Quando surgiu o controle remoto, no final dos anos setenta, Macaulay não deu muita bola. Achou que levantar para mudar de canal era no mínimo um bom exercício, e não valia a pena pagar o dobro numa televisão, só para ter o prazer de comandá-la à distância. Porém, com o tempo, o preço caiu bastante, e o número de canais só aumentou. Mac, como o chamava sua mulher, acabou cedendo, e aderiu à moda sem maiores dificuldades. Desde então, seu entusiasmo pela tecnologia não parou de crescer. Quando o microcomputador surgiu, nos anos oitenta, ele foi um dos primeiros compradores. Também foi pioneiro quando os telefones celulares começaram a tocar nos restaurantes e cinemas, no final dos noventa. Em 2004 fez um curso de webdesign e, quando se aposentou, em 2009, trabalhava criando aplicativos para smartphones. Na velhice havia se tornado um entusiasta de novas tecnologias, e assinava revistas especializadas, que tratavam desde livros digitais até viagens intergalácticas. Foi por meio delas que descobriu o que era criogenia, e, para desespero de Zelda, nunca mais conseguiu pensar em outra coisa. Chegou a mudar seu círculo de amigos, porque os retrógrados não adeririam à idéia nem depois que o preço caiu para menos que o de um condicionador de ar. Sua maior decepção, sem dúvida, foi não ter convencido a mulher, e, depois de inúmeras discussões, ficou decidido que os dois não falariam mais no assunto, para evitar aborrecimentos. Afeita a seitas esotéricas e idéias orientais, que Macaulay chamava simplesmente de superstição, Zelda fazia questão de defender seu direito a morrer em paz. Argumentava que: ou haveria vida após a morte – e essa seria um pouco melhor – ou haveria o descanso eterno, sem nenhum espaço para saudade. As duas opções seriam melhores que acordar num mundo assombrado por andróides e infestado de aparelhinhos irritantes que seus donos já nem lembrassem para que serviam.
Macaulay respeitou o direito da mulher, mas sempre que se encontrava com os amigos não deixava de expressar sua profunda frustração: – Ela não acompanha o progresso da medicina, não vê que é apenas questão de tempo até conseguirem fazer um transplante de cérebro!
Os amigos concordavam. Sim, era absurdo. Ela preferia morrer a dar um pouco de crédito à ciência. E agora estava tão barato, apenas quatrocentos dólares por ano! Que mulher mesquinha.
Mas Zelda também respeitou a decisão do marido, e guardou com cuidado o telefone da equipe de criogenização. Um dia Mac sentiu uma palpitação e lembrou à mulher: – Quando minha hora chegar, não vá esquecer de chamá-los, hem! Depois tomou seu comprimido para pressão, e ficou estranhamente taciturno. Sua mulher logo se preocupou: – O que foi, querido? Por que esse silêncio todo? O homem resmungou um pouco, depois desabafou: – Zelda, você vai casar de novo? – O quê?! – Quando eu for criogenizado, você vai arrumar outro marido? A mulher ficou até lisonjeada. – Ora, o que é isso, Mac! Eu tenho sessenta e quatro anos, você acha que eu ainda penso nessas coisas! – Sei lá, de repente você encontra um velho que nem você, que goste dessas bobagens orientais. – Ora, Mac, não seja bobo!
Zelda cortou o assunto, mas naquela noite dormiu até melhor. Nos dias seguintes começou a considerar a criogenização com mais simpatia. Mac, afinal, era um bom marido, sempre trabalhara e arcara com as maiores despesas do lar. Não era justo deixá-lo sozinho. Devia ser muito triste passar anos trancado naquele tanque de nitrogênio líquido. E se ele acordasse mesmo no tal futuro, será que se acostumaria a falar com andróides? Como ele se sustentaria? Sua aposentadoria se tornaria vitalícia? Dúvida e compaixão se alternaram no coração da velha, e ela concluiu que, se o marido insistisse mais um pouquinho, ela acabaria indo para o tanque com ele. Não por ela, que detestava qualquer aparelho com mais de quatro botões, mas pelo seu velho Macaulay, que sozinho não conseguia nem achar os óculos. Alguém tinha que cuidar dele, e se fosse preciso passar séculos imersa em nitrogênio líquido, ela estava disposta a fazer esse sacrifício. Decidiu que explicaria tudo ao marido assim que ele viesse com mais uma especulação cansativa sobre o futuro.
Não podia imaginar que o destino lhe negaria essa oportunidade. No dia seguinte, Macaulay estava vendo televisão, quando de repente o controle remoto parou de funcionar. As pilhas se esgotaram, e ele teve que se levantar para mudar de canal. Mas seu coração, muito desgastado, não suportou o pequeno trajeto. A dor no peito foi até fraca, comparada às outras que vieram após a queda. Contudo Macaulay lamentou mesmo foi a perda da fala, porque o rosto de Zelda, nos momentos finais, parecia mais consternado que ele esperava. O velho temeu que ela tivesse perdido o telefone da equipe. Mas seu receio não durou nem dez segundos. Logo ele mergulharia numa calma profunda, sem sonoridade, sem luz, sem nada que pudesse deixar uma lembrança.
Quando acordou, a primeira coisa que viu foi um teto branco, depois notou que ele não era branco, seus olhos é que estavam se acostumando à iluminação. Parecia estar num hospital, e chegou a lamentar que tivesse apenas passado por mais um infarto. Uma voz de mulher o saudou – Bom dia, senhor Smithson. Em breve uma de nossas enfermeiras falará com o senhor – e ele ficou mais aliviado, porque pelo menos era um hospital moderno, com dispositivos eletrônicos que sabiam que ele tinha acordado. A enfermeira era linda, e Macaulay quase não entendeu o que ela dizia, de tanto que ficou vidrado no movimento suave e ritmado dos seus lábios. Quando ela parou de falar, ele arriscou um comentário engraçadinho.
– Ah, minha querida, se eu tivesse apenas uns dez anos a menos, não saía daqui sem o seu telefone. – A resposta da garota acelerou seu batimento cardíaco, que ele podia acompanhar num pequeno monitor ao lado da cama.
– Senhor, devo avisá-lo que sou uma andróide. Neste pequeno panfleto o senhor encontrará informações sobre minha companhia. Caso tenha interesse, poderemos fabricar uma andróide com noventa e nove por cento de semelhança com a senhora Smithson, inclusive no sotaque e nos hábitos mentais.
Em seguida a beldade abriu um pequeno armário, e informou: – Esses são os pertences que a senhora Smithson considerou que seriam de interesse pessoal do senhor. Aqui está o cartão de outra companhia que poderá reconstruí-los caso algum deles venha a se desfazer. Ainda em estado de choque, Macaulay perguntou: – Quando ela morreu? – O senhor se refere à Sra. Smithson? – Claro que me refiro à minha mulher, sua máquina estúpida. De quem mais eu estaria falando? – Me desculpe, senhor. Eu precisava confirmar. Ela morreu em 2021. Fará exatamente 218 anos no dia 21 de outubro de 2239.
Ele ia perguntar quanto tempo ficou dentro da câmara de criogenização, mas as palavras simplesmente não saíram. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro talvez não fosse tão hospitaleiro quanto ele tinha pensado. Ficou alguns segundos contemplando seus objetos pessoais, que eram um leptop, um chapéu de caubói, algumas fotos de Zelda e um controle remoto de televisão.
Os dias seguintes foram de descobertas paradoxais. Quanto mais Macaulay conhecia coisas novas, mais lhe parecia que o mundo no fundo continuava o mesmo de sempre. Havia mais jardins, as pessoas trajavam estranhos macacões de plástico. Óculos inteligentes – chamados smartglasses – substituíam a televisão, os jornais e quase tudo relacionado a informação. Mas continuava a haver pobres e ricos, e o velho descobriu que precisaria voltar a trabalhar. Depois de alguns meses de treinamento, ele não teve dificuldade em se adaptar, e se tornou inspetor de qualidade numa fábrica de petbots (eram robôs que acompanhavam as pessoas filmando e gravando tudo que elas faziam, para consulta pessoal ou para servir de prova em caso de processos judiciais). Sua maior dificuldade era parar de pensar no passado. Quando ficava sozinho, punha-se a olhar suas fotos antigas, e como não lembrava muito bem dos seus sentimentos, começou a pensar – e até mesmo a acreditar – que tinha sido feliz. A Zelda das fotos tinha seios firmes e um sorriso encantador, não lembrava em nada a mulher rabugenta e entediante que havia se tornado mais tarde. Ele mesmo parecia contente entre os amigos, tinha um riso modesto e franco, um rosto descontraído, parecia um homem realizado. O futuro, por outro lado, era apenas um conjunto de rotinas maçantes que intensificavam sua sensação de vazio e solidão. Um dia recordou os argumentos de sua mulher sobre a morte, e se pegou pensando que, afinal, ela podia ter razão. Morrer não seria mais fácil que se cercar de atividades cada vez mais complexas para conservar a vida?
Em seguida a beldade abriu um pequeno armário, e informou: – Esses são os pertences que a senhora Smithson considerou que seriam de interesse pessoal do senhor. Aqui está o cartão de outra companhia que poderá reconstruí-los caso algum deles venha a se desfazer. Ainda em estado de choque, Macaulay perguntou: – Quando ela morreu? – O senhor se refere à Sra. Smithson? – Claro que me refiro à minha mulher, sua máquina estúpida. De quem mais eu estaria falando? – Me desculpe, senhor. Eu precisava confirmar. Ela morreu em 2021. Fará exatamente 218 anos no dia 21 de outubro de 2239.
Ele ia perguntar quanto tempo ficou dentro da câmara de criogenização, mas as palavras simplesmente não saíram. Pela primeira vez lhe ocorreu que o futuro talvez não fosse tão hospitaleiro quanto ele tinha pensado. Ficou alguns segundos contemplando seus objetos pessoais, que eram um leptop, um chapéu de caubói, algumas fotos de Zelda e um controle remoto de televisão.
Os dias seguintes foram de descobertas paradoxais. Quanto mais Macaulay conhecia coisas novas, mais lhe parecia que o mundo no fundo continuava o mesmo de sempre. Havia mais jardins, as pessoas trajavam estranhos macacões de plástico. Óculos inteligentes – chamados smartglasses – substituíam a televisão, os jornais e quase tudo relacionado a informação. Mas continuava a haver pobres e ricos, e o velho descobriu que precisaria voltar a trabalhar. Depois de alguns meses de treinamento, ele não teve dificuldade em se adaptar, e se tornou inspetor de qualidade numa fábrica de petbots (eram robôs que acompanhavam as pessoas filmando e gravando tudo que elas faziam, para consulta pessoal ou para servir de prova em caso de processos judiciais). Sua maior dificuldade era parar de pensar no passado. Quando ficava sozinho, punha-se a olhar suas fotos antigas, e como não lembrava muito bem dos seus sentimentos, começou a pensar – e até mesmo a acreditar – que tinha sido feliz. A Zelda das fotos tinha seios firmes e um sorriso encantador, não lembrava em nada a mulher rabugenta e entediante que havia se tornado mais tarde. Ele mesmo parecia contente entre os amigos, tinha um riso modesto e franco, um rosto descontraído, parecia um homem realizado. O futuro, por outro lado, era apenas um conjunto de rotinas maçantes que intensificavam sua sensação de vazio e solidão. Um dia recordou os argumentos de sua mulher sobre a morte, e se pegou pensando que, afinal, ela podia ter razão. Morrer não seria mais fácil que se cercar de atividades cada vez mais complexas para conservar a vida?
Daí para a tentativa de suicídio foi apenas um passo. Se Macaulay ainda está vivo é porque ressuscitar uma pessoa agora é tão banal quanto acender um fósforo. Depois de muita terapia e alguns órgãos substituídos, ele acabou consentindo em tentar de novo. O problema, como lhe explicaram os psicanalistas, era sua tendência a idealizar o passado como um estado paradisíaco, sem conflitos e contrariedades. Parece que Macaulay fazia agora com o passado o que no passado fizera com o futuro.
Foi também na terapia que ele descobriu uma forma criativa de lidar com essa tendência. Começou a escrever romances de época, que logo cativaram a todos pela riqueza de detalhes históricos. No futuro, familiarizados com os comandos por movimento de íris, todos adoram ouvir uma boa história sobre controles remotos. O próprio exemplar de Macaulay valeria uma fortuna se ele quisesse vender. Mas ele garante que nunca se desfará do objeto. Depois de duas ressurreições, ele começou a acreditar que certas coisas têm, para além de sua função imediata, um imensurável valor sentimental.
Gostei do que li, apesar de ser beeem longo...
ResponderExcluirÀ propósito, no início deste ano, eu pensei em enviar um conto para um livro que estava sendo preparado, Território V.
O livro foi um sucesso, mas, infelizmente, não consegui terminar o pretendido conto a tempo; afinal de contas, quando se trata de literatura, e partindo "do nada", prazos são complicadíssimos de se cumprir.
Porém, decidi tirar esse conto da gaveta e publicá-lo em um blog que tenho e estava inativo (http://ascronicasnoturnas.blogspot.com/), para que alguns amigos possam ler e opinar.
O dividirei em partes e as publicarei todos os domingos, pois o conto original tem 10 páginas e isso é muito para se ler no pc de uma tacada só.
Gostaria muitíssimo que todos se dispusessem a ler, quando lhes sobrar tempo ou faltar inspiração, e opinassem, criticassem, sei lá.
De outra maneira, nunca saberei se possuo o que é necessário para me dedicar a uma "carreira" literária e, afinal de contas, preciso começar por algum lugar!
Abraços e obrigadíssimo pela atenção.
http://ascronicasnoturnas.blogspot.com/
Ronaldo,
ResponderExcluirBom ver esse passo para trás do seu premalconceito em relação a ficção científica. Que diferentemente dos outros gêneros, é só um pano de fundo para uma história de qualquer outra classe.
Um pouco inocente e, imagino, uma precursora para as putas do futuro.
Abraço!
Oi Ronaldo. Quero apenas deixar o registo de que gostei bastante do teu site e, em especial, deste conto. abs
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