terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Uma jovem grudou em mim

 

Eu não gosto de andar com jovens. Eles sempre se descuidam e acabam sendo atingidos. Tenho quarenta e cinco; faz uns vinte anos que essa guerra começou. Nós, os mais velhos, aprendemos pela experiência: sabemos nos esconder atrás dos carros, sabemos contornar um prédio, mesmo com planta irregular, sabemos que não podemos fugir pela escada de incêndio. Sempre tem alguém nos esperando num andar mais baixo, homens às vezes em menor número, porém com maior poder de fogo. Aprendemos a descer pelas laterais, com cabos que um dia foram utilizados para transmitir eletricidade e impulsos telefônicos.

O problema é que uma jovem grudou em mim, uma jovem que deve ter nascido durante a guerra, sobreviveu não sei como. Devia estar acampada num dos alojamentos, nos confins da cidade, onde até os engenheiros aprenderam a plantar mandioca, banana, plantas que nascem em locais mais baixos, perto de rio.

Eu sou do tipo que gosta de andar sozinho. Me aproximo dos alojamentos apenas quando preciso recarregar. Em geral, sei me virar, não fico andando com gente mais lenta e mais fraca que eu. Sou um andarilho. Num mundo perdido, onde qualquer acampamento maior é rapidamente dizimado pelo inimigo, não vale a pena ser outra coisa. Tolerei essa garota, porque ela sabia atirar, sabia se esconder atrás de uma coluna, sabia revezar o fogo comigo. Fui aprendendo a andar mais devagar, a esperar afastado quando ela tinha que parar numa ruína, para fazer as necessidades. 

Trato-a como se fosse uma filha. Deito longe dela quando achamos espaço para dormir. Mas pode ser que ela nem saiba o que é um pai. Não sei o que ela passou antes de chegar até mim. Ela é muito calada. Certamente não tem vocabulário, não sabe dizer o que está sentindo ou pensando. Se é que pensa.

Eu me sinto mal quando temos tempo para conversar. Aos poucos fui descobrindo que ela não sabe que os cabos que usamos para descer eram de telefone, não sabe para que serviam os televisores, não sabe o que é uma chave de automóvel, ou de porta ou de qualquer coisa que se possa trancar. Às vezes eu falo: vamos voltar para o norte, estou ouvindo aquele chiado de drone. No fundo não estou ouvindo nada. Quero apenas continuar andando. Conversar com uma pessoa tão vazia me dá nos nervos.

Um dia mal tínhamos acordado e uma horda se aproximou de nós. Subimos num dos prédios, que é como fazemos para despistá-los. Normalmente, eles sobem pela escada, nós descemos pelas janelas e assim conseguimos escapar. Mas havia drones com eles, e estava difícil chegar nas laterais. Fomos subindo cada vez mais alto. Eu gritava para ela ficar longe das janelas: você está chegando muito perto, vai acabar sendo atingida. Ela voltava para o centro do prédio. Eu às vezes acertava um drone, mas nem sempre eles caíam. Os drones estão ficando cada vez melhores.

A tecnologia das hordas, seja lá de onde vem, é mais avançada que a nossa. Mas eu sempre digo que podemos vencer pela imprevisibilidade. Os robôs agem com base em fórmulas, não conseguem reagir quando somos imprevisíveis. Essa é nossa única chance contra eles. Pensando nisso, chamei a menina e falei: não podemos descer pelas laterais, eles já conhecem essa estratégia. Vamos deixar que eles entrem, e liquidar um por um aqui dentro. Ela assentiu. Paramos de atirar. Depois que todos entraram, começamos um fogo incessante contra eles. Nos escondíamos atrás de balcões de concreto, colunas, pedaços de forro que haviam caído. Fomos aniquilando um a um. Quando tudo ficou mais calmo, ela veio correndo para perto de mim. Eu gritei: não, sua burra. Não se aproxime ainda. Um deles pode estar escondido por aí. Mas não adiantou, ela veio correndo e acabou sendo atingida. Caiu já perto de mim, porém não saí de trás da coluna. Você foi atingida, sua idiota. Eu falei para não vir. Ela se levantou, assustada. Mas não estou sangrando, disse. O drone apareceu, provavelmente para alvejá-la de novo. Com uma rajada incessante consegui derrubá-lo. A garota, enfim, veio para mais perto. Não estou sangrando. Senti apenas um impacto na cabeça, que me desequilibrou, mas acho que não morri. Morrer?, perguntei, surpreso. Do que você está falando? Sei lá, acho que foi um raspão. Raspão? Você é louca mesmo. Os tiros deles não são para nos matar, são para nos fazer esquecer. Ela pasmou. São armas de esquecimento, eu disse. Você provavelmente já não está lembrando quem você é, por que estamos lutando, quem é nosso inimigo. Como assim, ela disse? De repente não pude fazer outra coisa, senão rir. Por essa eu não esperava. Olha, garota, não te disseram no acampamento? As armas deles não são de fogo. São armas de raios quânticos. O objetivo deles não é nos matar, é nos fazer esquecer. Ela ficou muda por um tempo, depois falou: mas eu não estou sentindo nada. Não, você não está sentindo nada, mas provavelmente já está esquecendo tudo. Quem sou eu? Você é um cara que anda sempre comigo. Errado, você é que anda comigo. Um dia eu te salvei de um ataque e você começou a andar comigo. Por que estamos em guerra? Quem são nossos inimigos? Ela respondeu com um olhar já vazio: não sei. Eu disse: a arma deles é o esquecimento, por isso lutamos contra eles. Querem nos fazer esquecer de tudo, depois provavelmente vão nos transformar em escravos. Seremos escravos das máquinas. 

Pelo seu olhar, senti que ela já não me ouvia. Eu preciso descansar, ela disse. Por que subimos nesse prédio? Eu estou tão cansada, não poderíamos ter ficado lá em baixo? Eu pensei: coitada, já deve ter esquecido do combate que acabamos de travar. E o pior é que eu tinha vencido, tinha praticamente vencido. Se ela não saísse da pilastra e não viesse na minha direção. Ela perguntou: onde tem água? Estou com sede. Vamos subir para o último andar, falei. Com sorte encontramos uma caixa d'água intacta. Ela começou a subir. Fiquei atrás dela, na escada. Quando ela passou um andar acima de mim, virei as costas e comecei a descer. Ela certamente vai chegar no último andar, talvez encontre água, mas já terá esquecido que estava comigo.

Estou feliz com isso. Sou um andarilho. Não dá para se apegar a ninguém. Numa guerra como essa, as hordas buscam dissolver acampamentos, mas não dão importância a homens solitários. E, afinal, eu queria mesmo que ela me esquecesse. Houve uma noite em que acabei perdendo o controle. Estava frio, ela deitou ao meu lado, se abraçou em mim. Por algum instinto de fêmea, começou a me tocar, depois disse que estava calor, livrou-se das roupas. Naquele dia não a tratei como filha. Agora eu andava com medo. Tinha medo de ter que viver num alojamento, aprender a carpir a terra, a plantar, a cuidar de filho, fazer ronda contra os drones, que mais cedo ou mais tarde vão nos apagar. Ainda prefiro ser um andarilho. Vivendo sozinho tenho mais chance de sobreviver. Daqui a alguns anos, é provável que eu também a esqueça. 


Ronaldo Brito 


domingo, 25 de setembro de 2022

Livro Lançado



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quarta-feira, 28 de abril de 2021

Revoluções de Marte


Os primeiros homens que chegaram em Marte tinham extrema facilidade para cortar e levantar rocha. Afinal estavam numa gravidade três vezes menor que a da Terra. Tudo para eles era muito mais leve, e suas ferramentas eram bastante eficientes.

Eles fizeram casas enormes, com tetos robustos que os protegiam da radiação solar. Usaram canhões de microondas para descongelar a água e fizeram enormes lagos de água salgada. Desses lagos, destilavam água com bastante facilidade. Não é difícil destilar água onde as temperaturas já são naturalmente elevadas. Nas horas vagas, fizeram imensos auditórios de rocha, porque achavam que os próximos humanos, quando chegassem, contariam histórias de como a humanidade foi para Marte, qual a tecnologia usada, o que aconteceu com a Terra, etc.

Os filhos deles, acostumados desde crianças com a gravidade de Marte, já não conseguiam levantar e cortar grandes massas de rocha. Fizeram casas com a chamada argila marciana, um tipo de solo mais mole e menos denso, que necessitava de aglutinante para ficar de pé. Essas casas eram menores, menos imponentes e menos seguras. Eles não sabiam direito por que tinham nascido em Marte. Lá pelos trinta anos perceberam que nunca seriam grandes e fortes como seus pais. Começaram a ficar revoltados.

Descobriram formas de acessar satélites da Terra, e durante algum tempo a grande novidade foi ver vídeos de pessoas fazendo coisas simples, como cozinhar, brincar com gatos, ir à praia, nadar. Isso gerou mais revolta nos jovens, que começaram a se organizar e a exigir que fossem levados à Terra, para conhecer seu planeta de origem, brincar com gatos, ir à praia, andar de bicicleta, enfim, fazer tudo que os terráqueos faziam.

Os mais velhos primeiro tentaram explicar que eles não poderiam viver na Terra. Seus corações não suportariam tanto exercício, tanto movimento, tanto peso. E seus pulmões não suportariam a pressão atmosférica da Terra, dez vezes maior que a de Marte. (Eles estavam acostumados a respirar por meio de aparelhos, que não exigiam nenhum esforço da musculatura do tórax.)

As explicações serviram para gerar mais revolta. Houve um assassinato, seguido de prisão, seguido de mais assassinatos. Os velhos então mudaram de estratégia. Usaram filmes de ficção científica para demonstrar que a Terra tinha sido destruída por guerras e explosões nucleares. A única solução agora seria começar do zero, em Marte. Começar uma nova civilização, uma nova cultura, uma nova ordem social. Alguns acreditaram nos velhos e foram fazendo o que eles mandavam. Outros queriam construir naves, para ir à Terra e ver tudo com seus próprios olhos; tocar com suas próprias mãos, arriscar a vida para descobrir o que realmente tinha acontecido.

Um dos comandantes da missão marciana, um homem já com seus oitenta e nove anos, teve um plano para eliminar os revoltados. Ia construir uma nave imensa, embarcar os dissidentes e dizer que os estava mandando para a Terra, quando na verdade a nave estaria programada para levá-los para o Cinturão de Asteróides. Sem saber da verdade, os próprios revoltados trabalharam na construção da nave. Mas uma mulher do grupo dos velhos, uma senhora de 95 anos, se apiedou dos jovens e vazou informação sobre o destino verdadeiro da nave. Houve novos episódios de revolta, novos assassinatos e novas prisões.

Por fim decidiu-se que a melhor solução seria mandar os revoltados realmente para a Terra. Eles não se adaptariam, viveriam em hospitais e logo morreriam, mas o que se podia fazer, se eles não aceitavam mais viver em Marte? Morreriam na Terra, mas pelo menos deixariam os outros marcianos em paz.

Voltaram à construção da nave, agora com propósitos consoantes. Mas nesse meio tempo os velhos começaram a morrer e não repassaram as informações sobre como terminar a nave, e menos ainda sobre como navegá-la. Os jovens solicitaram essas informações da Terra, mas a Terra não os queria de volta. O que fazer com um bando de fracotes que mal conseguiria levantar uma furadeira? Um bando de baixinhos raquíticos, com data marcada para morrer. Além disso, eles seriam uma verdadeira peste intelectual, porque espalhariam a ideia de que a vida em Marte não valia a pena, contariam que Marte era apenas um deserto sufocante e inútil, e isso seria uma grande perturbação nos planos para construir mineradoras em Marte.

Os jovens marcianos não tiveram outra alternativa senão continuar em Marte, recebendo da Terra apenas alimento e oxigênio, nenhuma informação relevante e sobretudo nenhuma gota de combustível para naves. Tiveram filhos e, cuidando de seus filhos, sossegaram um pouco. Foram cumprindo mais ou menos as instruções que vinham da Terra. Trabalharam em grandes plantas para mineração. Ensinaram seus filhos a ler, a escrever, a destilar água, a calcular uma cúpula, a procurar minas de ferro, cobre, etc.

Os mais velhos, a essa altura, já tinham quase todos morrido. A segunda geração de nascidos em Marte começou a entrar na adolescência e a perguntar sobre sua origem. Os pais, com vergonha de seus sucessivos fracassos para voltar à Terra, com vergonha de suas revoluções frustradas, diziam apenas que eles descendiam de gigantes que eram muito mais fortes, muito mais poderosos e tinham uma tecnologia muito mais avançada que a deles. Gigantes que tinham vindo de outro planeta. Um planeta mágico, onde havia plantas, animais, frutas; onde a água caía do céu.

Os jovens cresceram acreditando nisso, mas seus filhos já duvidavam dessas histórias e achavam que tudo não passava de mitologia. Alguns, no entanto, eram imaginativos e construíram vastas obras teóricas descrevendo como deveria ser o planeta de seus ancestrais. Essas obras confusas eram feitas com base em filmes que vinham da Terra, mas como não conheciam a Terra, os teóricos misturavam informações de filmes de entretenimento com documentários sobre a Amazônia, sobre o uso de drogas, sobre o feminismo, sobre a indústria alimentícia, e no fim tudo continuava parecendo mitologia, fantasia, estupefação. Ninguém tinha uma ideia precisa sobre nada.

Nessa época muita coisa mudou. Robôs da Terra foram enviados para construir as grandes redomas de cristal de alumínio, que protegeriam o solo da radiação. Assim, os marcianos receberam material para começar sua própria agricultura. Obviamente ficaram fascinados com as plantas, esqueceram as revoltas de seus pais, plantaram batata, café, trigo, frutas. Fizeram bolos, pães, sucos, lasanhas, e fartaram-se. Experimentaram um prazer sobrenatural. Ficaram ainda mais impressionados com os terráqueos. Um povo que desenvolvia esse tipo de biotecnologia era mesmo superior em inteligência, destreza e sensibilidade. Não seria estranho pensar que os terráqueos eram deuses. Em honra a tais deuses começaram a fazer grandes festivais que coincidiam com as colheitas. Compunham frases ritmadas que pareciam música, depois cantavam, banqueteavam e faziam amor.

Desses massivos festivais vieram novos filhos, e os filhos aprendiam basicamente a ler, escrever, praticar agricultura e minerar o solo. Para aprender a ler, liam as tais obras teóricas sobre a Terra, obras que não distinguiam fantasia da realidade. Imaginavam a Terra como um local cheio de elefantes, gorilas, cangurus, tucanos, mas também com grandes cidades, automóveis, aviões, festivais de música, pessoas dançando, pessoas usando drogas e mulheres tendo orgasmos. Eles quase não notaram quando os grandes carregamentos de alimentos e utensílios da Terra começaram a escassear. Notaram, depois, quando todo tipo de transmissão de dados que vinha da Terra subitamente cessou. Mas, a essa altura, já não se importaram. Tinham construído sua própria civilização. Sabiam plantar, construir casas, sabiam criar codornas, destilar água e acrescentar a ela os sais necessários à vida. Sabiam minerar o solo e construir os equipamentos eletrônicos mais elementares. Sabiam fazer baterias para seus grandes carros elétricos, que eram lentos como bicicletas, mas eles não sabiam que carros deviam ser mais rápidos que bicicletas, assim como não sabiam que codornas eram menores que galinhas.

Nos auditórios que um dia foram construídos para se falar sobre o Planeta Terra e os motivos da viagem a Marte, agora havia grandes palestras sobre os deuses do passado. Deuses que geraram os marcianos, lhes ensinaram as primeiras palavras, lhes ensinaram álgebra, trigonometria, engenharia elétrica, depois voltaram para seu lugar de origem, que eles sabiam apenas que era um certo pontinho no céu. Um pontinho que ficava mais brilhante em alguns meses do ano. Um pontinho tão distante que era preciso ser um deus para ir até lá. Um pontinho tão fantástico, tão variado, tão vivo, que poderia até ser mentira, e os grandes livros que se escreveram sobre ele poderiam ser apenas grandes mitologias do passado.

Alguns marcianos acreditavam que era para lá que se ia depois da morte. Outros garantiam que depois da morte não havia nada, e que os livros intermináveis sobre o passado eram apenas fantasias tolas de marcianos primitivos, entediados pelo deserto, esperançosos de um mundo mais interessante, mais agitado e colorido.

Quem está com a verdade simplesmente não há como saber.


terça-feira, 31 de março de 2020

A Garota Lésbica



A garota lésbica

Depois que ela foi demitida da prefeitura, continuou a usar a camisa de trabalho, uma blusa branca, com mangas alaranjadas, escrito “Juntos podemos mais”. Sua namorada também usava essa blusa, principalmente quando andavam de moto, o que me dava a impressão de que as duas trabalharam na prefeitura e foram demitidas simplesmente por serem lésbicas; mas isso já é coisa da minha cabeça.


Um dia eu estava na festa de um amigo e ela estava por lá (com outra camisa). Fiquei com vontade de perguntar alguma coisa mas não tive coragem. Por fim foi ela quem puxou assunto e perguntou com quê eu trabalhava. Eu disse que era escritor, ela perguntou sobre o que eu escrevia. Inventei que meu último livro era sobre um cara bem apessoado que vivia pedindo dinheiro emprestado a mulheres maduras, solteironas ou divorciadas. Em troca dos empréstimos ele ia com essas mulheres a eventos sociais, casamentos, festas de aniversário, inaugurações de lojas e coisas desse tipo; eventos que as mulheres não gostavam de frequentar sozinhas. Ela me perguntou se ele fazia sexo com elas, eu disse que não. Ela riu e disse que a mãe dela tinha lido esse livro e gostado muito. Falsa, mentirosa, pensei; e acrescentei que um dia talvez eu pudesse conhecer a mãe dela, para conversarmos sobre o livro, sobre canalhas em geral, e darmos algumas risadas. Ela ficou meio sem graça, “Pode ser, por que não?” e foi andando para a cozinha. Depois chegaram o bolo e os docinhos. Só então percebi que eu estava numa festa de aniversário. Cantamos a música, comi alguma coisa que não caiu muito bem com a cerveja, mas deixei rolar. 


Mais tarde me aproximei de um grupo que já estava meio bêbado, e estava falando sobre mulheres. Alguns perderam a noção e falavam de coisas que constrangiam suas esposas. Alguém me perguntou por que minha mulher não estava na festa; eu disse que ela estava com meu filho, que estava meio doente, com febre, tossindo. Uma mulher, que conhecia minha mulher, disse que não sabia que eu tinha filho. É do primeiro casamento, eu falei. Não mora com a gente, vem para cá só de vez em quando. Não entendo por que sempre minto quando estou em público. E quando vejo que falo uma mentira, só consigo reforçá-la, não consigo voltar atrás. Sem a menor dúvida, preciso de um bom psicólogo.


Ouvi mais um pouco das piadas e mentiras dos bonachões, depois comecei a me despedir deles, que também já começavam a se despedir de si mesmos.


Encontrei então a mulher ou garota lésbica. Perguntei se ela queria uma carona para o lado da Vila Miranda. Ela disse que não estava indo para casa, ia ficar num bar no centro, e perguntou se eu podia deixá-la por lá. “Claro, por que não?”, eu disse, descendo atrás dela. E quando chegamos, ela me chamou para entrar por uns minutos. Estava muito cedo para ir para casa. Eu disse alguma coisa como “só mais uma cerveja”, e notei que as pessoas ficaram nos olhando quando passamos pela porta, provavelmente porque era um bar de lésbicas, e nós éramos, afinal, um homem e uma mulher.  


O segundo andar era bem decorado com dois sofás grandes nas laterais e luminárias antigas que pareciam grandes castiçais de cabeça para baixo. Quem estivesse num dos sofás quase não via o que se passava no outro. Pegamos uma cerveja e sentamos num deles. Ela me contou que seu cachorro poodle, ou yorkshire, estava com câncer. Eu disse que era uma pena e que ela devia estar sofrendo muito. E de repente nos abraçamos e começamos a nos beijar. E beijamos forte, como se estivéssemos a uns seis meses sem contato sexual. De cinco em cinco minutos ela passava a mão no meio das minhas pernas para ver se o tripé estava armado. Eu me perguntava: será que ela quer fazer aqui? O bar estava quase vazio, havia apenas algumas pessoas no sofá da frente e outras debruçadas nas janelas. De repente, sem tirar as botas, e com a maior naturalidade do mundo, ela se ajoelhou em cima de mim, abriu meu zíper e me cobriu com seu vestido. Dali começamos um sobe-desce profundo, transpirante, ritmado. Ela quase não olhou para o meu rosto, nem eu para o dela. Quando terminamos, ela disse: espere aqui, e correu para o banheiro. Enquanto eu abotoava minha calça, vi que algumas pessoas olhavam para mim, mais por curiosidade que por reprovação. Quando ela voltou, segurava uma bolsa que eu nem tinha visto com ela. Tomou mais um trago e disse: acho que vou ter que sacrificá-lo. Não suporto vê-lo sofrer. Percebi que falava do poodle. Dei uma desculpa qualquer, peguei o número dela e disse que precisava ir para casa. Ela me disse: nunca ligue nos fins de semana; depois acrescentou: não me mande mensagens. Era das duronas.


Cheguei em casa, tomei rapidamente um banho e fui me deitar. Cátia já estava de camisola, vendo televisão. Seu cabelo está com um cheiro estranho, ela disse. Respondi que na festa tinha muita gente fumando. E o Nelinho, está bem? Pensei comigo que Nelinho devia ser o aniversariante ou algum amigo mais chegado de Cátia. Está ótimo, garanti. Sempre sorrindo. Que bom, ela disse, já deve ter arranjado outro emprego. E se enroscou em mim, para dormirmos juntinhos, como fazemos no inverno. E eu dormi como uma criança, sem pensar em nada.


Algumas semanas depois encontrei a mulher lésbica na sala de espera de um médico. Ela disse que seu poodle tinha morrido. Quase tive pena.


Ronaldo Brito Roque