domingo, 15 de fevereiro de 2009

Os falsários

O falsário era poeta — e dos bons, como lhe diziam —, só que falso. Seus amigos, no entanto, não o distinguiam de um poeta veraz, e graças a isso ele pôde conquistar um pequeno círculo de admiradores. Nas festas, em que só comparecia sob súplicas, todos louvavam a verve que produzia alternadamente versos melancólicos e frases originais. Também dominava razoavelmente alguns idiomas estrangeiros e fazia citações curtas de Nietzsche, Sartre ou qualquer outro galhardo, impressionando os convivas com sua cultura filosófica forjada. É certo que não o fazia por mal. Era um fruto das circunstâncias e conquistara seu posto inadvertidamente, por vias que ele próprio desconhecia. E como não era estúpido, tratou de encarnar um personagem sutil e distante, de forma que sua popularidade, não remitindo nem crescendo, permitisse-lhe apenas o suficiente para gostar de si mesmo.

Nos domingos à tarde, quando não havia nada de bom na TV, sentava-se ao computador para fazer o que convencionara chamar de compor: reunir palavras aleatoriamente, empilhando frases confusas numa seqüência desconexa. Quando a desordem não era por si só convincente, lançava mão de seu repertório de frases niilistas (embora não soubesse exatamente o que era niilismo) e apologias do suicídio. Seus amigos, que também fingiam querer suicidar-se, receberiam a massa confusa de palavras por correspondência eletrônica, e, depois de invocarem termos retóricos, como nonsense e surrealismo, taxá-la-iam de autêntico poema pós-moderno. E, de fato, era assim que o Poeta Falsário existia.

Sucedeu que uma noite, numa dessas festas de semi-drogados, conheceu aquela que lhe pareceu a mulher dos seus sonhos. A moça cantava, profissionalmente, como fez questão de dizer. O Poeta Falsário, que se tornara, meio que acidentalmente, um mestre da simulação, reconheceu imediatamente a falsidade dos vibratos da moça; a Cantora Falsária, ainda que nova no ramo, não teve dificuldade em adivinhar o embuste por trás do poeta: foi amor à primeira vista.

Algumas trepadas depois, sentiram a ânsia da sinceridade, tão comum nos amantes. A confissão foi mútua e previsível, "Sou uma fraude", e antecedeu juras de discrição. Com a malícia que haviam adquirido e a cumplicidade dos que se amam, não foi difícil manterem-se em suas respectivas posições fraudulentas. E, com efeito, foi o que se deu com o resto de suas vidas: foram falsos; e verdadeiramente felizes.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Terapias

Mamãe nunca me perdoou por não ser famoso. Claro que ela nunca o disse — nunca a ouvi falar dos seus sentimentos, a não ser de forma indireta e muito vaga —, mas eu percebia uma recriminação profunda e camuflada nos comentários que ela fazia aos meus livros, nas pequenas críticas que lançava ao meu casamento e, sobretudo, na forma constante e exagerada com que louvava meu irmão. Ele sim, tinha uma mulher honesta, uma casa formidável e uma linda, lindíssima profissão: era médico; diminuía o sofrimento alheio, enquanto eu me ocupava do expediente menor de descrevê-lo. “Livros? Falar da vida dos outros, falar da vida de gente que nem sequer existe? Sinceramente, não entendo como alguém pode viver disso.” Era como ela encarava a literatura, não via beleza alguma numa estória bem contada, em personagens bem construídos, quase reais, quase vivos.

Se ao menos eu fosse famoso, se meu nome aparecesse em jornais e minha imagem figurasse por alguns minutos na TV, ela certamente me perdoaria, porque teria como exaltar meu trabalho para as amigas e os parentes. Mas meus livros vendem pouco e eu sobrevivo de artigos e oficinas literárias que ministro a jovens aspirantes à minha profissão. Claro que eu guardo, lá no fundo, o desejo de ser famoso, de dar entrevistas, de ver, talvez, uma das minhas estórias adaptadas para o cinema, ganhando cor e movimento numa tela enorme diante de mim e dos meus filhos. “Sabe quem fez esse filme, Daniel? Foi o papai. Tudo isso estava na cabeça do papai antes de ir para o cinema.” Isso certamente me daria orgulho, seria uma espécie de compensação pela vida modesta que minha profissão me obriga a levar. Mas o que mamãe não entende é que isso não é fundamental, no fundo não tem a menor importância.

Escolhi essa carreira porque sempre adorei inventar estórias, sempre me entretive muito mais com minha própria imaginação que com a realidade. Esta me parecia tediosa, repetitiva, previsível... Vá a uma festa e você já viu todas as festas. Vá a um encontro anual de família e você já viu todos os encontros de família, já é capaz de prever o que cada parente dirá, quais serão suas posições políticas, seus desafetos, seus arrependimentos. Se ouvir com atenção descobrirá até aqueles sonhos não realizados, que, soterrados no porão da mente, vão provocando úlceras e reumatismos, e pagando as mensalidades de falaciosos planos de saúde. Uma chatice, enfim. Mas, felizmente, na minha cabeça, posso recriar as pessoas, acrescentar-lhes detalhes interessantes, torná-las menos covardes, mais heróicas, mais humanas. Não me importa que essas estórias agradem a multidões ou apenas ao meu pequeno círculo de amigos, o que importa é que minha própria vida depende delas. Desde cedo percebi que não conseguiria viver em sociedade sem a possibilidade de recriá-la, para melhor ou pior, segundo meu humor, nas minhas horas de lazer e solidão. Mamãe, por exemplo: apesar de suas recriminações, sou o filho que mais a ama, que melhor a suporta, exatamente porque depois posso descrevê-la nalguma estória, exagerando sua rabugice ao ponto do ridículo.

Marcos, infelizmente, não teve essa chance. Era mais carente, sempre dependeu da aprovação da mamãe, sempre achou que ela estava certa em tudo, e por isso cedeu tão cegamente ao impulso de satisfazê-la. Agora que ele se foi, lembro com infinita tristeza do seu amor pela música, do brilho nos seus olhos quando ele falava das canções brasileiras, explicando porque eram superiores às estrangeiras em harmonia e ritmo. Eu não discutia. Sou de uma geração que cresceu ouvindo roque, e continuo incapaz de perceber a diferença entre a bossa nova e o samba canção. Mas meu irmão trazia essa habilidade no sangue, reconhecia uma música pelos primeiros acordes, às vezes tirava de ouvido uma canção tendo ouvido apenas sua primeira metade. “O resto se advinha”, dizia sorrindo, com aquele misto de soberba e autoconfiança que caracteriza o vigor juvenil.

Ah, como eu o invejava nessa época! Sua alegria, sua generosidade em lidar com a vida e as pessoas contrastava francamente com minha tendência à melancolia e ao isolamento. Trancado no meu quarto eu escrevia estórias de músicos metidos que faziam um sucesso vertiginoso e, em seguida, despencavam fatidicamente num buraco de decadência e vício. Li algumas biografias para dar a essas estórias detalhes sórdidos e verossímeis, mas notei, espantado, que aqueles que tinham essa trajetória eram justamente os roqueiros, que meu irmão tanto desprezava. Por obra divina, ou irônico destino, os compositores fiéis aos ritmos nacionais tinham uma carreira sólida e serena, envelhecendo com dignidade, enquanto entre os roqueiros era comum a morte prematura de overdose ou AIDS. Até nisso meu irmão tinha acertado, e — o mais importante — de forma espontânea e natural, sem a intervenção moralista de ninguém. Resignei-me a aceitar sua vocação para o bem. Meu rancor e minha inveja nada poderiam contra ele.

Mas, se eu não tinha o seu talento para as relações sociais, também não tinha do que me envergonhar. Fechado no meu quarto eu me esmerava no que seria a minha verdadeira vocação: imaginar e escrever estórias. Depois de largar muitas pela metade, finalmente terminei uma, e fui correndo mostrar a Marcos. Era apenas um pastiche da biografia de um grande músico dos anos 60: o personagem principal, depois de um estrondoso sucesso na juventude, se desespera ao ver novos talentos ocupando seu lugar. Seu agente gasta todo seu dinheiro comprando espaços na televisão e, por fim, viciado em drogas e abandonado pela namorada (cansada das suas infidelidades) ele resolve se matar. Claro que, na época, eu não sabia o quanto o enredo era ruim, e sentia um orgulho bobo de criança que faz uma farra.
— E então, Marcos? Gostou? Gostou do final?
— É... gostei. Acho que você tem razão.
— Como assim, razão? Não tem razão nenhuma, Marcos. É apenas uma estória.
— Não, André. Sei o que você quer dizer, e mamãe também pensa assim. A carreira de músico não vale a pena.
— O que é isso Marcos?!? — Arrependi-me imediatamente de ter escrito a estória. Eu sabia que a coisa que ele mais amava era a música. — Não é assim não, rapaz. Eu andei lendo muitas biografias, você sabia que os compositores brasileiros...
— Não quero saber, André. Mamãe já conversou comigo e acho que ela está certa. Música é coisa para as horas vagas. Um homem tem de ganhar a vida.
Era inútil argumentar. Ele tinha uma invejável força de caráter, uma vez que decidisse uma coisa ninguém o fazia voltar atrás. Infelizmente, o que ele não sabia era que estava usando essa força contra si mesmo...

Veio o vestibular e Marcos se inscreveu em medicina. Ainda fiz uma última tentativa, inventando que conhecia um rapaz que cursava a faculdade de música e estava felicíssimo. “Não ficará feliz quando estiver sem grana”, ele respondeu rancoroso.

Mamãe, no entanto, estava saltitante. Contava às amigas que teria um médico na família, chamava Marcos de doutor, repetia incessantemente o quanto os médicos eram sérios e elegantes. Só não se mostrava contente quando vinha falar comigo:
— Mas você quer mesmo ser professor?
— Não, mãe. Quero ser escritor, por isso vou fazer Letras.
— Por que você não faz direito, meu filho? Tem tanto escritor que fez direito...
— Não quero ser advogado, mãe. — Deus sabe que ela é impossível.




Os anos seguintes não merecem ser narrados. Marcos não teve dificuldade para passar em medicina e foi estudar noutra cidade. Eu, para desgosto de mamãe, ainda tomei bomba duas vezes antes de passar. Não entendia por que diabos alguém que ia fazer Letras tinha de ficar tanto tempo estudando química e biologia. Eu gostava dos animais, gostava de lhes acariciar, de ver seu belo pêlo exposto ao sol, mas não tinha a menor vontade de saber como eles eram por dentro! E os insetos, então? Por Deus, pode-se fazer algo mais pelos insetos senão matá-los? Por que temos de saber como são seus estômagos e corações? Para que estudar como os pequenos diabos se reproduzem?

Claro que havia quem gostasse daquilo. Tive uma amiga que sabia de cor as variações dos aparelhos digestivos dos lepidópteros. Mas eu me divertia mesmo era escrevendo estórias de professores de biologia que sofriam estranhas mutações e acabavam por se transformar em vermes. Eles mereciam.

Finalmente consegui passar, mas não terminei a faculdade. Achava uma chatice toda aquela estória de socio-lingüístia e semi-óptica. Percebi muito cedo que aquilo não levava a nada e comecei a estudar, por minha própria conta, lógica simbólica, retórica e hermenêutica. Eu procurava ler o que tinham lido meus ídolos e com isso fiz meu próprio programa de estudos. Fui me afastando mais e mais dos meus professores e colegas, até que a faculdade se tornou completamente inútil. Quando arrumei um emprego de tradutor, pude abandoná-la sem culpa. Mamãe fez o escândalo que eu já esperava, mas acho que no fundo não se decepcionou tanto. Marcos já a havia brindado com a pompa de uma formatura e seus rituais. Lembro-me de sua sincera alegria ao escolher os convidados, comunicar aos parentes, providenciar pequenas notas nas melhores colunas sociais. “Com quem você vai dançar a valsa, meu filho? Um rapaz tão bonito, com um futuro tão promissor, deve estar cheio de pretendentes...”

E de fato estava. Marcos nunca teve dificuldade com as mulheres. Mais ou menos nessa época ele começou a ficar com Lívia, que viria a ser sua esposa. Mamãe gostava muito da moça, elogiava sua humildade, e encorajava Marcos ao noivado. “Hoje há tantas moças desencaminhadas... Marcos não é bobo, escolheu uma moça decente, educada... Ele tem muito bom gosto.”

Nessa época ele já estava se tornando o homem frio e distante que seria pelo resto da vida. Na pequena festa que mamãe promoveu, por ocasião do seu noivado, recordei-lhe o tempo em que nos apaixonávamos pela mesma mulher. Era sempre a mais gostosa da turma, a mais difícil, justamente aquela que parecia fazer questão de nos desprezar. Lívia era a antípoda de uma mulher assim: quase não falava, espalhava sorrizinhos formais por onde passava, era meio apática. Num ato heróico cheguei a lhe perguntar se ele realmente a amava. “Você e suas poesias”, ele respondeu num tom distante e emperdigado, como se fosse um sábio estóico e eu, um boêmio incorrigível.

Essas pequenas tiradas chegaram a me chatear. Cheguei a duvidar de mim mesmo, a pensar que talvez eu tivesse tomado o caminho errado. Logo cedo Marcos já fazia sucesso enquanto eu me matava de trabalhar para sobreviver. Nos fins de semana eu me debruçava sobre minhas estórias, com enredos cada vez mais complexos, cada fez mais difíceis de chagar a termo, e ele sempre tinha um churrasco ou um jantar importante a que comparecer. Perguntei-me se não teria sido melhor escolher uma profissão mais bem remunerada, em vez de me matar escrevendo estórias que nem eu mesmo conseguia terminar. Debruçado sobre o computador, eu relia cada página pensando em apagá-la. Suspeitava do meu talento, temia que eu fosse simplesmente uma fraude.

E justamente quando essa enxurrada de dúvidas ameaçava paralisar meu trabalho, eu conheci Helena. A hora não podia ser pior. Eu estava inseguro e isso aumentava dez vezes minha timidez. Observando-a de longe, eu me perguntava por que diabos ela me atría tanto. Seria o jeito displicente de pegar o cigarro? Os cabelos pintados de vermelho? O modo levemente desastrado de andar de salto, como se fosse uma puta tentando parecer sofisticada? Ou algum outro detalhe que mamãe abominaria? Não consegui descobrir. Tudo que sei é que foi ela quem inspirou minha primeira estória de amor, seguramente a mais barata que alguém já escreveu. Um jovem tímido se apaixona por uma prostituta, que tinha enveredado pela profissão por conta de uma decepção com os homens. Preciso contar o final? Depois das complicações de praxe, ele vence a timidez, ela vence o medo de um novo relacionamento, e os dois terminam na lua de mel dos sonhos de qualquer favelado. Era uma estória tão pouco original que duas editoras a disputaram. Foi minha primeira publicação e só com essa injeção na minha autoestima tive coragem para cantar Helena. O livro e a recente imagem de jovem talento fizeram o resto: noivamos.

Fiquei tão feliz quanto mamãe estava decepcionada. Eu cometera o erro imperdoável de publicar um livro quase pornográfico, um livro que ela nunca poderia ostentar às amigas como prova do talento especial do filho. E acho que sua apreensão era tanto maior quando ela farejava algumas semelhanças entre Helena e a personagem principal.
— Meu filho, estou falando dessa personagem que você criou. Tem tantos detalhes, parece viva... Parece de verdade. Você se inspirou em alguma conhecida?
— Mãe, Helena não é uma prostituta se é o que você quer saber.
— Ah, filho, o que você pensa de mim!

Marcos também não simpatizou com Helena. Num dos nossos encontros de família ele chamou discretamente minha atenção:
— Tem certeza do que está fazendo?
— É claro, Marcos. O amor é a única certeza que a gente tem, não é?
— Meu irmão, você não muda.

É... parece que eu não mudava mesmo, e agora isso estava começando a me agradar. Marcos, ao contrário, deixara de ser o jovem simpático e elegante e começava a ficar um pouco ranzinza. Criticava cada vez mais os outros, eximia-se das pequenas farras que promovíamos em família, censurava-me por bobagens. Chegou a dizer que eu devia “escrever alguma coisa decente para variar”. Quando lhe perguntei o que era uma “coisa decente”, ele citou livros que não passavam de pretensiosos monumentos à solidão. Pobre Marcos, preferia a infelicidade erudita à alegria singela da simplicidade. Quem diria que aquele rapaz alegre, que adorava Jorge Benjor, se tornaria esse homem sisudo e triste? Eu precisava fazer alguma coisa para ajudá-lo, e, como sempre, achei que a melhor forma seria escrever.

Debrucei-me ante o computador e comecei o que seria meu segundo livro publicado. Às portas da maturidade, um homem, que tem tudo para ser um poço de contentamento, descobre-se frustrado. Cai numa obscura crise depressiva e, depois de um sofrido auto-exame, percebe que a enorme necessidade de aprovação social o fizera trair sua vocação e casar-se por comodidade. Foi difícil dar a essa estória um final feliz, porque eu mesmo não sabia como o personagem poderia resolver o problema. Mas, aos poucos, a própria narrativa foi mostrando o desenlace que desejava. O protagonista recomeça, timidamente, o contato com sua vocação, até que abandona a profissão mal escolhida para se dedicar inteiramente ao que realmente o realiza. Claro que não deixei isso barato. Para fazer essa escolha, ele precisou renunciar a certas vantagens materiais que a profissão lhe dava, mas termina bem consigo mesmo, com uma felicidade serena que diferia bastante do arroubo carnavalesco do meu primeiro livro.

Era o que eu sonhava para Marcos. Estava cansado de ver aquele rosto abatido, aqueles olhos censores. Eu mudara apenas a música para a pintura e, como sempre fazia, acrescentara detalhes para deixar a estória mais interessante. Inventei, por exemplo, o amor por uma mulher mais jovem, uma estudante de arte que reaviva no espírito do protagonista o gosto pela beleza sem utilidade. Combinado com uma esposa doente, esse amor rendeu belas crises de consciência, que enfim terminam na ousada escolha do divórcio. As famílias dos dois amantes os recriminariam até o fim, mas o protagonista, no fundo, teria a certeza tranqüila de ter feito a coisa certa. Nenhuma moralidade, por mais nobre que seja, pode justificar um casamento sem amor.

Enfim, não era um livro que agradaria a todos, e eu sabia disso. As pessoas preferem estórias de vencedores; um homem sofrendo por ter errado, mesmo que termine bem, não é mote para um bestseller. Mas eu precisava ajudar o Marcos, e aquilo era o que eu sabia fazer. Quis dedicar-lhe o livro, mas temi que uma declaração explícita de minhas intenções pudesse antes frustrá-las que levá-las a êxito. Terminei publicando-o sem dedicatória e fiz apenas um prefácio falando vagamente que muitas crises de meia idade têm raiz no abandono da vocação.

Fiquei muito chateado com o fracasso de vendas, mas me animei muito quando, algum tempo depois, vi o livro fazer seu efeito de remédio espiritual. Marcos me ligou várias vezes para dizer que tinha gostado, até que me confessou, quando nos encontramos pessoalmente, que tinha voltado a tocar. “Não vou ser músico, mas quero tocar nas horas vagas, quero mostrar isso aos meus filhos, você entende?” Claro que eu entendia. Teria preferido que ele abandonasse de vez a medicina, mas eu sabia que essas atitudes mais radicais só cabiam na ficção. Sua transformação era patente e isso me bastava. Por baixo do fracasso de vendas, eu tinha um motivo para me orgulhar do meu trabalho.

E, para a minha surpresa, a mudança de Marcos não parou nas horas vagas. Ele esperou um dos nossos fastidiosos encontros de família para dizer que ia mudar “levemente” de profissão. Ia se especializar em psiquiatria e passar da cura física à espiritual. Estávamos reunidos na casa de mamãe quando sua natureza sociável o obrigou a comunicar a idéia com um pequeno discurso:
— Nesses anos de consultório, percebi que muitas doenças têm causas espirituais. Não basta acertar nos remédios, é preciso descobrir as causas mais profundas, submersas nalgum ponto obscuro da mente, e erradicá-las de vez, para fazer a doença cessar.

O convívio com os médicos tinha envergado seu senso estético natural para a retórica. Eu não gostava daqueles discursos pomposos, mas estava feliz por ele. Nunca poderia imaginar que sua decisão desagradaria tanto à mamãe.
— Mas, meu filho, você não ia se especializar em cirurgia plástica!?

Era terrível ver sua influência nefanda sobre Marcos. Bastou que ele ouvisse essa reprimenda para pôr-se a se desculpar, como se fosse um menino pego numa bagunça.
— Bem, é só uma idéia, mãe... Na verdade... isso está muito recente na minha cabeça, não tenho certeza...





Mamãe me ensinou muitas coisas e algumas eu preferia não ter aprendido. Por exemplo, a eficácia das frases dissimuladas, das meias palavras, da condenação oblíqua, diluída numa conversa educada — muito superior ao efeito de uma conversa normal e franca. Se ela dissesse a verdade, se confessasse que preferia ter um filho cirurgião plástico, porque precisava de mãos habilidosas para lhe retardar o aparecimento das rugas, Marcos teria simplesmente lhe indicado um bom especialista e seguido para o seu recente namoro com a psiquiatria. Mas mamãe sempre preferiu o caminho pegajoso e obscuro do subsolo. Nas semanas seguintes ao discurso de Marcos, ela promoveu mais almoços e jantares do que em muitos anos anteriores. Teve o cuidado de não me convidar, certamente porque percebera a influência do meu livro; e, na minha ausência, pôde pôr todo o seu arsenal de truques em ação. Mais tarde, Lívia e os parentes mais chegados me contariam tudo.

Eles disseram que mamãe se ocupou muito em falar de terapeutas e pacientes de terapia. Contava várias estórias que no fundo eram variantes de um mesmo mito: os terapeutas eram malucos que haviam estudado psicologia ou psiquiatria movidos pelo desejo inconsciente de curarem a si mesmos. E os pacientes, coitados, os pacientes eram pobres vítimas desses malucos, iludidas com a possibilidade de cura. Claro que essa tese não era enunciada assim, de forma sucinta e clara, mas inferida por quem ouvisse os inumeráveis casos que ela se dispunha a narrar, todos de conhecidos seus e aparentemente verídicos. Em contrapartida ela recordava discretamente como os cirurgiões plásticos eram brilhantes magos do bem, amados pela sociedade, que reconhecia sua aptidão para tornar as pessoas mais felizes.

O mais detestável é que a tese não deixa de ter sua dose de verdade. Conheci muitos psiquiatras alcoólatras e depressivos, e tive muitos amigos que saltaram de terapeuta em terapeuta até finalmente admitirem que estavam gastando dinheiro à toa. Mas hoje que sabemos o que aconteceu com Marcos, estou certo de que teria sido muito melhor se mamãe o tivesse deixado em paz. Alguns meses depois do seu longo e paciente trabalho, as novas ambições de meu irmão estavam completamente corroídas. Encontrei-o por acaso num pequeno restaurante do centro, próximo ao meu estúdio. Ele estava pálido, abatido, e tinha voltado às malditas repreensões:
— Quer dizer que você almoça sempre aqui? Por que não come em casa?
— Ora, você sabe, Marcos: a Helena não gosta de cozinhar, e não temos dinheiro para uma empregada.
— Essa Helena... Você tem certeza de que se casou com a mulher certa?

Não respondi. O “santo moralista” tinha baixado outra vez, e o melhor era não dar ouvidos. Mirei meu irmão com alguma pena, rosto desbotado, anéis escuros em torno dos olhos... Acho que tive um mau pressentimento, mas minha índole tímida sempre me leva a calar sobre certas coisas — principalmente entre meus parentes, que me julgam um tanto lunático.

Alguns dias depois eu me arrependeria de ter-me calado. Helena telefonou para o estúdio. Eu estava muito chateado com a alta dos preços dos importados — dos uísques importados — e não conseguia me concentrar no trabalho. Ela pediu que eu fosse para casa e, não fosse seu carinho, eu certamente não teria superado a depressão.

Marcos fez tudo com muita discrição e elegância, como era de sua natureza. Dispensou a secretária, dizendo-se indisposto, e depois que se viu sozinho tomou os comprimidos de Zolpiden. Quando sentiu o sono chegar, injetou-se a megadose de insulina e dormiu sentado numa das belas poltronas de veludo do consultório. Lívia só o descobriu no dia seguinte, quando os policiais arrombaram a porta. Foi ainda em estado de choque que ela entregou o bilhete à mamãe. Apenas duas frases, em caligrafia rebuscada, que devem ter trazido mais dor que a própria perda do filho:


Mamãe, você tinha razão.
Psiquiatras são loucos.






O bilhete foi destruído e eu mesmo só soube dele por meio de Lívia. Mas tenho certeza de que ele está bem vivo na memória de mamãe, numa lembrança alimentada pelo sentimento de culpa. Quando o pequeno tumor apareceu em seu seio, tentei convencê-la a fazer uma psicoterapia, mas, imóvel, com os olhos fixos num horizonte invisível, ela disse apenas: “Psiquiatras são loucos”, e não se falou mais no assunto.

Eu mesmo me pergunto se não tenho minha parcela de culpa. Encontrei recentemente minha primeira estória e percebi que ela é ao mesmo tempo uma anti-ode à carreira de músico e uma sugestão de suicídio. Talvez ela ainda reverberasse na cabeça de Marcos quando ele tomou aqueles malditos comprimidos! Bem, mas eu tenho meu jeito de lidar com a culpa. Já a mamãe... Talvez eu devesse ensiná-la escrever.