quinta-feira, 26 de maio de 2016

Flanando por entre automóveis



Estou usando uma nova técnica com meu filho. Falo o tempo todo no irmão dele, fico repetindo que ele é bem sucedido, que tem um emprego legal, já está economizando para comprar um carro e essa coisa toda. Meu filho vai ter que entender, ele precisa arranjar um emprego, precisa largar essa obsessão pela música.

Semana passada ele entrou aqui carregando o violão. Eu perguntei onde ele estava.
Tocando com os amigos.
Ah, é? Tocando com os amigos? Escuta: seu irmão te falou o lance maneiro lá na empresa dele?
Que lance?
Lá tem um prédio só de estacionamento. Ninguém deixa o carro na rua. A empresa tem estacionamento para os funcionários.
Ah, legal.
Calma, cara! Ainda não falei tudo. O prédio tem elevador, elevador para carro! Ninguém fica manobrando naquelas rampinhas insuportáveis. Você entra no elevador e chega no seu andar. Ponto final.
Nossa, deve ser muito legal.
Claro que é legal, rapaz. Só é. Se liga. Elevador para carro!
Ele não demonstrou, mas sei que ele ficou impressionado. Tenho certeza que ele vai acabar entendendo, só preciso continuar falando no irmão, insistir nessa tecla. Outro dia eu desliguei a televisão e ele sentou aqui um minuto. Já notei que ele não gosta de televisão. Aproveitei para falar mais uma vez no emprego do Marcelo.
Seu irmão te falou o lance lá da empresa?
Que lance?
O ônibus pega todo mundo em casa. Ele não fica esperando ônibus, cara. A empresa tem seu próprio ônibus.
Então para quê o estacionamento?
Como assim, para quê o estacionamento? Mas você não entende nada, mesmo, hem! Seu irmão vai comprar um carro e vai usar o estacionamento. Ele já fez uma poupança. Está econimizando para a entrada.
Ah, tá.
Não é “tá”, não, rapaz. É muito mais que isso: o ônibus tem ar condicionado! E a empresa também. A empresa tem ar condicionado central, ninguém fica nesse calor insuportável!
Não precisa gritar, eu acredito.
Mas não é para acreditar, garoto. Você tem é que entender. Você também tem capacidade para arranjar um emprego desses. Basta se empenhar, correr atrás!
Mas eu já tenho emprego. Eu não toquei lá no Suruba's?
Ah, meu filho, olha só como você fala. Toquei lá no Suruba's! Até parece que isso é um emprego de verdade. Toquei lá no Suruba's! Pelo amor de deus, vê se cresce.
Tá, pai, já entendi. Agora eu tenho que ir. Tenho uma reunião com o pessoal.
Pensa no ônibus, meu filho. Tem ar condicionado!
Coitado do meu filho. Ele se encontra com os amigos para falar de música e diz que tem uma reunião. Acho que a cabeça dele não está muito legal. O problema é que uma terapia deve custar uma fortuna. Não tem outro jeito, preciso continuar com a minha técnica. Uma hora ele vai entender. E quando o Marcelo estiver por aqui, vou falar com ele: “Dá um toque no seu irmão, cara. O moleque precisa acordar, precisa largar esse violão.” O Marcelo vai me ajudar, tudo vai se resolver, eu tenho certeza.
Ainda bem que eu tenho o Marcelo. Ele me dá alegrias que compensam as loucuras do caçula. Quando ele deu entrada no carro, a mãe dele ficou tão feliz que nem conseguia falar. Ele passou aqui, levou a gente para uma volta. Eu ficava passando a mão no carro, sentindo aquela sensação gostosa de coisa nova, de coisa que saiu da fábrica. Lembrei do meu velho Monza e bateu uma saudade danada. Hoje não tenho mais carro, mas não ligo para isso. A única coisa de que eu preciso nessa vida é ver o meu caçula num bom emprego. Não tenho mais ambição, só quero o bem dos meninos.
Não falei nada para o Marcelo, mas enquanto eu passava a mão no carro, sentindo aquele brilho, aquela textura refrescante, fiquei mentalizando que o Vanesso também vai se arranjar, vai comprar um bom carro, alugar uma quitinete bacana, mais perto da cidade. Ele não é burro, só precisa se dedicar. Minha mulher me abraçou: – Você está pensativo, meu bem. O que foi? – É só felicidade, meu amor. Só felicidade. Olha esse estofamento, essa porta-luva de duas abas, que coisa linda!
Você viu o som, pai? É para pendraive! Você coloca o pendraive aqui, ó! Você coloca assim, ó!
Eu sei, meu filho, eu sei. Não sou tão velho, sei o que é um pendraive.
Aquele foi o meu grande momento. Estive no paraíso por alguns minutos. Infelizmente voltei para casa, e lá estava o Vanesso, com aquele aparelhinho no ouvido.
Onde você estava, meu filho?
Dando uma volta.
Dando uma volta? Por que você não estava aqui, para ver o carro do seu irmão? O som tem pendraive, você poderia colocar essas músicas do seu aparelhinho.
Você deve estar querendo dizer que o som lê pendraive.
Lê pendraive, tem pendraive, que diferença isso faz! O importante é ter um carro daquele. Você já é um adulto, devia saber disso.
Ah, tá, desculpa.
Agora ele pegou essa mania de pedir desculpa. Eu odeio quando ele faz isso, me dá vontade de descer a mão na cara dele. Liguei a televisão bem alto, para ele sair da sala. Isso nunca falha. Ele subiu para o quarto e ficou na dele. Não sei mais o que fazer. Acho que está até batendo uma depressão. Quando eu chego em casa e não vejo meu filho, sei que ele está com aquela molecada, brincando de ser músico. Depois ele chega, se tranca no quarto e fica a noite inteira ouvindo aquele aparelhinho insuportável. Não sei como ele aguenta.
Acho que estou chegando no meu limite. Talvez eu é que esteja precisando de terapia, mas deve custar os olhos da cara. Não posso gastar dinheiro com essa frescura, tenho que me segurar. Por isso resolvi ligar para o Marcelo, para bater um papo, descontrair, falar do carro novo. Mas eu senti que ele estava esquisito, desconversando, meio desanimado.
O que foi meu filho? Você está estranho.
Não é nada, pai.
Desembucha, rapaz. Eu sou seu pai, você pode contar comigo para qualquer coisa.
Pô, pai, sabe o que é? Eles cobram para a gente estacionar o carro lá na empresa. Só descobri essa semana.
O que é isso, meu filho? O que você está falando? Isso não faz sentido!
Pois é, pai. Eu também fiquei chocado. Só gerente pode estacionar de graça. Empregado tem que pagar.
Mas não pode ser. Isso é sacanagem demais!
Só é. Por isso eu estou meio chateado, acho que vou voltar a ir de ônibus. No fim das contas não compensa estacionar o carro lá.
Não, meu filho. Não fala isso. Agora você tem o seu carro. Você tem que ir de carro.
É, não sei... Ainda não sei o que vou fazer, vamos ver como fica no fim do mês. Ainda estou pagando as prestações do carro, né. E o estacionamento é caro para diabo.
Meu deus, que cretinice! Não acredito que o dono da empresa faz isso com os empregados.
Pois é... O carro cabe direitinho dentro do elevador, você tem que ver, pai. Eu queria até levar você lá. Mas fica tão caro.
Ah, meu filho. Não fala assim. As coisas vão melhorar, você vai chegar a gerente, eu tenho certeza.
É pai, eu sei, eu sei. Deixa para lá. Outro dia a gente conversa mais.
Amanhã eu te ligo, meu filho. Não fica triste, não. Isso vai mudar, eu tenho certeza.
Quando desliguei estava quase infartando. Aquilo era canalhice demais! Cobrar estacionamento dos próprios empregados? Que tipo de empresa faz uma sacanagem dessas! Deve haver algum tipo de lei contra isso, não é possível. Sentei no sofá, senti meu coração vibrando como um tarol, minhas mãos tremendo. Minha mulher entrou na sala de repente.
Você vai assim mesmo, amor?
O quê?
O chou do Vanesso, você não lembra? O Vanesso vai tocar com a banda no bar Penicão.
Vanesso? Ah, meu deus, eu tinha esquecido completamente.
Põe uma calça pelo menos. Você está com essa bermuda o dia inteiro.
Tá, vou me trocar, pode deixar.
Vesti a calça, e saímos. Eu tinha esquecido completamente desse chou – que não era chou coisa nenhuma, era só o Vanesso tocando com aquela molecada. Mas pelo menos eu ia me distrair, esquecer um pouco a tremenda sacanagem que fizeram com o Marcelo. Não dava nem para acreditar, cobrar estacionamento dos próprios empregados! Devia haver alguma lei contra isso. Se eu tivesse ao menos coragem de conversar com um advogado, tenho certeza que eu descobriria alguma coisa. Mas eu não tinha coragem de conversar com advogado, nem o Marcelo teria coragem de acionar a empresa, então era melhor esquecer.
Sentei com minha mulher e pedi logo uma caipirinha. O Vanesso acenou para a gente, começou a tocar um sambinha. Minha mulher falou o de sempre: não vai beber muito, não sei o quê. É por isso que eu não gosto de sair com minha mulher, ela fala sempre as mesmas coisas, já sei até as frases que ela vai usar. Pedi mais uma para ver se eu esquecia minha mulher também. Fui bebendo e sentindo aquele relaxamento gostoso, aquela soltura. Comecei a ouvir a música como se ela fosse uma coisa muito minha, como se já estivesse dentro de mim e nem precisasse de ouvido para chegar na minha cabeça. De repente escutei aquelas frases:

Flanando por entre automóveis
da garagem vertical.
Curtindo a brisa suave
do ar condicionado central,

Lá vai meu irmão,
lá vai meu herói.
Lá vai meu irmão,
fenomenal.

O que era aquilo? Eu nunca tinha ouvido aquela música. Só podia ser coisa do Vanesso! Mas a loucura toda é que, de alguma forma, a música era minha também. Era sobre o Marcelo, meu filho preferido, meu herói. Aquilo era muito meu! Fechei os olhos e cantei naturalmente, como se eu soubesse a letra de cor; como se eu nunca tivesse ouvido outra coisa na vida.

Lá vai meu irmão,
lá vai meu herói.
Lá vai meu irmão,
fenomenal.

Quando reabri os olhos, minha mulher estava batendo palmas, toda entusiasmada. – Você já conhecia? Já conhecia e não me falou nada! Como você conseguiu guardar segredo?
Claro que eu não conhecia coisa nenhuma. Mas senti que meus olhos estavam molhados. Eu estava chorando, nem sei se de tristeza ou de alegria. E, para falar a verdade, não quis saber. Cerrei os olhos e continuei cantando.

Lá vai meu irmão,
lá vai meu herói.
Lá vai meu irmão,
fenomenal.


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