Eu não gosto de andar com jovens. Eles sempre se descuidam e acabam sendo atingidos. Tenho quarenta e cinco; faz uns vinte anos que essa guerra começou. Nós, os mais velhos, aprendemos pela experiência: sabemos nos esconder atrás dos carros, sabemos contornar um prédio, mesmo com planta irregular, sabemos que não podemos fugir pela escada de incêndio. Sempre tem alguém nos esperando num andar mais baixo, homens às vezes em menor número, porém com maior poder de fogo. Aprendemos a descer pelas laterais, com cabos que um dia foram utilizados para transmitir eletricidade e impulsos telefônicos.
O problema é que uma jovem grudou em mim, uma jovem que deve ter nascido durante a guerra, sobreviveu não sei como. Devia estar acampada num dos alojamentos, nos confins da cidade, onde até os engenheiros aprenderam a plantar mandioca, banana, plantas que nascem em locais mais baixos, perto de rio.
Eu sou do tipo que gosta de andar sozinho. Me aproximo dos alojamentos apenas quando preciso recarregar. Em geral, sei me virar, não fico andando com gente mais lenta e mais fraca que eu. Sou um andarilho. Num mundo perdido, onde qualquer acampamento maior é rapidamente dizimado pelo inimigo, não vale a pena ser outra coisa. Tolerei essa garota, porque ela sabia atirar, sabia se esconder atrás de uma coluna, sabia revezar o fogo comigo. Fui aprendendo a andar mais devagar, a esperar afastado quando ela tinha que parar numa ruína, para fazer as necessidades.
Trato-a como se fosse uma filha. Deito longe dela quando achamos espaço para dormir. Mas pode ser que ela nem saiba o que é um pai. Não sei o que ela passou antes de chegar até mim. Ela é muito calada. Certamente não tem vocabulário, não sabe dizer o que está sentindo ou pensando. Se é que pensa.
Eu me sinto mal quando temos tempo para conversar. Aos poucos fui descobrindo que ela não sabe que os cabos que usamos para descer eram de telefone, não sabe para que serviam os televisores, não sabe o que é uma chave de automóvel, ou de porta ou de qualquer coisa que se possa trancar. Às vezes eu falo: vamos voltar para o norte, estou ouvindo aquele chiado de drone. No fundo não estou ouvindo nada. Quero apenas continuar andando. Conversar com uma pessoa tão vazia me dá nos nervos.
Um dia mal tínhamos acordado e uma horda se aproximou de nós. Subimos num dos prédios, que é como fazemos para despistá-los. Normalmente, eles sobem pela escada, nós descemos pelas janelas e assim conseguimos escapar. Mas havia drones com eles, e estava difícil chegar nas laterais. Fomos subindo cada vez mais alto. Eu gritava para ela ficar longe das janelas: você está chegando muito perto, vai acabar sendo atingida. Ela voltava para o centro do prédio. Eu às vezes acertava um drone, mas nem sempre eles caíam. Os drones estão ficando cada vez melhores.
A tecnologia das hordas, seja lá de onde vem, é mais avançada que a nossa. Mas eu sempre digo que podemos vencer pela imprevisibilidade. Os robôs agem com base em fórmulas, não conseguem reagir quando somos imprevisíveis. Essa é nossa única chance contra eles. Pensando nisso, chamei a menina e falei: não podemos descer pelas laterais, eles já conhecem essa estratégia. Vamos deixar que eles entrem, e liquidar um por um aqui dentro. Ela assentiu. Paramos de atirar. Depois que todos entraram, começamos um fogo incessante contra eles. Nos escondíamos atrás de balcões de concreto, colunas, pedaços de forro que haviam caído. Fomos aniquilando um a um. Quando tudo ficou mais calmo, ela veio correndo para perto de mim. Eu gritei: não, sua burra. Não se aproxime ainda. Um deles pode estar escondido por aí. Mas não adiantou, ela veio correndo e acabou sendo atingida. Caiu já perto de mim, porém não saí de trás da coluna. Você foi atingida, sua idiota. Eu falei para não vir. Ela se levantou, assustada. Mas não estou sangrando, disse. O drone apareceu, provavelmente para alvejá-la de novo. Com uma rajada incessante consegui derrubá-lo. A garota, enfim, veio para mais perto. Não estou sangrando. Senti apenas um impacto na cabeça, que me desequilibrou, mas acho que não morri. Morrer?, perguntei, surpreso. Do que você está falando? Sei lá, acho que foi um raspão. Raspão? Você é louca mesmo. Os tiros deles não são para nos matar, são para nos fazer esquecer. Ela pasmou. São armas de esquecimento, eu disse. Você provavelmente já não está lembrando quem você é, por que estamos lutando, quem é nosso inimigo. Como assim, ela disse? De repente não pude fazer outra coisa, senão rir. Por essa eu não esperava. Olha, garota, não te disseram no acampamento? As armas deles não são de fogo. São armas de raios quânticos. O objetivo deles não é nos matar, é nos fazer esquecer. Ela ficou muda por um tempo, depois falou: mas eu não estou sentindo nada. Não, você não está sentindo nada, mas provavelmente já está esquecendo tudo. Quem sou eu? Você é um cara que anda sempre comigo. Errado, você é que anda comigo. Um dia eu te salvei de um ataque e você começou a andar comigo. Por que estamos em guerra? Quem são nossos inimigos? Ela respondeu com um olhar já vazio: não sei. Eu disse: a arma deles é o esquecimento, por isso lutamos contra eles. Querem nos fazer esquecer de tudo, depois provavelmente vão nos transformar em escravos. Seremos escravos das máquinas.
Pelo seu olhar, senti que ela já não me ouvia. Eu preciso descansar, ela disse. Por que subimos nesse prédio? Eu estou tão cansada, não poderíamos ter ficado lá em baixo? Eu pensei: coitada, já deve ter esquecido do combate que acabamos de travar. E o pior é que eu tinha vencido, tinha praticamente vencido. Se ela não saísse da pilastra e não viesse na minha direção. Ela perguntou: onde tem água? Estou com sede. Vamos subir para o último andar, falei. Com sorte encontramos uma caixa d'água intacta. Ela começou a subir. Fiquei atrás dela, na escada. Quando ela passou um andar acima de mim, virei as costas e comecei a descer. Ela certamente vai chegar no último andar, talvez encontre água, mas já terá esquecido que estava comigo.
Estou feliz com isso. Sou um andarilho. Não dá para se apegar a ninguém. Numa guerra como essa, as hordas buscam dissolver acampamentos, mas não dão importância a homens solitários. E, afinal, eu queria mesmo que ela me esquecesse. Houve uma noite em que acabei perdendo o controle. Estava frio, ela deitou ao meu lado, se abraçou em mim. Por algum instinto de fêmea, começou a me tocar, depois disse que estava calor, livrou-se das roupas. Naquele dia não a tratei como filha. Agora eu andava com medo. Tinha medo de ter que viver num alojamento, aprender a carpir a terra, a plantar, a cuidar de filho, fazer ronda contra os drones, que mais cedo ou mais tarde vão nos apagar. Ainda prefiro ser um andarilho. Vivendo sozinho tenho mais chance de sobreviver. Daqui a alguns anos, é provável que eu também a esqueça.