quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O Roqueiro Burocrata


Baseado em argumento de Maurício Gouveia


O Roqueiro Burocrata não começou como burocrata. Era muito jovem - treze anos - quando ganhou sua primeira guitarra. Tinha apenas sua audácia. Não comprava revistas com as cifras das canções. Achava que era questão de honra tirá-las de ouvido. Depois já não comprava discos, ouvia apenas o rádio. Queria memorizar os acordes na primeira audição. Nem sempre conseguia, mas fazia progressos vertiginosos, isso era fato.

Quando começou a tocar nas festas de amigos, não aceitava dinheiro. Queria apenas o beijo da garota mais bonita, aquela que sabia interpretar seus olhares e esperar até o fim da festa para ficar com o geniozinho da guitarra. Ele ganhava os beijos, ela ganhava a inveja das amigas, os dois saíam satisfeitos... Mas nessa época ele ainda não cantava. Achava que o amor era grande demais para caber na sua voz. 

Foi só depois do primeiro fora, só depois que a mulher mais linda do mundo preferiu um advogado de gravata e carteira assinada, que ele entendeu que o amor não era assim tão grandioso. O amor, afinal, não estava tão longe da sua humilde voz.

E foi assim que o Roqueiro Burocrata - naquela época ele ainda não era burocrata - se tornou subitamente o melhor roqueiro do mundo. Quando ele cantava, era o mundo que cantava a si mesmo pela sua voz. Quando ele tocava, era o que sobrava do mundo que encontrava lugar na sua guitarra. E nada passava indiferente à voz e às mãos do roqueiro burocrata, e ele era o melhor roqueiro do mundo, embora só quatro pessoas soubessem disso: Seu amigo Lucas, o Carlos, o Marcos Flávio, que era dono do estúdio onde eles gravavam, e a filhinha do Marcos Flavio, que ficava com o papai enquanto ele mixava as gravações. E mais umas cinco ou seis pessoas partilhavam do fato quase secreto: aqueles que compraram seu primeiro disco e jamais viram sua cara nem tinham a menor vontade de conhecê-lo, mas simplesmente sabiam, como sabemos o que é um sorriso e o que é a chuva, que ele era o melhor do mundo no que fazia.

Mas algo obscuro se passou na alma do Roqueiro Burocrata - talvez a falta de dinheiro, talvez outro tipo de desesperança. Ele começou a pensar que o sucesso não era uma questão de ser o melhor. O sucesso tinha algo a ver com contratos, horários, camarins com banheiras e ar condicionado, gravadoras que investiam 30 por cento em publicidade, direitos autorais e turnês. E a música não era mais o único lugar onde ele reencontrava sua fé. A música passou a ser um dever de casa que ele fazia em troca do seu quinhão de mundo.


E todos passaram a ouvir o Roqueiro Burocrata. Todos, menos aqueles cinco que haviam comprado seu primeiro disco e sabiam que ele era o melhor do mundo. Agora ele era conhecido das multidões, mas era apenas mais um. O estranho é que ele mesmo não notava a diferença. Porque quando subia no palco, e queria apenas cumprir seu dever, as pessoas que estavam no chou também queriam apenas cumprir algum tipo de protocolo. Estavam ali para agradar ao namorado, para esquecer os pais, para encontrar os amigos, para aproveitar a promoção de assinante de jornal, para usar os ingressos que haviam ganhando na campanha da empresa, ou por qualquer outro motivo, menos pela música. E o Roqueiro Burocrata também não tinha ido lá para fazer música. E de fato sua música não encontrava os ouvidos de ninguém, assim como as pessoas já não se encontravam nela. Quando tudo acabava, ele ligava para a mulher e dizia: "terminamos mais um amor; em breve poderei voltar para casa."

E foi assim que o Roqueiro Burocrata deixou de ser músico e se tornou apenas um roqueiro burocrata. E até hoje ele não encontrou ninguém que tenha notado a diferença.

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