De dento da moldura, ele me olhava. Seriedade, autoridade, prepotência eram palavras que eu desconhecia. Eu via apenas os olhos claros e imóveis do retrato, aos quais minha mãe ia atribuindo temor ou ternura, conforme seu interesse. Se eu arriscasse um mergulho no rio, “o que seu pai pensaria de uma loucura como essa?!” Se eu fechasse uma prova de matemática, “como seu pai ficaria feliz!” Aos poucos fui aprendendo a medir minhas ações pelos olhos de uma fotografia. Tive amigos que odiavam o próprio pai, e buscavam ansiosamente um emprego que lhes permitisse sair de casa. Eu não podia odiá-lo nem amá-lo — do alto da parede, ele era distante, plano, inacessível a meus sentimentos.
Mas não digo que nos estranhássemos. Acabei descobrindo que mamãe não era a única a adivinhar emoções por trás do seu rosto inerte. Quando tomei certa liberdade com nossa empregada, me pareceu que ele aprovava silenciosamente. Acreditei captar-lhe uma euforia contida, quando um amigo mais velho começou a me ensinar a dirigir. Um dia mamãe me mandou usar calças compridas e camisa de gola para jantar. Apareceu um senhor meio curvado, apresentado com adjetivos favoráveis, junto à estranha previsão de que nos daríamos bem. Naquela noite derramei comida na mesa, falei alto, relembrei constantemente a figura altiva de meu pai. Citei sua seriedade, sua austeridade moral, como se eu não as conhecesse apenas pelas palavras de minha mãe. Eu mesmo não compreendia a razão da minha insólita fúria, mas quando o sujeito se despediu, um tanto encabulado, ainda mais curvado que na entrada, senti pela primeira vez que o retrato me transmitia um olhar triunfal. Era o início de uma cumplicidade secreta, já não acessível a mamãe e suas frases tortuosas.
Nos anos seguintes, papai passou a aprovar minha juventude tranqüila, meus passeios de carro, minha lenta aprendizagem com a bebida, o bilhar e as garotas. Achei que nossa relação manteria a sintonia, até o dia ingrato em que olhei para o retrato e não compreendi o olhar que ele me devolvia: seria aprovação desdenhosa, reprovação sumária ou simplesmente indiferença? Chegava a época do vestibular, e eu tinha escolhido Artes Plásticas. Mamãe protestava incessantemente, pois acreditava que uma facilidade para desenho seria mais bem explorada em arquitetura — ou mesmo em moda, desde que observadas certas reservas. Mas a carreira incerta das artes era algo que meu pai decididamente não aprovaria. Pela primeira vez, ao perscrutar o retrato, eu não sabia dizer se ela tinha razão.
Depois veio a questão com Lucélia. Mamãe não aprovava nosso casamento, dizia que o temperamento instável da garota me traria problemas no futuro. Reclamava do cigarro, acusava-a de não saber cozinhar — no que tinha plena razão — e nesse debate também não consegui intuir de que lado papai estaria.
Um dia estaquei na sala e fiquei a encará-lo, mudo, como se esperasse uma resposta definitiva. Não uma palavra, mas um sinal nítido, o princípio de um código que me permitiria deduzir suas intenções para o resto da vida. O silêncio me surpreendeu com uma clareza inacreditável. Na sua indiferença pálida, o retrato tentava me transmitir que não era mais hora de consultá-lo. Me pareceu que a foto queria abdicar da função de oráculo, e se contentar com o cargo modesto de lembrança. Mas a súbita transformação me perturbava. Não consegui conter a revolta; um silêncio morto queria se instalar onde antes havia um diálogo fértil e profundo. Senti-me traído, abandonado, praticamente insultado. Tomei o retrato nas mãos, vociferei impropérios, acusei a imagem de ser apenas o espelho da minha loucura, uma ilusão que eu herdara de minha mãe, e minha mãe herdara de uma ausência. Revoltado contra sua passividade orgulhosa, espanquei o retrato, bati-o contra as costas de uma cadeira, depois o rasguei, cortei minhas mãos no vidro estilhaçado, talvez acreditando, por desespero, que se pode destruir um passado anulando um de seus símbolos. Quando mamãe entrou na sala, consegui conter o choro, não as lágrimas. Ela apenas se abaixou e começou a catar os cacos. Surpreso, percebi que não estava contrariada. Também estava farta de ver o presente governado pelo fantasma que ela mesma havia projetado atrás daquela imagem vazia. Recolhemos juntos os estilhaços, varremos o chão, colocamos o vidro para fora. A grande moldura, que me disseram ser de jacarandá, eu venderia numa feira de antigüidades. Mas algo me deteve no momento de fechar o negócio. Não foi o preço baixo — o dinheiro não me interessava, eu queria apenas me livrar do que restava de uma revolta estéril e obscura — foi antes o insólito pressentimento de que um dia eu também seria retrato. A emoção que pulsava no meu peito, a força misteriosa que enchia e esvaziava meus pulmões também se tornaria rigidez, frieza, ausência. Segurei a moldura diante de mim, tentei imaginar meu rosto imobilizado dentro dos seus limites. Especulei que um dia talvez um filho precisasse do meu rosto ali dentro, dos meus olhos vazios de sentimento para que ele pudesse projetar e compreender os seus. Livrar-me da moldura não me livraria dessas conclusões. Minha decisão súbita decepcionou o comprador. Apoiei a moldura no ombro, voltei para casa com passos lentos e firmes. O peso do limite eu aprenderia a suportar paulatinamente, até que eu fosse também um limite, uma imagem contida num retângulo de madeira. Hoje a moldura me aguarda num quartinho dos fundos, e eu aguardo o dia em que me tornarei o homem que quero emoldurar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário