que ele não quis o melhor na hora de escolher a mulher! Ha, ha, ha!
— Hum... sei, sei como é.
— E tem mais! Ele nem está bem vestido. Eu conheço aquela camisa de uma loja de departamento. Não é cara. Eu poderia comprar uma, se quisesse. Não compro, você sabe por quê.
— Por quê?
— Ora, como assim, por quê? Você sabe perfeitamente. Não quero ficar esbanjando por aí. Eu tenho bom senso!
— Ah, sim, foi o que pensei.

O garçom viu que não estava fazendo muito sucesso, e ficou um pouco envergonhado. Mas não queria sair dali sem falar no que realmente lhe importava. Aproximou-se do cozinheiro, tocou de leve seu ombro, e disse com gravidade:
— Olha, você não vai fazer o Melhor, vai? O gerente mesmo disse que não precisa se esforçar. Basta fazer o Médio, e pôr umas alcaparras assim por cima. Pronto! O homem não vai notar a diferença, pode ficar despreocupado. E veja bem: não sou eu quem está dizendo, o próprio gerente falou isso, pode confiar.

O cozinheiro não suportava mais a situação.
— Tudo bem, tudo bem! Não vou fazer o Melhor, vou fazer o Médio e coloco umas alcaparras por cima, está bem assim? Umas alcaparras e pronto! Afinal, ninguém vai perceber...
— Eu sabia, eu sabia! Você é dos nossos, sabia que você não iria nos decepcionar. — Sua alegria era sincera. — Vou dar uma subida, ver se alguém está querendo alguma coisa. Já volto para buscar o Médio com alcaparras. Vou falar com o gerente, tenho certeza que ele vai adorar a notícia.

E depois, com tapinhas nas costas, acrescentou: — Eu sabia, meu jovem. Sabia que podíamos contar com você.

O garçom deixou a cozinha, e o jovem se viu finalmente sozinho. Respirou, deixou cair os ombros, sentiu-se estranhamente derrotado. Não compreendia a razão de tanto alvoroço, sabia apenas que estava jogando fora sua primeira oportunidade de fazer o Melhor. E com tanta contrariedade, talvez fosse a última. No curso de gastronomia, não o haviam preparado aquela situação: fazer o Melhor não era apenas uma questão técnica; era preciso estar disposto a enfrentar a reprovação de todos. Estava prestes a se valer das alcaparras, e entregar mesmo o Médio como se fosse o Melhor. Mas alguma coisa dentro dele se recusava a acatar aquela decisão. Entre estar de acordo com todos e consigo mesmo às vezes é difícil decidir. Por isso, ainda desorientado, ele abriu a lata de alcachofras, pegou um dos corações, e o colocou sobre um prato vazio. Sem saber direito o que fazia, perguntou:
— E então? Você é uma alcachofra. Você é parte deste problema. O que tem a dizer?
— Feche a porta. Não precisamos de testemunhas — cochichou a alcachofra.

Só então ele notou que a porta que dava para o corredor estava aberta. Não se sentiu louco ou infeliz por poder ouvir uma alcachofra, mas extremamente grato. Era sem dúvida um poder bem interessante para um cozinheiro. Fechou rapidamente a porta, e se voltou, ansioso, para ouvi-la. Quase não acreditou no que ela disse:
— Não me olhe assim. Não espere muita coisa de mim. Você sabe que a decisão é inteiramente sua.

Ele nunca havia conhecido uma alcachofra tão lúcida. Sentiu que era alguém em quem podia confiar.
— Mas e o gerente? Ele não vai me demitir, se eu fizer o Melhor?
— Não exagere. Ele vai demorar no máximo uma semana para esquecer o assunto. Além do mais, você sabe que para ele não faz diferença, desde que o cliente pague a conta.
A alcachofra tinha toda a razão, e agora o cozinheiro estava mais seguro que nunca. Ele intuía que, depois que fizesse o Melhor, pisaria na cozinha de forma diferente. Cada vez que abrisse uma lata, cada vez que acendesse o forno, cada vez que cortasse uma verdura e o cheiro fresco lhe excitasse as narinas, ele saberia merecer aquela cozinha, como os lobos merecem a noite e os pássaros merecem a generosidade do vento. Com essa convicção serena, ele foi ao fríser, pegou os cogumelos marinados, baixou o forno e picou o estragão. Antes de completar, voltou-se para a alcachofra, e foi sincero com ela, como ela tinha sido com ele.
— Tomei minha decisão. Vou ter que parti-la em duas.
— Meu amigo, acredite: desde que entrei naquela vidro de óleo de girassol, não tenho esperado por outra coisa.

Ele acenou com a cabeça, ficou contente por ser chamado de amigo naquele momento crucial. Cortou a alcachofra com o coração tranqüilo e feliz. Em poucos minutos, chamou o garçom e anunciou: — O Melhor está pronto.

O empregado, terrivelmente contrariado, não ousou fazer sequer um comentário. Percebeu imediatamente que estava diante de um poder maior e mais estável que o dele próprio. Pegou o Melhor, pegou o Médio, que já estava pronto, e os levou ao segundo andar. Passou o resto da noite em silêncio. Mesmo que quisesse dizer alguma coisa, não saberia se expressar.

No andar de cima, o cliente chegou a fechar os olhos ao mastigar. Estava surpreso. Quando pedira o Melhor, ele mesmo não acreditava que experimentaria algo tão delicioso. A mulher mastigava com raiva o seu Médio e, vendo o prazer do parceiro, não hesitou em interrompê-lo. — Não vai me dar uma provinha?

O homem era generoso e compôs uma garfada para a mulher. Depois de mastigar rapidamente, ela declarou: 
— Amor, é quase igual ao Médio.


Ele provou o Médio e objetou: — Não tem comparação, é muito diferente.
Ela fez questão de enfatizar: — É praticamente igual!

Vendo que não havia solução, o homem fingiu concordar, enquanto intimamente decidia terminar com aquela mulher. Não havia afinidade entre os dois, e ele intuía que isso não ia resultar num casamento feliz. No mesmo momento a mulher pensava que não lamentaria se aquele homem deixasse de procurá-la. Ele parecia realmente acreditar na diferença entre o melhor e o médio, e isso não podia ser um bom sinal. Não contaram esses pensamentos um ao outro, mas foi de fato a última vez que se viram.

Na cozinha, o jovem chef nem imaginava a separação que tinha causado. Mas estava mais seguro que nunca de saber a diferença entre o melhor e o médio. Uma diferença que agora estaria inscrita na sua própria história de vida, para sempre.