quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Deus sem nome

Em frente à universidade havia uma pracinha com playground, e Cátia me perguntou se podia levar o Flavinho. Enquanto eu estivesse no debate, ela brincaria com ele na pracinha, depois poderíamos passar no shopping e comer uma pitsa. Imediatamente concluí duas coisas: ela não queria cozinhar naquela noite, e não queria assistir ao debate. A primeira não me incomodava muito, porque uma pitsa seria de fato melhor que a comida requentada de Cátia. Mas a segunda confesso que me perturbava um pouco. Era um dos debates mais importantes da minha vida, e ela simplesmente não queria estar presente. Se quisesse, poderia deixar Flavinho com uma amiga, ou até com mamãe, que não gosta de perder a novela, porém não chega ao ponto de nos negar um favor. Mas ela não estava nem aí. Tive certeza que ela pensava que passar a tarde num playground, com uma criança de seis anos, era mais importante que assistir à minha exposição sobre qual era a religião verdadeira, a única que poderia nos abrir as portas do céu e salvar nossas almas do inferno. Já havia algum tempo que eu estava percebendo que Cátia não ligava para teologia. Para ela, muito mais importante que discutir a natureza das religiões era ter tempo para ficar com Flavinho, e dinheiro para comer fora. Isso me decepcionava brutalmente, porque para mim não podia haver coisa mais importante que descobrir qual religião levaria realmente à salvação da alma, e não a uma aparência de salvação que terminasse por nos deixar nas mãos de satanás. Mas Cátia parecia pensar que a teologia e a filosofia eram simplesmente uma diversão requintada para homens que não sabiam dançar. Essa conclusão ia me decepcionando à medida que ficava mais nítida; e eu procurava mais e mais debates e conferências nos quais as pessoas pelo menos parecessem valorizar meu trabalho.

Mas não havia por que contrariá-la, e concordei com a história de pracinha e pitsa. Segui cabisbaixo para o auditório, na esperança de que pelo menos ali eu encontrasse alguém mais interessado no que eu tinha a dizer. Às vezes eu lamentava o fato de Jesus não ter se casado, e não ter nos legado instrução nenhuma sobre como lidar com as mulheres. Nessas horas me ocorria uma enorme vontade de dar uma olhada no Corão e ver o que Maomé dizia sobre elas — afinal, ele tivera quatro. Mas eu imediatamente afastava essa curiosidade, interpretando-a como tentação infernal.

Naquele dia, antes de o debate começar, reparei demoradamente no muçulmano e fiquei imaginando como seria sua vida amorosa: se tinha mais de uma mulher, se era feliz com elas, etc. Mas notei que sua esposa também o deixara para cuidar de alguma outra coisa. Primeiro me ocorreu que as mulheres, na sua religião, talvez fossem proibidas de ouvir um debate daquela natureza. Mas depois lembrei de Cátia e pensei que a mulher dele talvez simplesmente preferisse ficar na companhia dos filhos. Então reparei no judeu e vi que sua mulher também deixava o recinto. Percebi que éramos bem diferentes em nossas leis, mas nossas mulheres talvez fossem bem parecidas. Isso me deu alguma vontade de rir, e, embora eu não o tenha feito, pelo menos me senti mais leve para o debate; senti-me de alguma maneira mais próximo dos meus adversários.

Foi então que o moderador iniciou, dando a palavra ao judeu, que, segundo ele, representava a religião mais antiga entre nós. Obviamente não objetei, apenas lamentei que me coubesse o próximo lugar, pois, ficando antes do protestante e do muçulmano, seria mais difícil refutá-los. Mas logo veio a minha vez e defendi o catolicismo com a eloqüência que me é peculiar. Lembrei à platéia que Cristo não tinha vindo para negar completamente o judaísmo, mas antes para reformá-lo. O grande erro dos judeus não estava em acreditar em suas próprias leis, mas em ter negado e negar até hoje que o criador dessas leis esteve entre nós como homem e suportou a paixão da cruz para nos salvar. A platéia reconheceu minha eloqüência e me retribuiu com o aplauso merecido — com exceção daqueles que já tinham ido lá com o objetivo de apoiar meus adversários. Então fui tomado de entusiasmo e comecei a defender a religião católica frente aos protestantes e muçulmanos, coisa que me seria ainda mais fácil, dada a incoerência da fé deles. Mas o moderador me interrompeu, alertando que meu tempo havia acabado e pedindo que eu guardasse minha energia para mais tarde, no momento da mesa redonda. Como ele falasse de forma irônica, houve alguns risos na platéia, e eu senti meu entusiasmo se converter rapidamente em cólera. Por que aceito participar desses eventos, se sei que eles sempre arrumam um jeito de humilhar os católicos? Prometi a mim mesmo, pela centésima vez, que não participaria mais desses debates. Mas depois lembrei que sou um mero servo de Cristo e não posso tomar decisões dessa natureza.

O muçulmano veio logo em seguida e tive de me conter para não rir em público. A idéia de que um anjo tinha ditado detalhes sobre herança e impostos nos é tão ridícula que dispensava qualquer ataque. Mas notei que alguns se interessavam pelo Corão, por causa da permissão de poligamia. “O Inferno será um bom lugar para eles”, pensei comigo mesmo, enquanto tentava me dominar. Felizmente o moderador interrompeu o sujeito e passou a palavra ao protestante. Mas também foi uma ótima oportunidade pr’eu aprender a me dominar. Cheguei a fazer alguns sinais para o moderador, pedindo ao menos um minuto. Se ele me desse trinta segundos eu já conseguiria demonstrar a incoerência brutal de algumas besteiras que o protestante defendia. Como alguém pode achar que existe religião cristã sem o sacramento da confissão? Mas o moderador fez um sinal relembrando a mesa redonda, e tive de me conter.

Até que veio a tal mesa redonda e aconteceu simplesmente o que eu já previa. Cada um repetiu mais ou menos o que tinha falado, sem dar a menor atenção às perguntas dos outros. O protestante, não podendo ser mais cínico, fingiu não ouvir meus argumentos sobre a confissão, e tratou de atacar unicamente o culto aos santos. O muçulmano, esse já não digo que me ignorou propositalmente, pois acho que ele nem chegava a me compreender. Enfim, as coisas que eu estou cansado de ver...

Quando nos despedimos, percebi que seria até um alívio reencontrar Cátia. Ela me envolveria em algum problema doméstico, falaria da necessidade de comprar alguma coisa, de mudar de empregada, de dar não sei que presente para mamãe, e por algum tempo eu esqueceria que existe tanta idéia falsa no mundo. Então me lembrei, com certo pesar, que havia alguns anos que ela estava tomando anticoncepcionais, portanto não éramos assim tão católicos (no início eu protestei, mas foi só ela falar nos gastos de um novo filho...). Fiquei me perguntando se isso nos deixaria muito tempo no purgatório, e estava absorto nessa interrogação quando cheguei à pracinha. Cátia estava conversando com uma mulher de lenço na cabeça. Flavinho brincava na areia com dois meninos e uma menina um pouco mais velha, que também tinha um pequeno lenço envolvendo os cabelos. Foi quando alguém chamou um dos meninos e descobri que ele tinha nome judeu. Era a peça que faltava pr'eu entender o que estava acontecendo. Ignorando nossas diferenças teológicas, os meninos brincavam juntos, com seus carrinhos e naves. Foi comovente a carinha que fizeram quando viram que teriam de se separar. Fiquei reparando na cena, enquanto meu peito se enchia de uma tristeza vaga e obscura. Por um momento invejei aquelas crianças, que ainda não tinham encontrado motivo para se odiar. Por um único momento, desejei viver no mundo delas: um mundo sem fronteiras, onde Deus ainda não tinha nome.
Cátia se aproximou, e logo me tirou da pequena epifania.

— Não é absurdo obrigarem a menina a usar um lenço na cabeça?!? Ela é tão novinha...
— É, amor... É absurdo.
Concordei sem hesitar. Por que discordaria? Para iniciar outro debate?

Luar com pimenta

Uma flor às vezes vem com espinhos. Ela tinha dentes afiados, insuspeitáveis por trás dos seus lábios grossos. Não sei se vingava um amor fracassado ou se queria apenas me mostrar a força selvagem do seu desejo. Anestesiado pelas caipirinhas, recebi sua crueldade como uma tempero a mais. A doçura viria depois, quando a lua e eu, de improviso, fomos o abrigo da sua fragilidade. Mas a lua é mulher e tem memória fraca. Eu é que não esqueço tão cedo o calor surpreendente daquele corpo, o suave cheiro de mato e a menina acanhada que vislumbrei entre seus olhares ríspidos. Enquanto não tenho nenhum dos três, contento-me com a cicatriz que ela me deixou na boca, e o desejo mudo de merecer novamente a crueldade sôfrega dos seus dentes afiados.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Duas gotas de vingança

Minha boca tem agora um gosto metálico, por isso temo que ela rejeite meu beijo. Estamos deitados no tapete, ouvindo a música que ela não quer cantar. A nudez é um detalhe que não chega a cobrir a formalidade dos nossos gestos. Sexo assim é melhor não fazer, eu sei. Mas achei que se a penetrasse romperia a barreira de silêncio que ela ergueu para se proteger. Estúpido engano. Tudo que consegui foi afastá-la ainda mais, para dentro de um limite menor e mais duro. Quando a música termina, eu me levanto para desligar o aparelho. Só então percebo a tristeza machucada dos seus olhos. É uma menina, apesar dos braços grossos. Eu peço novamente que cante. Talvez ela possa me perdoar, agora que acabo de descobrir sua infância insuspeitada. Ela abre a boca. Penso que finalmente ouvirei sua voz, segundos antes de levar a mordida. Meu sangue escorre pelas pernas. Vejo sua vingança consumada no tapete onde a possuí. Entrego-me aos seus braços, sem a menor esperança. A visão me falta, percebo que vou desmaiar, mas agora que sou um menino machucado, agora que ela também conhece minha infância, seu perdão me cobre como um sudário. Na escuridão do nosso encontro, finalmente ouço sua voz: ela canta para se despedir.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Solidão molhada

Se ela entrasse agora, se ela rompesse o silêncio deste quarto e seu riso enchesse a casa com a graça de mil borboletas desgovernadas, não haveria choro esta tarde. O carinho morno e hesitante, que brota do meu peito, encontraria um pouso feliz no frescor dos seus ombros nus. Mas ela mora longe, ela tem que chegar cedo, e só por isso não vai entrar por esta porta e espalhar o brilho das tais borboletas. E meu carinho, já pálido e desamparado, vai escorrer vagaroso com o suor, e deixar no lençol molhado apenas a marca efêmera de mais uma solidão.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Vermelhos e crus

Quando eu perguntei se ele gostava de mim, ele respondeu mecanicamente, “gosto, ué”, e percebi que ele estava mentindo. Mas ele baixou os olhos e ficou levemente vermelho, como se sentisse uma súbita vergonha da mentira, e eu entendi que aquilo mudava totalmente o sentido da frase, porque uma mentira que você diz mecanicamente já é diferente de uma mentira que você tem vergonha de dizer. Ele não sabe, mas é por isso que eu volto. Eu podia dizer que não trabalho aos domingos, ou nem atender o celular quando vejo o número dele. Mas eu lembro daquela carinha vermelha e me dá vontade de saber o que tem atrás daquela cor. Já era a terceira vez, a gente fazia tudo sempre igual. Ele tirava a primeira, depois me oferecia sorvete, ligava a televisão, a gente ficava de bobeira, ele fumava, eu lixava unha, ele tirava a segunda e dizia que ia me chamar um táxi, que eu sei que é o jeito de um cliente dizer pr’eu ir embora. A mulher, quando vi a foto no porta-retrato, pensei que talvez ela estivesse morta. Não tinha idade para morrer, mas existe câncer, bala perdida, acidente de carro, tanta coisa que pode acontecer... Mas um dia alguém telefonou, e ele falou “sei, sei”, depois falou “é claro, amor”, e eu percebi que ela estava bem viva e ainda pedindo pr’ele passar no supermercado. Desde aquele dia eu olho a foto de um jeito diferente. Essa mulher tão feinha, essas rugas, esse sorriso amarelo, ela parece tão infeliz. Eu sinto no seu cansaço a quantidade de sonho frustrado, as viagens que ela não fez porque o menino estava com bronquite, a empregada que ela não contratou porque tinha que sobrar para o curso de inglês, os livros que ela não leu porque não queria ler mesmo, mas ela consegue pensar que também foi por causa do menino ou do marido. Então penso em todos os livros que eu li, penso naquelas tardes maravilhosas em Cabo Frio, recordo aquele cliente generoso que me apresentou ao carpaccio e ao petit-gateau, e me custa admitir que eu também sou infeliz. Mas eu estou cansada de ser infeliz do meu jeito, queria tanto ser infeliz do jeito dela! E, mesmo presa no silêncio da foto, seu riso agora é um riso de zombaria. De alguma forma ela percebe que saiu vitoriosa, ela sente que a infelicidade dela é melhor que a minha. É quando eu digo que vou beber água, mas não estou com sede, eu quero é entrar mais uma vez na cozinha, olhar os recados na geladeira, cheirar os vidrinhos de tempero, espantar as moscas que já começam a incomodar as frutas. E de repente eu percebo que tem alguma coisa nessa cozinha que me escapa completamente, algo que nunca vou conhecer, mesmo que me aposse daquele homenzinho da sala e conviva para sempre com seu hálito e sua calvície. É talvez buscando essa coisa misteriosa que abro a geladeira e descubro, numa vasilha de vidro, os corações de galinha, vermelhos e crus, quase como morangos. Eu sei fazer coração, é muito fácil, é só refogar com tempero e cebola. Eu posso fritar agora e a gente come no palitinho, enquanto ele descansa e vê televisão. Uma alegria boba me invade, sinto que vou me apropriar de uma pequena parte da cozinha. A mulher da foto já vai me olhar de outro jeito quando eu voltar à sala, talvez assustada, acuada na sua moldura de porta-retrato. Mas eu chego na sala e o homem está abotoando a calça, o cigarro está morto no cinzeiro, ele pega o telefone e diz que vai me chamar um táxi.

No caminho para casa, passo num mercado vinte e quatro horas. Quando os corações estalam na frigideira, eu ainda tenho a vaga lembrança de um porta-retrato, uma mulher triste que teima em sorrir, um homem que transa de meias e precisa de óculos até para ver televisão. Mas logo depois estou engolindo a carne macia, e consigo acreditar que comprei coração apenas porque é barato e fácil de fazer. Posso estar triste agora, mas sei que, quando amanhã chegar, vou achar que hoje foi apenas mais um domingo.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Hoje não

Hoje ele não quer chupar peitos — nem os mais redondos e firmes. Não quer ver uma mulher de quatro, não quer ouvir gemidos suaves (quase verdadeiros), nem se debruçar sobre um corpo macio depois da descarga aliviante. Ele não quer ir ao banheiro se livrar da camisinha, nem ficar abraçado na cama, imerso no cheiro misto de suor e látex. Não quer vê-la se vestindo, nem puxá-la de volta, alegando uma incapacidade qualquer para deixá-la. Não quer reiniciar as carícias, e se orgulhar de poder excitá-la novamente.

Quando ela telefonar, ele já sabe que não vai atender. Hoje ele quer a paz de uma cama vazia, o silêncio de um livro antigo, o inapelável cheiro de roupa suja de um quarto de solteiro. Pensamentos vagos vão lhe ocorrer, talvez até lembranças de uma infância descalça e triste, que ele já nem sabe se viveu realmente. Um suave arrependimento vai lhe perturbar por algum tempo, depois ele vai expurgá-lo num sonho levemente torturante, como uma longa música clássica. Aos poucos vai se reconciliar com seu corpo, seus quilos a mais, seus cabelos que já começam a escassear sobre a testa.

O problema é que ela não vai entender. Vai se sentir rejeitada, ultrajada na sua obscura dignidade de fêmea. Vai relembrar um antigo namorado, que a amava muito mais, e não a deixava sozinha nos fins de semana. Vai tentar acreditar que quer ligar para esse ex-namorado e marcar um encontro naquele restaurante afastado, perto de um motel. Depois vai pensar que toda a farsa não terá sentido se não for, de alguma forma, descoberta por ele. Então vai passar alguns minutos tentando criar um plano para que tudo — o encontro clandestino, a tarde no motel — chegue inevitavelmente ao conhecimento dele, e o faça arrepender-se como um criminoso imprudente. Mas em pouco tempo ela vai lembrar que não é assim tão boa em planejamento, e vai desistir definitivamente da idéia. Deitada, em frente à televisão, vai sentir o desejo se diluindo no seu corpo, como o sal se dilui em água. E os dois vão dormir, cada qual em sua cama, o sono morno de uma noite de outubro.

No outro fim de semana, aí sim, eles vão transar e gozar como rãs patéticas. E esse domingo de ausência será tão insignificante que não restará sequer na lembrança. Sem fotos, sem testemunhas, sem conseqüências, será uma gota de chuva caindo num lago, uma sombra encontrando a paz definitiva da escuridão. Até que um dia o corpo dele vai relembrar o desejo de uma cama vazia. Agora casado, ele irá procurar um hotel modesto no centro da cidade. Ela vai relembrar um antigo namorado, vai acreditar que quer dar um telefonema. E tudo se repetirá, com a monotonia infalível dos domingos.

Porque minhas paredes não falam

Baseado em argumento de Victória Saramago

Hoje eles não ficam muito tempo dentro de mim. Chegam de noitinha ou de madrugada, tiram as roupas, tomam seus banhos demorados, às vezes secam o cabelo, às vezes apenas caem na cama e dormem um sono mudo e sem sonhos. No dia seguinte acordam com um telefonema da portaria e saem apressados, alguns ansiosos para voltar a suas casas e famílias, outros lamentando não poder prolongar esses raros momentos de solidão, quando se vêem livres das reclamações da mulher, da televisão alta e das discussões intermináveis dos jovens.
Se eu não tivesse pertencido a uma casa, se eu mesmo não tivesse acompanhado a queda dos primeiros dentes, as primeira rugas, o escassear dos cabelos, talvez acreditasse que a diferença de idade fosse mera distinção física, como a cor da pele, a altura e o sexo. Os homens teriam dezoito ou sessenta anos como têm nariz grande ou pequeno, cabelos loiros e escorridos ou castanhos e encaracolados. Seus rostos enrugados ou lisos, seus pêlos abundantes ou escassos seriam mais um detalhe biológico que eles deveriam a um dos pais ou a algum ancestral mais antigo. Mas eu pertenci a uma casa, eu vi crianças perderem seus dentes e garotas ganharem seios e ancas redondas e felizes. Vi homens passando as mãos nos cabelos e reclamando de sua queda rápida e impiedosa. Vi mulheres chocadas com a mudança de seus corpos depois da primeira gravidez. Assim aprendi que alguns traços se devem à ação do tempo e que os homens todos primeiro são crianças lindas e vivas e só depois vão se encurvando e perdendo a dignidade. É certamente por isso que nunca os invejei, esses macacos pelados e falantes. Eles se agitam como moscas, olham para seus relógios e reclamam do tempo e da vida, sempre procurando alguém, às vezes até um deus, para culpar por sua paixão e seu tormento inútil. Cada vez que um deles blasfema dentro de mim, eu me regozijo em ser tijolos e cimento, indiferente às oscilações do câmbio, ao preço dos aluguéis e aos humores femininos. É delicioso durar mais que uma vida humana e ver o quanto ela tem de decadente e estéril. Me agrada permanecer em silêncio enquanto os homens agitam suas vozes em torno das coisas inconsistentes, seus governos e títulos, sua natureza pútrida, seus deuses plurais e conflitantes.
Contudo houve um breve tempo em que mirei com certa compaixão essas feras falantes. Não digo que os invejei, não digo - deus me livre! - que cheguei ao ponto de querer ser um deles. Mas não nego que senti certa alegria em ser parte do seu mundo, em abrigar olhos que transbordavam ternura e corpos que exalavam o suor feliz e confiante do amor - claro que estou falando de um casal. Eles vinham quase todo fim de semana, intuí que moravam aqui perto e precisavam de espaço para a recém descoberta privacidade. Ela se despia de pressa e um pouco nervosa, senti que ainda não sabia como realizar aquele ato com a naturalidade e a elegância que cabem às autênticas princesas. Mas o rapaz não se apressava em contemplar e tocar seu corpo. Ele já sabia da sacralidade do toque, do cheiro, do sabor marinho e acanelado que o amor infunde no corpo da mulher. Aos poucos ela se entregava confiante, num êxtase profundo e sereno como deve ser a entrega dos pássaros à sabedoria do vento. Depois eles permaneciam abraçados, exaustos, e seus corpos se encaixavam com a precisão e delicadeza das partes que querem se tornar um todo. A aura que pairava dentro e acima dos dois, serena e viva como uma oração, ficava ainda algum tempo no quarto depois que eles saíam. O perfume dela impregnava as paredes, brindava os próximos hóspedes e também a mim mesmo, que sinto os perfumes pelo tato, como quem sente a carícia suave do vento.
Às vezes ela começava a se vestir, e ele a puxava de volta para a cama, implorando um pouco mais do silêncio quente e pulsante da sua nudez. E esse segundo encontro era mais sereno, como a maré da minguante, e os dois se olhavam nos olhos e sussuravam as palavras que separavam definitivamente aquele evento do resto do mundo. Eles não tinham como saber que eu os percebia - sou muito raro entre os meus - e se acreditavam sem nenhuma testemunha, a não ser os seus próprios olhos e ouvidos, suas mãos e bocas, e as lembranças que ecoariam depois, nos seus sonhos, nos seus minutos de mudez, no banho ou num canto qualquer sem telefone. Nesses momentos, eu parava de perceber o tempo, mesmo o meu, que se arrasta com muito mais vagar, e acreditava vislumbrar um prenúncio confiável disso que vocês chamam de eternidade. Eu sabia que aquele instante existiria novamente, se não no meu interior, pelo menos dentro dos corpos que arfavam e se consumiam ali mais uma vez, dentro de algum mistério que era mais consistente e durável que eles mesmos.
E talvez tenha sido essa a minha fraqueza: acreditar que a eternidade coubesse em algo tão mais breve que ela. Nas semanas seguintes, eu perceberia uma eternidade inteiramente fiel a si mesma, e completamente indiferente ao meu amor recém descoberto pelos homens. Ele entrou sozinho, ficou sentado na cama, fumando, depois se despiu e se esfregou no lençol, como se procurasse alguma coisa entre seu corpo e o espaço vazio que pairava acima da cama. No espelho do banheiro, ele roçava a própria pele, buscando por algo de que a pele se lembrava, mas não podia reproduzir. Deitado na cama, ele fazia perguntas silenciosas ao teto. Não chorava como ela, não batia a porta quando saía, não parecia desesperado, apenas triste. A garota é que parecia pior, com seu choro soluçado e suas blasfêmias. Ela via suas lágrimas e muita culpa no espelho. Não chegava a se despir, e também não fumava, o que talvez fosse pior, pois seu corpo desocupado relembrava com mais precisão o toque dele. E os dois cultivaram por algum tempo esse sofrimento inútil e programado. Vinham sozinhos ao quarto, tentavam reencontrar um segundo da alegria sincera, da ternura sublime que viveram ali dentro. Conseguiam apenas a indiferença muda e altiva das minhas paredes - mas acreditem: isso era à minha revelia. Se houve um tempo em que quis adentrar o mundo dos humanos, se alguma vez eu desejei vibrar o ar com a potência e a clareza de uma voz, foi nesses dias em que eles vinham sozinhos buscar o conforto inútil de uma explicação. É claro que eu não explicaria, apenas diria a verdade, que já estava no mesmo espaço que os dois, precisando apenas encontrar o mesmo momento. Se ele soubesse que ela também voltava a mim e chorava a ausência do seu riso... Se ela soubesse que ele enfumaçava minhas paredes maldizendo a falta do seu perfume... Ah, se eu tivesse uma voz, se eu pudesse revelar a urgência dos pensamentos que ecoavam mudos nessas paredes, eu apenas mandaria que cessassem aquela dor mesquinha e encontrassem para além da fugacidade do rancor a longevidade segura do perdão. Eu adivinhava as acusações amargas que eles não confessavam às minhas paredes. Ele talvez tivesse freqüentado outros quartos, com amores menos belos e mais baratos. Ela, quem sabe se encantara um momento por algum rapaz mais altivo e rico, que lhe acenara com a possibilidade de hotéis mais caros e próximos do mar. Depois tudo era arrependimento. Os quartos mais baratos, afinal, não valiam o mísero dinheiro que custavam. E o rapaz altivo podia mesmo pagar hotéis melhores, mas não despertava nela a alegria terna e segura do seu amor plebeu. Mas os dois não ousaram falar sobre seu arrependimento, e eu, que talvez pudesse uni-los com a denúncia, permaneci trancado no meu silêncio impotente, esse mesmo silêncio que fora meu orgulho e era agora meu limite e meu destino.
E hoje os homens continuam a me habitar brevemente e a falar em seus celulares e a se agitar como moscas em torno das coisas que apodrecem. Confirmo que não os invejo, mas já não encontro no meu silêncio a paz convicta que antes encontrava. Miro a eternidade com certa desconfiança. Sei que vislumbrei algo maior e mais intenso que ela, embora mais breve, e desejei por um instante algo que ela não me concedia. Esse momento de revolta bastou para me jogar dentro do tempo, e agora conheço o desgosto inútil dos insatisfeitos. Os dois já não vêm mais aqui. Não duvido que tenham cedido facilmente ao esquecimento, essa pequena morte antes da morte definitiva. E eu, que conheci o meu limite, só me resta agora esperar também por algum tipo de morte, algo que me livre das grades do tempo - as mesmas grades que eu só enxerguei por causa do que havia de imortal naqueles dois.

sábado, 10 de janeiro de 2009

O poder vermelho

Mamãe cortava, lixava, arrancava cutículas. Eu, no meu canto, só podia pensar que aquilo era bobagem. Por que não resolver tudo com um simples cortador de unha? Pele, água quente, esmalte... a dor era mesmo quase nenhuma, mas e o tempo? Por que não gastá-lo com um livro ou filme? Não seria inútil criar mais uma superfície onde já havia uma casca bastante eficiente, ainda que dura e fria? E depois, a corrosão. A segunda casca se desfazia, e era preciso gastar mais uma tarde para uma nova camada de tinta. Desde cedo eu sabia que seria muito diferente de mamãe. Minhas unhas ficariam expostas, não havia motivo para cobri-las. Os homens que se conformassem. E as mulheres, eu as olhava de cima, não desperdiçava meu tempo e meu dinheiro com cores inúteis. Eu tinha mais o que fazer com minhas tardes de domingo.

Mas, quando ele apareceu, eu vi nos seus olhos alguma coisa mais firme e convicta que minha petulância. Ele parecia satisfeito consigo mesmo, e isso me assustava, eu que tanto tentava me transformar. Eu queria descobrir que força era aquela que o sustentava, que chão ele tinha encontrado para pisar no meio de tanta onda imprevisível. Mas ele não se revelava, apenas me olhava daquele jeito limpo e sereno. E fui aos poucos percebendo que era preciso encontrar outro meio de indagá-lo, era preciso submetê-lo a algum inquérito definitivo e silencioso, e o problema é que eu não tinha nem idéia de como começar. Foi quando aquelas lembranças me vieram com a força imprevista de um pequeno impacto. Procurei mamãe, vi as suas mãos cruas e pálidas, e senti medo. Pensei em lhe perguntar por que não havia mais cor, mas logo percebi que a resposta não me saciaria. Eu estava inquieta, arisca, obscuramente revoltada. Senti que eu precisava de um ritual, não de uma explicação. Desci as escadas correndo — nem sei por que fui pelas escadas — e confesso que me senti um pouco derrotada quando paguei pelos pequenos vidros vermelhos. Mas depois, trancada no quarto, fui aos poucos recuperando minha confiança e lucidez. O contorno tinha de ser nítido; a cor, uniforme e compacta. Aquela pequena superfície tinha o dever intransferível de atestar toda a minha convicção. Saí do quarto sentindo uma alegria estranha e completamente nova para mim. Acho que pela primeira vez senti vontade de mostrar algo à mamãe. Ela pegou minhas mãos, reparou nelas, contemplou-as como se olhasse de longe o vôo de um pequeno pássaro. Senti que uma nova compreensão, profunda e silenciosa, se instalava entre nós. Achei que nem era preciso sorrir.

Quando ele me ligou, não fiquei surpresa. Eu também tinha encontrado um chão onde pisar. As ondas começavam a se tornar previsíveis, como a órbita da lua, que as gera e justifica. O ritual estava concluído.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A verdade constrangedora sobre Paulo e Sabina

A verdadeira história de Paulo e Sabina é bastante constrangedora. Paulo buscava mulheres mais bonitas e inteligentes que Sabina. Mas elas buscavam homens mais bonitos e ricos que Paulo. Sem muita alternativa, ele acabou ficando com Sabina, que não era assim tão bonita, mas pelo menos beijava bem. Também não era muito inteligente, não gostava de ler, preferia ficar no MSN conversando com as amigas. Esse gosto pela futilidade incomodava Paulo, que teria preferido uma mulher culta, que pudesse conversar sobre Dostoievski, Aldous Huxley, sobre as teorias filosóficas que ele tanto apreciava. Sabina não gostava nem de filme de arte. Achava chato, muito parado, e ninguém pedia ninguém em casamento. Filme, para ser bom, tinha que ter pelo menos um pedido de casamento. Paulo tentou, pela internet, conhecer outra garota. Tinha que haver pelo menos uma que gostasse de ler. E, de fato, havia muitas. Elas liam Clarice Lispector, eram introspectivas, tinham sensibilidade para descrever em detalhes o temperamento de uma pessoa. O rapaz ficava encantado, mas quando via as fotos, percebia que não poderia namorar uma garota daquelas — porque eram feias. Acabou se acostumando aos papos chatos de Sabina. Como não tinha nenhuma cultura, ela só sabia conversar sobre o que os amigos e parentes tinham feito durante a semana. Não falava sobre livros interessantes. Quando descrevia um filme, dizia apenas que era “muito legal” ou “muito ruim”, era incapaz de se lembrar de detalhes da trama. Se Paulo reclamava, ela respondia “Ai, eu sou burrinha, né? Ha, ha, ha...”

Um dia Paulo explodiu, e acabou contando a verdade. Nunca sonhara com Sabina. Ficara com ela apenas porque as mulheres mais bonitas e mais inteligentes que ela o haviam rejeitado. Sabina levou um susto. “Então aconteceu com você também?”, perguntou. “Como assim?”, disse Paulo, confuso. “É que eu também buscava homens mais bonitos e ricos que você, mas eles não quiseram nada comigo.” Os dois caíram na risada. O namoro era fruto das circunstâncias, nenhum deles tinha sonhado com o outro. Mas Sabina lembrou que Paulo beijava bem, e demorava um pouco para gozar — até dava para gozar com ele. E Paulo lembrou que Sabina tinha um corpinho muito gostoso, era safadinha na cama, não tinha vergonha, não ficava com grilos. Ficar com ela era bem melhor que ficar sozinho. Os dois se abraçaram, foi Paulo quem começou a falar. “Desculpa, tá. Na verdade eu tenho que agradecer por ter você. Quando eu estava sozinho, eu era muito triste...” Parou por aí porque sentiu que estava se emocionando demais. Sabina ficou comovida, seus olhos marejaram, mas não sabia direito o que dizer. Acabou dizendo “eu te amo”, o que deixou Paulo um pouco assustado. Ele se sentiu pressionado, achou que a garota queria que ele também dissesse que a amava, mas não era exatamente isso que ele queria dizer. “Eu também te amo”, acabou dizendo, sem saber como se livrar daquela pressão.

Até hoje Paulo não sabe se ama Sabina, mas os dois continuam juntos. E essa é toda a verdade sobre eles. As coisas que eles escrevem nos cartões, as coisas que eles dizem aos amigos, as coisas que eles falam um para o outro quando estão ao telefone, essas são apenas as mentiras que vocês já conhecem.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Com as mãos do diabo

Aquela noite foi a primeira em que ela se sentiu realmente esposa, porque teve de esperar. Ele não veio às dez, não veio às onze, e à meia-noite também não conheceu o calor infernal que já lhe queimava o ventre. As roupas foram para o chão. O lençol, esfregando-se em seu corpo, chegou mesmo a parecer um outro corpo, leve como de criança, porém ligeiramente áspero, como os pêlos de um adolescente. E foi mesmo a juventude, com seu ímpeto de descoberta, que tomou aquelas mãos delicadas e as fez descer sobre um ventre que já ardia como a pele do diabo.

Quando abriu a porta de casa, o marido ouviu os gemidos da secreta agonia. Quis matar o amante, depois de invejá-lo pelos gritos sinceros que ele arrancava da sua mulher. Na cozinha, escolheu a faca mais afiada. Chegou ao quarto pronto para esquartejar o próprio diabo, se ele tivesse corpo. Mas o diabo era apenas um calor úmido que agora se esvaía do corpo dela. Não havia mesmo ninguém no armário. Na cama, uma mulher exausta e um lençol molhado. O marido sabia o que tinha acontecido, ou antes, pensava que sabia. Na verdade só a mulher conhecia o segredo daquela descoberta: um segredo que ela não revelaria a um homem que se atrasara mais de duas horas. Dormiram calados. Ele aturdido pelo medo, ela com um riso nos lábios.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O Roqueiro Burocrata


Baseado em argumento de Maurício Gouveia


O Roqueiro Burocrata não começou como burocrata. Era muito jovem - treze anos - quando ganhou sua primeira guitarra. Tinha apenas sua audácia. Não comprava revistas com as cifras das canções. Achava que era questão de honra tirá-las de ouvido. Depois já não comprava discos, ouvia apenas o rádio. Queria memorizar os acordes na primeira audição. Nem sempre conseguia, mas fazia progressos vertiginosos, isso era fato.

Quando começou a tocar nas festas de amigos, não aceitava dinheiro. Queria apenas o beijo da garota mais bonita, aquela que sabia interpretar seus olhares e esperar até o fim da festa para ficar com o geniozinho da guitarra. Ele ganhava os beijos, ela ganhava a inveja das amigas, os dois saíam satisfeitos... Mas nessa época ele ainda não cantava. Achava que o amor era grande demais para caber na sua voz. 

Foi só depois do primeiro fora, só depois que a mulher mais linda do mundo preferiu um advogado de gravata e carteira assinada, que ele entendeu que o amor não era assim tão grandioso. O amor, afinal, não estava tão longe da sua humilde voz.

E foi assim que o Roqueiro Burocrata - naquela época ele ainda não era burocrata - se tornou subitamente o melhor roqueiro do mundo. Quando ele cantava, era o mundo que cantava a si mesmo pela sua voz. Quando ele tocava, era o que sobrava do mundo que encontrava lugar na sua guitarra. E nada passava indiferente à voz e às mãos do roqueiro burocrata, e ele era o melhor roqueiro do mundo, embora só quatro pessoas soubessem disso: Seu amigo Lucas, o Carlos, o Marcos Flávio, que era dono do estúdio onde eles gravavam, e a filhinha do Marcos Flavio, que ficava com o papai enquanto ele mixava as gravações. E mais umas cinco ou seis pessoas partilhavam do fato quase secreto: aqueles que compraram seu primeiro disco e jamais viram sua cara nem tinham a menor vontade de conhecê-lo, mas simplesmente sabiam, como sabemos o que é um sorriso e o que é a chuva, que ele era o melhor do mundo no que fazia.

Mas algo obscuro se passou na alma do Roqueiro Burocrata - talvez a falta de dinheiro, talvez outro tipo de desesperança. Ele começou a pensar que o sucesso não era uma questão de ser o melhor. O sucesso tinha algo a ver com contratos, horários, camarins com banheiras e ar condicionado, gravadoras que investiam 30 por cento em publicidade, direitos autorais e turnês. E a música não era mais o único lugar onde ele reencontrava sua fé. A música passou a ser um dever de casa que ele fazia em troca do seu quinhão de mundo.


E todos passaram a ouvir o Roqueiro Burocrata. Todos, menos aqueles cinco que haviam comprado seu primeiro disco e sabiam que ele era o melhor do mundo. Agora ele era conhecido das multidões, mas era apenas mais um. O estranho é que ele mesmo não notava a diferença. Porque quando subia no palco, e queria apenas cumprir seu dever, as pessoas que estavam no chou também queriam apenas cumprir algum tipo de protocolo. Estavam ali para agradar ao namorado, para esquecer os pais, para encontrar os amigos, para aproveitar a promoção de assinante de jornal, para usar os ingressos que haviam ganhando na campanha da empresa, ou por qualquer outro motivo, menos pela música. E o Roqueiro Burocrata também não tinha ido lá para fazer música. E de fato sua música não encontrava os ouvidos de ninguém, assim como as pessoas já não se encontravam nela. Quando tudo acabava, ele ligava para a mulher e dizia: "terminamos mais um amor; em breve poderei voltar para casa."

E foi assim que o Roqueiro Burocrata deixou de ser músico e se tornou apenas um roqueiro burocrata. E até hoje ele não encontrou ninguém que tenha notado a diferença.

Iceman

Na internet ninguém tem filhos, nem estrias, nem cicatriz de cesariana. Eu também era apenas um nome bonitinho — Iceman — algo que sugeria vagamente meu desprezo pelo mundo, mas não delatava minha barriguinha, minhas pernas magras e os comprimidos contra calvície. Quando nos encontramos é claro que isso veio à tona, e ela pensou em acabar tudo, pegando meu telefone e prometendo ligar qualquer dia. Mas eu era advogado, tinha um Audi e pagaria sem dificuldade uma pousada em Cabo Frio ou Búzios. Ela costumava sair com jovens bonitos, que esbanjavam cabelo e bíceps, mas viviam de pequenas pontas em novelas e eventos, tinham no máximo um Pálio, e não persistiam quando descobriam o garoto. Por isso ela teve uma pequena vertigem quando insisti em pagar a conta. Estava ao mesmo tempo revendo seus conceitos de homem ideal e se perguntando qual seria a melhor hora para falar em Daniel — se antes ou depois da primeira foda. Decidiu que depois era melhor, assim já teria me mostrado aquelas habilidades especiais que ela não aprendera na escola — nem com os pais — e justamente por isso considerava seu poder mais autêntico e confiável. Foi aliás lembrando desse poder que ela encontrou segurança para já falar em como gostava de Cabo Frio e seu mar calmo e esverdeado. Eu, que nunca dei a mínima para praia, afirmei terminantemente que amava Cabo Frio e o tal mar esverdeado. Eu amaria o mar, a areia e até as palmeiras de qualquer lugar, se a mulher que me acompanhasse tivesse a delicadeza de me dar, em troca da viagem, o merecido deleite sexual. Ela era jovem e muito bonita — a cicatriz de cesariana era insuspeitável naquele momento — e me parecia que a troca valeria a pena.

De fato valeu. Uma pequena cicatriz não faz diferença nesses momentos, a não ser pela interrogação que suscita. Ela me falou de Daniel, da pertinácia da sua bronquite e do seu desprezo inabalável por tudo que não estivesse diretamente ligado a jogos de computador. Falou das intermináveis horas-extras que ela fez para pagar o cursinho de inglês, enquanto ele matava aula para freqüentar uma lanhouse. Para arrematar, acrescentou que o estado precisava buscar mecanismos mais eficientes de controlar os jovens, antes que eles se tornassem marginais, drogados e pais solteiros. Como toda brasileira, ela achava que qualquer problema devia ser de alguma forma resolvido pelo estado, cabendo aos cidadãos apenas o dever imprescindível de ir à praia e ver televisão.


Não foi difícil perceber que aquele menino era a chave para dominá-la. Se eu me aproximasse do garoto, se o fizesse repetir algumas frases em inglês, se conseguisse convencê-lo da utilidade de um maldito diploma, ela se apegaria tanto a mim, desejaria tanto a minha permanência na sua vida, que talvez chegasse até mesmo a sentir algum prazer quando estivesse me chupando. Foi por isso que decidi comprar o playstation no natal; foi por isso que mencionei o fato de os fabricantes de games serem formados numa faculdade chamada “ciência da computação”; e foi ainda por isso que paguei a conta do oculista e os óculos ridículos que davam contorno definitivo àquela cara de néscio.

E foi assim que eu vivi o delicioso prazer de ter razão. Valéria me amou intensamente, suportou bravamente meus gritos e momentos de cólera, me chupou algumas vezes na sala, enquanto o rapaz estava trancado no quarto, cantando alguma gordinha pelo msn. Pensei várias vezes em abandoná-la, mas descobri que de vez em quando eu também gostava da sua companhia. Ela era a única namorada de quem eu não precisava esconder as garrafas de Red Label. Ela foi a única que ficou comigo depois que os médicos me explicaram o que era pancreatite aguda.

O menino é que nunca me engoliu. Depois que se formou, arrumou um emprego numa multinacional, e disse que não queria mais nos ver. Explicou que gostava muito da mãe, só que não suportava sua condescendência com meu autoritarismo. Mas de vez em quando ele escreve pedindo algum dinheiro, e Valéria se lembra de como ser carinhosa e usar uma lingerie. Acho que somos uma família.