Quando os ET´s chegaram, eu estava dormindo. Meu pai me acordou aos berros.
— Vem logo, filho! Vai começar a transmissão ao vivo.
— Me deixa quieto, pai. Quero domir — respondi, morrendo de sono. — Amanhã eu vejo os melhores momentos no jornal da tarde.
— Você está louco, rapaz? Você não quer acompanhar o evento histórico mais importante do milênio?! O que você vai dizer aos seus filhos? Que preferiu ficar dormindo na noite em que os ET´s desceram na Terra!?
— Fecha a porta da sala, por favor — liquidei o assunto e voltei a dormir. Meu pai nunca me entendeu, mas eu não achava a menor graça em ver uma coisa que já fora prevista e anunciada mil vezes, que todo mundo já sabia como ia acontecer, que já fora até ensaiada pelas autoridades e representantes das nações.
Os ET´s tinham montado uma base na lua, e vinham trocando informações com a Terra havia décadas. Já sabíamos tudo sobre eles: de onde vinham, o que comiam, como viviam. Centenas de imagens já haviam circulado nos jornais e na internet. Nossos linguistas já tinham até aprendido a ler e escrever no idioma deles. Eu sabia que naquela noite não ia acontecer nada de extraordinário. Só o imprevisto pode ser extraordinário. O que já foi devidamente previsto e planejado, quando vem a acontecer, é apenas o fluxo natural dos fatos, é desinteressante, é banal.
Além disso, eu era adolescente e só pensava em sexo. Já tinha me informado sobre os ET´s, e as fêmeas eram feias demais para despertar meu interesse. Os ET´s são uns bichos esquisitos, meio parecidos com caranguejos, só que ficam de pé e são quase do nosso tamanho. Eles têm exo-esqueleto, pernas e braços finos, olhos sem pupila. Simplesmente não dá para se interessar por uma fêmea assim. Se tivesse alguma ET tipo a Mística dos X-Men, ou pelo menos que nem a índia do Avatar... mas aquelas caranguejas, francamente! Elas não tinham nada que lembrasse nem vagamente um peito ou uma bunda.
No dia seguinte, a TV confirmou tudo que eu esperava. Os ET´s chegaram numa boa, foram recebidos pelos líderes das nações. Eles conversavam conosco por meio de aparelhinhos que emitiam frases em nossos idiomas. Alguns desceram na Europa, outros nos Estados Unidos, outros na China. Naquela época eu já não gostava dos comunistas e preferia que eles tivessem descido no Japão ou na Coréia do Sul. Mas eles quiseram descer na China também, fazer o quê. O fato é que aquela noite em particular não teve repercussão nenhuma na minha vida. Só anos mais tarde eu viveria algo mais diretamente relacionado aos ET´s. Eu estava na faculdade, havia tempo que eles estavam entre nós, mas ainda não tinham personalidade jurídica. Ou seja: não podiam votar, não podiam comprar imóveis, não podiam processar nem ser processados por ninguém. Como era de se esperar, os juristas e estadistas se dividiam basicamente em dois lados. Uns achavam que os ET´s tinham demonstrado inteligência mais que suficiente para lidar com processos e tribunais, portanto mereciam personalidades jurídicas. Outros alegavam que era um risco conceder personalidade júridica aos ET´s. Se eles fizessem alguma besteira, e fossem processados, podiam simplesmente sumir para seu planeta e não cumprir a pena determinada.
Claro que eu fiquei com o primeiro grupo, mas não por entender alguma coisa de justiça ou por ter refletido demoradamente sobre o assunto; o grupo “ET Legal Já” era simplesmente o único que fazia passeatas maneiras, com internveções em centros urbanos, caminhadas, chous de roque e essas coisa toda. Eu era um jovem calouro, precisava participar de alguma passeata, mostrar aos meus amigos que eu tinha ideais, talvez até conhecer uma garota engajada, ousada, liberal... Os ET´s me davam a oportunidade de fazer isso tudo.
Nos outros países, menos na China – aqueles comunistas desgraçados! – os jovens cederam rapidamente ao intenso desejo de imitar, e começaram a fazer as mesmas coisas que a gente: passeatas, vídeos no Youtube, intervenções coletivas. Com toda essa pressão, não demorou para que os ET´s ganhassem suas personalidades jurídicas e pudessem comprar imóveis, fundar empresas, fazer tudo que um ser humano fazia. Nosso eslôgan era bem claro: humanidade é inteligência; se os ET´s são inteligentes, também são humanos. A mídia nos apoiou, os liberais e esquerdistas do mundo todo nos apoiaram. Mas, sem dúvida, o que nos causou mais espanto foi que até o papa ficou do nosso lado. Ele alegava que os ET´s tinham alma, e por isso precisavam conhecer o evangelho. Muitos ficaram revoltados com essa posição da igreja. Receber o apoio do papa na luta por uma causa, qualquer que fosse, parecia envergonhar imensamente os liberais. Mas o papa perseverou na ideia de pregar o evangelho aos ET´s, e fez várias reuniões com eles no Vaticano. Todos ficaram decepcionados quando viram os ET´s assistiando à missa, confessando-se e recebendo a comunhão. Chegaram a questionar a inteligência dos ET´s, alguns intelectuais retiraram seu apoio, mas acabou não dando em nada. Já estávamos acostumados com eles; não iríamos expulsá-los da Terra só porque haviam se tornado católicos. Diziam até que eles tinham ensinado coisas incríveis aos nossos cientistas, tipo substituir órgãos de humanos pelos de animais, obter energia elétrica da ionosfera e coisas desse tipo. Outros denunciavam que os ET´s não tinham ensinado nada daquilo, nossos cientistas é que já haviam descoberto essas coisas, e o mito de que elas vinham dos ET´s apenas facilitou a obtenção de financiamento para as pesquisas. Qual a verdade nisso tudo claro que eu nunca vou saber. Mas nem por isso deixei de ir às passeatas; vociferei os eslôgans em voga, dei meu depoimento aos repórteres. Disse que os ET´s mereciam o direito de procurar nossa justiça, que havia chegado o momento de estender o direito de cidadania a qualquer ser que pudesse ler e compreender nossas leis. Entrei para a história da minha faculdade, tal era minha obediência e meu talento para a repetição. Gosto de pensar que os ET´s me viram de suas naves – àquela altura já na órbita da Terra – e admiraram silenciosamente minha coragem e meu senso de justiça. Mas, infelizmente, nunca conversei com um ET. Pouquíssimas pessoas são autorizadas a isso. Nunca entendi porque eles quiseram manter essa distância. Nem depois de tantas passeatas e manifestações de simpatia, nenhum deles apareceu para tomar uma cerveja com a gente. Acho que essa sempre foi nossa maior decepção.
Depois que eu me formei, acompanhei o caso apenas pelos jornais, como todo mundo. Assim que tiveram suas personalidades jurídicas, os ET´s começaram a criar empresas. Parece que eles tinham muito ouro e diamantes, que traziam não sei de que planeta longínquo, e logo fundaram bancos internacionais que transformaram nossos grandes banqueiros em meros oficebóis. Depois eles compraram mineradoras, e o preço do aço ficou absurdo. É por isso que hoje em dia quase ninguém tem carro. Não tem nada a ver com ecologia, como pensam os idiotas. Simplesmente ficou impossível ter um carro depois que os ET´s passaram a exportar nosso aço para outros planetas. Eu lembro que os equipamentos eletrônicos também eram bem comuns na minha adolescência. Eu tinha um leptope e um celular, passava o dia trocando mensagens com meus amigos. Mas, depois que os ET´s começaram a explorar nosso silício, a coisa mudou. Hoje só grandes empresas podem ter um computador; e há quem diga que essas empresas pertencem aos ET´s. Agora estão falando que a água é que vai encarecer, e que vamos ter que deixar esse hábito ultrapassado de tomar banho. Não dá para saber se é verdade ou apenas boato. A mídia ficou um caos depois que eles começaram a controlar as transmissões via satélite.
Mas o pior disso tudo foi o que eu ouvi outro dia. Eu estava conversando com um jovem, de uns dezesseis anos, e ele disse que a minha geração que é culpada dessa situação, que essa pobreza toda começou quando concedemos personalidade jurídica aos ET´s. Na hora eu não soube o que responder, depois é que me caiu a ficha: esse moleque não passa de um idiota, preconceituoso, retrógrado! O que ele queria que fizéssemos!? Que negássemos aos ET´s o direito de trabalhar e viver dignamente no nosso planeta? Será que ele pensa que o planeta é dele?! É por isso que eu evito conversar com os jovens, eles andam com umas ideias que... francamente! Não sei de onde tiram essa loucura, da televisão sei que não é.
O problema é que aquela frase ficou repercutindo na minha cabeça. “Nossa pobreza começou quando concedemos personalidade jurídica, nossa pobreza começou...” Cheguei a perder noites de sono por causa disso. Ah, meu Deus, que moleque cretino, que falta de visão! Se ele tivesse vivido tudo que eu vivi, se ele tivesse ido às passeatas, sentido aquela euforia, aquele sentimento de coragem, de união. Se ele visse as mulheres que eu beijei nos chous pelos direitos dos ET´s... Ele é apenas um pobre coitado, nem deve ter namorada. A geração dele não fez um milésimo do que fez a minha. Definitivamente, é melhor esquecer tudo que ele falou, e voltar a dormir em paz.
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