De todos os homens que conheci, o menos interessante era aquele que não adivinhava meus pensamentos. Desde o início ficou claro que a gente nunca entraria numa sintonia profunda. Na faculdade ele costumava me oferecer carona, dizendo que passava pela Praça Dezessete e não custava nada me deixar numa das esquinas. Quando ele parava no sinal, eu sempre comentava que minha casa era apenas a duas quadras de distância, na Rua Mochileiro Chileno. Eu pensava que ele ia falar alguma coisa tipo: é logo ali, eu contorno a praça e te deixo lá. Mas o idiota não sacava minha indireta, e respondia: que bom, assim você não tem que andar muito, né. Ele não tinha o menor talento para ler nas entrelinhas.
Uma vez a gente estava na chopada, e ele veio para o meu lado meio bêbado, com um papo estranho: sabia que eu te acho uma gracinha? Sério mesmo, você tem um charme assim, tipo mulher de filme antigo... Eu pensei: porra! Filme antigo? Eu mereço uma cantada melhor, né! Daí comecei a despistar e a encarar outros garotos, para ver se ele se tocava que eu não estava a fim dele, mas o pateta não percebeu, e continuou com aquela ladainha: você lembra um pouco a Eva Jarden, ou aquela atriz brasileira, como é mesmo o nome dela? Paula Zembinsque? Tânia Buginsque? E eu já estava até dando papo para os calouros, mas ele voltava toda hora, cada vez com um nome mais louco, Regina Faranges, Juliana Bitmarche? Como ninguém chegava em mim, eu vi que ia ter que pegar aquele trolha mesmo, e resolvi beijá-lo. Durante alguns minutos fiquei até contente, porque ele fez uma carinha de felicidade que eu achei muito bonitinha. Mas depois eu vi que a Ronize tinha conseguido pegar o Marcelo e fiquei morrendo de ódio! Aquela vaca da Ronize que nem tinha peito! O Marcelo deve ter entrado na dela só porque ela era cheia de tatuagem e toda metida a moderninha! Fiquei muito puta, peguei o homem que não adivinhava, que na época nem podia ser chamado de homem, era só um moleque que sabia dirigir, e fui para perto do Marcelo. Lasquei cada beijo incandescente, cada chupão no pescoço dele, que o Marcelo deve ter morrido de inveja. Na certa pensou em chegar em mim na próxima chopada. Mas quem acabou ganhando foi o idiota que não adivinhava, que nem sonhava que eu estava fazendo aquilo tudo só para atiçar a vontade do Marcelo.
Depois desse dia, ele começou a me beijar sempre que me deixava na Praça Dezessete, e eu ficava me perguntando quando ele ia perceber que eu queria que ele me deixasse na porta de casa. Quando eu não suportava mais aquela aflição, acabei falando: por que você não me deixa na porta de casa? É só contornar a praça e entrar na transversal. Ele disse: tranquilo, eu te deixo lá. Mas aquilo me deu uma estranha vergonha, eu me senti humilhada, derrotada pela minha própria ansiedade. Não tinha graça falar essas coisas em voz alta. Ele não estava ficando comigo? Por que ele não podia adivinhar?! Acho que foi aí que eu comecei a fantasiar um homem que pudesse ler meus pensamentos, que compreendesse o que eu queria sem que eu precisasse falar. Mas quanto mais eu sonhava com esse estranho telepata, menos eu falava, e mais o homem que não adivinhava fazia burrada.
No aniversário da minha mãe, eu achei que ele ia levar um presente bonitinho, fazer um elogio descente, talvez até falar que ela parecia uma atriz antiga, por que não? Se mamãe ficasse contente eu não ia ligar, apesar de ser um comentário ridículo. Mas o homem que não adivinhava não levou presente nenhum, e também não falou nada interessante, só deu os parabéns e ficou na sala falando de futebol com meus tios. Eu fiquei com vontade de sumir da vida dele, de nunca mais aceitar carona, só que o ônibus estava dois e oitenta, e, se eu economizasse, em duas semanas já dava para uma escova.
Depois meus tios ficaram me perguntando se ele era meu namorado, e até a minha mãe perguntou se a gente estava namorando, e como ela acrescentou que ele era bonitinho, eu acabei falando que sim. Afinal, ele já me levava em casa quase todo dia, já conhecia minha família, e o babaca do Marcelo já tinha pegado metade das meninas da faculdade, e parecia não dar a mínima para mim. Eu precisava de um namorado, e na falta de coisa melhor, ia ser aquele néscio mesmo. Daí comecei a beijá-lo na frente das meninas, para marcar território, e ele ficou todo bobo, falou que a gente já estava junto há muito tempo, e que ia começar a me apresentar aos amigos como namorada. Eu pensei: como esse moleque é ingênuo. Ele nem imagina que bastaria uma palavra de um cara como o Marcelo para eu nunca mais olhar na cara dele, e não lembrar nem em sonho que ele tinha passado a contornar a praça e me deixar na porta de casa. Mas essa palavra nunca apareceu, e o Marcelo, depois de pegar todo mundo, inclusive eu, acabou firmando com uma patricinha alta, de peitos enormes, que dava para ver que era silicone, mas ele parecia não ligar.
Depois da formatura começou aquela pressão da minha família para eu sair de casa, e eu fiquei puta, porque queria usar o dinheiro do estágio para colocar silicone. O homem que não adivinhava tinha conseguido um empreguinho legal e alugado um quarto-e-sala no centro. Quando ele me chamou para morar com ele, eu sabia que ele nunca ia suspeitar que eu estava aceitando só para ter como sair da casa dos meus pais. Pensei em ficar um tempo com ele, até conseguir um homem ou um apartamento melhor. Como eu imaginava, ele foi sonso o bastante para acreditar que eu o amava. Naquela época eu já estava começando a entender que o fato de ele não adivinhar meus pensamentos afinal poderia ser uma vantagem.
Resolvi dar um tempo no apartamento dele, e acho que nem preciso contar que foi um desentendimento atrás do outro. Quando eu queria sair para dançar, ele achava que eu queria transar. Quando eu queria transar, ele achava que eu queria sair para comer fora. E quando eu estava tomando coragem para me separar, ele achou que eu queria um filho. Claro que eu não queria filho, o problema é que minhas amigas já estavam parindo seus brunos e mateuses, e elas pareciam tão felizes que eu não me culpo por ter pensado que eu também precisava engravidar. Imitar minhas amigas sempre foi meu maior prazer. O pior de tudo foi que, mesmo com aquele barrigão de seis meses, o homem que não adivinhava não desconfiou que a gente precisava mudar. Eu tive que conversar com a minha família, e meus pais deram entrada num apartamento de dois quartos, deixando para a gente só as prestações. Vou confessar uma coisa: tinha hora que não dava para perceber se ele não adivinhava mesmo ou se apenas se fazia de tonto.
O fato é que tivemos o filho, e conseguimos passar para um apartamento com mais espaço. Hoje que o Marcelinho está maior, eu tenho mais tempo para mim, e às vezes fico me perguntando por que me casei com o homem que não adivinhava. Acho que no fundo foi pelo mesmo motivo que todo mundo se casa: o cara que eu realmente desejava não quis nada comigo e, se eu ficasse sozinha, minhas amigas me veriam como uma fracassada. Só que eu estou cansada de pensar nessas coisas, não quero mais me preocupar com bobagem. Daqui a pouco ele chega, eu vou beijá-lo carinhosamente e dizer que estava morrendo de saudade. O homem que não adivinhava nunca vai perceber que eu não sou feliz, e vou poder passar o resto da vida acreditando que ele é culpado pela minha infelicidade.
O mais importante nessa Estória é que o autor leva a gente no bico e também não advinhamos o final.Era de se esperar algo mais contundente, mais inusitado, coisa assim, mas a moça entre competir com suas amigas e assumir sua desgraça matrimonial, prefere ser infeliz. E o autor do texto que nos remete a essa situação quase nos faz imaginar que é uma história vivida por ele. O que na verdade pouco importa. O mais relevante é a forma de contar o caso. Um jeito bem ronaldiano de ficar perplexo com algo banal. Enfim, li até o fim o texto e isso basta para o autor. O importante é ser lido. As histórias são todas iguais. mesmo que sejam diferentes.
ResponderExcluirEu,na condição de Mulher, acredito que você adivinhou meus pensamentos. Gostei e é uma pena que seja assim mesmo!
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