Estou usando uma nova técnica com meu filho. Falo o tempo todo no irmão dele, fico repetindo que ele é bem sucedido, que tem um emprego legal, já está economizando para comprar um carro e essa coisa toda. Meu filho vai ter que entender, ele precisa arranjar um emprego, precisa largar essa obsessão pela música.
Semana
passada ele entrou aqui carregando o violão. Eu perguntei onde ele
estava.
– Tocando
com os amigos.
– Ah,
é? Tocando com os amigos? Escuta: seu irmão te falou o lance
maneiro lá na empresa dele?
– Que
lance?
– Lá
tem um prédio só de estacionamento. Ninguém deixa o carro na rua.
A empresa tem estacionamento para os funcionários.
– Ah,
legal.
– Calma,
cara! Ainda não falei tudo. O prédio tem elevador, elevador para
carro! Ninguém fica manobrando naquelas rampinhas insuportáveis.
Você entra no elevador e chega no seu andar. Ponto final.
– Nossa,
deve ser muito legal.
– Claro
que é legal, rapaz. Só é. Se liga. Elevador para carro!
Ele
não demonstrou, mas sei que ele ficou impressionado. Tenho certeza
que ele vai acabar entendendo, só preciso continuar falando no
irmão, insistir nessa tecla. Outro dia eu desliguei a televisão e
ele sentou aqui um minuto. Já notei que ele não gosta de televisão.
Aproveitei para falar mais uma vez no emprego do Marcelo.
– Seu
irmão te falou o lance lá da empresa?
– Que
lance?
– O
ônibus pega todo mundo em casa. Ele não fica esperando ônibus,
cara. A empresa tem seu próprio ônibus.
– Então
para quê o estacionamento?
– Como
assim, para quê o estacionamento? Mas você não entende nada,
mesmo, hem! Seu irmão vai comprar um carro e vai usar o
estacionamento. Ele já fez uma poupança. Está econimizando para a
entrada.
– Ah,
tá.
– Não
é “tá”, não, rapaz. É muito mais que isso: o ônibus tem ar
condicionado! E a empresa também. A empresa tem ar condicionado
central, ninguém fica nesse calor insuportável!
– Não
precisa gritar, eu acredito.
– Mas
não é para acreditar, garoto. Você tem é que entender. Você
também tem capacidade para arranjar um emprego desses. Basta se
empenhar, correr atrás!
– Mas
eu já tenho emprego. Eu não toquei lá no Suruba's?
– Ah,
meu filho, olha só como você fala. Toquei lá no Suruba's! Até
parece que isso é um emprego de verdade. Toquei lá no Suruba's!
Pelo amor de deus, vê se cresce.
– Tá,
pai, já entendi. Agora eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o
pessoal.
– Pensa
no ônibus, meu filho. Tem ar condicionado!
Coitado
do meu filho. Ele se encontra com os amigos para falar de música e
diz que tem uma reunião. Acho que a cabeça dele não está muito
legal. O problema é que uma terapia deve custar uma fortuna. Não
tem outro jeito, preciso continuar com a minha técnica. Uma hora ele
vai entender. E quando o Marcelo estiver por aqui, vou falar com
ele: “Dá um toque no seu irmão, cara. O moleque precisa acordar,
precisa largar esse violão.” O Marcelo vai me ajudar, tudo vai se
resolver, eu tenho certeza.
Ainda
bem que eu tenho o Marcelo. Ele me dá alegrias que compensam as
loucuras do caçula. Quando ele deu entrada no carro, a mãe dele
ficou tão feliz que nem conseguia falar. Ele passou aqui, levou a
gente para uma volta. Eu ficava passando a mão no carro, sentindo
aquela sensação gostosa de coisa nova, de coisa que saiu da
fábrica. Lembrei do meu velho Monza e bateu uma saudade danada. Hoje
não tenho mais carro, mas não ligo para isso. A única coisa de que
eu preciso nessa vida é ver o meu caçula num bom emprego. Não
tenho mais ambição, só quero o bem dos meninos.
Não
falei nada para o Marcelo, mas enquanto eu passava a mão no carro,
sentindo aquele brilho, aquela textura refrescante, fiquei
mentalizando que o Vanesso também vai se arranjar, vai comprar um
bom carro, alugar uma quitinete bacana, mais perto da cidade. Ele não
é burro, só precisa se dedicar. Minha mulher me abraçou: – Você
está pensativo, meu bem. O que foi? – É só felicidade, meu amor.
Só felicidade. Olha esse estofamento, essa porta-luva de duas abas,
que coisa linda!
– Você
viu o som, pai? É para pendraive! Você coloca o pendraive aqui, ó!
Você coloca assim, ó!
– Eu
sei, meu filho, eu sei. Não sou tão velho, sei o que é um
pendraive.
Aquele
foi o meu grande momento. Estive no paraíso por alguns minutos.
Infelizmente voltei para casa, e lá estava o Vanesso, com aquele
aparelhinho no ouvido.
– Onde
você estava, meu filho?
– Dando
uma volta.
– Dando
uma volta? Por que você não estava aqui, para ver o carro do seu
irmão? O som tem pendraive, você poderia colocar essas músicas do
seu aparelhinho.
– Você
deve estar querendo dizer que o som lê pendraive.
– Lê
pendraive, tem pendraive, que diferença isso faz! O importante é
ter um carro daquele. Você já é um adulto, devia saber disso.
– Ah,
tá, desculpa.
Agora
ele pegou essa mania de pedir desculpa. Eu odeio quando ele faz isso,
me dá vontade de descer a mão na cara dele. Liguei a televisão bem
alto, para ele sair da sala. Isso nunca falha. Ele subiu para o
quarto e ficou na dele. Não sei mais o que fazer. Acho que está até
batendo uma depressão. Quando eu chego em casa e não vejo meu
filho, sei que ele está com aquela molecada, brincando de ser
músico. Depois ele chega, se tranca no quarto e fica a noite inteira
ouvindo aquele aparelhinho insuportável. Não sei como ele aguenta.
Acho
que estou chegando no meu limite. Talvez eu é que esteja precisando
de terapia, mas deve custar os olhos da cara. Não posso gastar
dinheiro com essa frescura, tenho que me segurar. Por isso resolvi
ligar para o Marcelo, para bater um papo, descontrair, falar do carro
novo. Mas eu senti que ele estava esquisito, desconversando, meio
desanimado.
– O
que foi meu filho? Você está estranho.
– Não
é nada, pai.
– Desembucha,
rapaz. Eu sou seu pai, você pode contar comigo para qualquer coisa.
– Pô,
pai, sabe o que é? Eles cobram para a gente estacionar o carro lá
na empresa. Só descobri essa semana.
– O
que é isso, meu filho? O que você está falando? Isso não faz
sentido!
– Pois
é, pai. Eu também fiquei chocado. Só gerente pode estacionar de
graça. Empregado tem que pagar.
– Mas
não pode ser. Isso é sacanagem demais!
– Só
é. Por isso eu estou meio chateado, acho que vou voltar a ir de
ônibus. No fim das contas não compensa estacionar o carro lá.
– Não,
meu filho. Não fala isso. Agora você tem o seu carro. Você tem que
ir de carro.
– É,
não sei... Ainda não sei o que vou fazer, vamos ver como fica no
fim do mês. Ainda estou pagando as prestações do carro, né. E o
estacionamento é caro para diabo.
– Meu
deus, que cretinice! Não acredito que o dono da empresa faz isso com
os empregados.
– Pois
é... O carro cabe direitinho dentro do elevador, você tem que ver, pai.
Eu queria até levar você lá. Mas fica tão caro.
– Ah,
meu filho. Não fala assim. As coisas vão melhorar, você vai chegar
a gerente, eu tenho certeza.
– É
pai, eu sei, eu sei. Deixa para lá. Outro dia a gente conversa mais.
– Amanhã
eu te ligo, meu filho. Não fica triste, não. Isso vai mudar, eu
tenho certeza.
Quando
desliguei estava quase infartando. Aquilo era canalhice demais!
Cobrar estacionamento dos próprios empregados? Que tipo de empresa
faz uma sacanagem dessas! Deve haver algum tipo de lei contra isso,
não é possível. Sentei no sofá, senti meu coração vibrando como
um tarol, minhas mãos tremendo. Minha mulher entrou na sala de
repente.
– Você
vai assim mesmo, amor?
– O
quê?
– O
chou do Vanesso, você não lembra? O Vanesso vai tocar com a banda
no bar Penicão.
– Vanesso?
Ah, meu deus, eu tinha esquecido completamente.
– Põe
uma calça pelo menos. Você está com essa bermuda o dia inteiro.
– Tá,
vou me trocar, pode deixar.
Vesti
a calça, e saímos. Eu tinha esquecido completamente desse chou –
que não era chou coisa nenhuma, era só o Vanesso tocando com
aquela molecada. Mas pelo menos eu ia me distrair, esquecer um pouco
a tremenda sacanagem que fizeram com o Marcelo. Não dava nem para
acreditar, cobrar estacionamento dos próprios empregados! Devia
haver alguma lei contra isso. Se eu tivesse ao menos coragem de
conversar com um advogado, tenho certeza que eu descobriria alguma
coisa. Mas eu não tinha coragem de conversar com advogado, nem o
Marcelo teria coragem de acionar a empresa, então era melhor
esquecer.
Sentei
com minha mulher e pedi logo uma caipirinha. O Vanesso acenou para a
gente, começou a tocar um sambinha. Minha mulher falou o de sempre:
não vai beber muito, não sei o quê. É por isso que eu não gosto
de sair com minha mulher, ela fala sempre as mesmas coisas, já sei
até as frases que ela vai usar. Pedi mais uma para ver se eu
esquecia minha mulher também. Fui bebendo e sentindo aquele
relaxamento gostoso, aquela soltura. Comecei a ouvir a música como
se ela fosse uma coisa muito minha, como se já estivesse dentro de
mim e nem precisasse de ouvido para chegar na minha cabeça. De
repente escutei aquelas frases:
Flanando
por entre automóveis
da
garagem vertical.
Curtindo
a brisa suave
do
ar condicionado central,
Lá
vai meu irmão,
lá
vai meu herói.
Lá
vai meu irmão,
fenomenal.
O
que era aquilo? Eu nunca tinha ouvido aquela música. Só podia ser
coisa do Vanesso! Mas a loucura toda é que, de alguma forma, a
música era minha também. Era sobre o Marcelo, meu filho preferido,
meu herói. Aquilo era muito meu! Fechei os olhos e cantei
naturalmente, como se eu soubesse a letra de cor; como se eu nunca
tivesse ouvido outra coisa na vida.
Lá
vai meu irmão,
lá
vai meu herói.
Lá
vai meu irmão,
fenomenal.
Quando
reabri os olhos, minha mulher estava batendo palmas, toda
entusiasmada. – Você já conhecia? Já conhecia e não me falou
nada! Como você conseguiu guardar segredo?
Claro
que eu não conhecia coisa nenhuma. Mas senti que meus olhos estavam
molhados. Eu estava chorando, nem sei se de tristeza ou de alegria.
E, para falar a verdade, não quis saber. Cerrei os olhos e
continuei cantando.
Lá
vai meu irmão,
lá
vai meu herói.
Lá
vai meu irmão,
fenomenal.
Fenomenal!
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