sábado, 31 de outubro de 2009

A notícia do século

Meu último artigo havia suscitado uma péssima repercussão. Acho que os leitores não estavam preparados para o impacto do avanço biotecnológico sobre a vida moral. Muitos enviaram críticas ferozes à revista, dizendo que eu tinha deturbado o conceito de "direito natural" e, principalmente, o caráter sagrado da maternidade. Mas nada daquilo me surpreendia. As pessoas são assim mesmo: aponte a mínima possibilidade de mudança nos seus hábitos, e elas o acusam de ser uma espécie de demônio. Não toleram mudanças, não suportam o fato de que a vida como é agora é só uma das muitas vidas possíveis. Se tomarmos outros caminhos, o mundo que surge diante de nós pode ser tão belo e desejável quanto o anterior, o sofrimento está apenas na nossa resistência.


Mas eu havia estudado o assunto por mais de 10 anos, e minha opinião não era mero palpite. O custo das técnicas Cold Milltered já havia baixado bastante, facilitando a abertura de clínicas no terceiro mundo. Além disso, nos países pobres, era mais fácil encontrar mulheres dispostas a alugarem seus ventres para a geração de filhos alheios. Quando a prática se tornasse mais comum, haveria um efeito reverso, e ela se popularizaria também nos países ricos. O ato que atende as expectativas dos interessados sempre se alastra com rapidez e facilidade. Logo a prática da barriga de aluguel seria comum no mundo todo. As jovens alugariam seus ventres para pagarem a faculdade. As mulheres mais ricas gerariam seus filhos pelos ventres das mais pobres, e não apenas por motivos de saúde, mas também por razões estéticas. Quando o processo se tornasse mais fácil e mais comum, muitas mães optariam pela barriga de aluguel apenas para poupar as transformações do corpo e a dor do parto. Quem realmente estudasse o assunto veria que era apenas uma questão de tempo. Só retrógrados e ignorantes se opunham às minhas opiniões. Eu não estava dando a mínima para a enxurrada de críticas, pois sabia que ela não vinha de gente balizada.

Quando o doutor Chertrol me telefonou, encarei a situação com naturalidade. Eu era o jornalista que mais entendia desse assunto. Era normal que ele me chamasse para registrar e divulgar as mais novas técnicas da área. Não fiquei envaidecido, não me senti privilegiado. Eu havia dedicado grande parte da vida a compreender e divulgar as técnicas de fertilização artificial. Ele provavelmente queria anunciar uma técnica nova, algo que possibilitasse uma geração de aluguel mais barata e eficiente, e me escolhia para portador da notícia. Era um corolário dos meus anos de esforço. Compareci a sua clínica tranqüilo e preparado para o trabalho. Não tinha idéia de que sairia de lá tão chocado, tão estupefato, e ao mesmo tempo feliz.

Doutor Chertrol vinha se destacando na área de reprodução humana. Mulheres do mundo todo vinham contratá-lo para administrar suas complexas gestações transuterinas. É claro que elas vinham também pela facilidade de se encontrar uma barriga de aluguel no Brasil, mas tenho certeza que a competência e o renome do médico também pesavam na sua decisão. Ele tinha fama de ser um homem frio, um pouco rude, com um jeitão meio caipira. Diziam que havia estudado primeiro veterinária, porque não gostava muito de tratar gente — ouvir lamentações, lidar com neuroses — mas, quando vira o que poderia fazer na área de reprodução humana, regressara à faculdade e conseguira um diploma de medicina. E, de fato, o setor só melhorou com sua decisão. Desde que ele assumira a clínica Nova Gênesis, as notícias de aperfeiçoamento e barateamento operacional eram constantes. Eu estava ansioso por conversar um pouco com ele, conhecer sua personalidade, tentar entender suas motivações. Enquanto estava no táxi, cheguei a pensar numa possível biografia. Cairia muito bem na minha carreira de jornalista científico. Mas era uma idéia ainda muito fresca, e tocar nesse assunto talvez seria precipitar-me. De qualquer forma, eu ficaria atento às oportunidades. Estava tão entretido com esses pensamentos que não me aborreci por esperar quase duas horas antes que ele me recebesse com seu entusiasmo e bom humor.

— Não há desculpa para meu atraso. Não vou nem pedir, sei que não há...
— Ora, não se preocupe, doutor. Sei como é seu trabalho. Não há como prever quanto tempo certas coisas vão durar...
— Sem dúvida! Você não faz idéia de como tem razão. Podemos prever muitas coisas, mas não quanto tempo vão durar, às vezes não sabemos nem quando poderão começar.

Senti que ele não estava falando apenas sobre horários e atrasos.
— Prever nem sempre é fácil...
— Sim, sim! Prever não é fácil. E por falar em previsão, li seu artigo. Quer dizer, nós lemos! Todos aqui na clínica o leram, e comentamos muito.

Eu estava lisonjeado. A essência do meu trabalho é popularizar a ciência, mas confesso que nada me agrada mais que merecer o reconhecimento dos especialistas.

— Fico muito contente com isso, doutor. O que o senhor achou das previsões? Será que tenho chance de acertar? — Eu não esperava entrar nesse assunto tão cedo, mas o bom humor e o elogio do doutor Chertrol me deixaram confiante.

— Falaremos sobre isso, meu caro. Falaremos ainda sobre essas coisas. Por hora digo apenas que você é brilhante. Vejo como você acompanha com atenção o assunto da reprodução humana. Sua intuição lhe faz um enorme bem, pois de fato acho que esse tema vai render as mais importantes inovações científicas do século XXI.

Óbvio que fiquei bastante lisonjeado. Queria muito ter gravado o que ele havia dito, e me arrependi de não ter ligado um gravador escondido. Meus escrúpulos muitas vezes me fazem perder um pouco da glória que mereço.

— De fato, sempre achei que esse assunto tem potencial para uma verdadeira revolução na forma como concebemos a sociedade e a família. — Preferi não dizer que eu me interessara pelo assunto simplesmente porque tenho uma irmã de proveta.

— Sim, você está certo. Não gosto dessa palavra, “revolução”, mas você tem razão. As novas técnicas de reprodução poderão mudar a forma como pensamos o homem e a família. Falaremos mais sobre isso, oh, sim, falaremos...

Ele estava um tanto enigmático. Confesso que eu já estava me cansando daquela história de "falaremos mais..." mas minha ansiedade estava prestes a terminar. Ele me encaminhou para um enorme salão cheio de aparelhos e pessoas trabalhando. Trajavam aqueles jalequinhos brancos, provavelmente eram veterinários ou enfermeiros. No centro havia uma espécie de jardim interno, cercado por barras de ferro, iluminado por uma grande cúpula de vidro. Quando me aproximei, tive a primeira surpresa de nossa entrevista. Vi uma cabra, deitada num gramado artificial, ligada a uma série de aparelhos por fiozinhos de capa transparente. Tive um momento de grande decepção, pois percebi que o motivo da visita não era a reprodução humana, como eu havia imaginado. Doutor Chertrol provavelmente voltara à veterinária e queria divulgar alguma nova descoberta, talvez ligada a clones. O assunto não me interessava muito, mas resolvi não reclamar. Se a coisa fosse realmente nova, pelo menos eu teria um furo, e isso faria bem à minha imagem recém abalada na revista.

Alguns enfermeiros ou veterinários, passavam um emplastro transparente na barriga da cabra. Ela estava estranhamente desanimada, provavelmente dopada. Pelo tamanho de suas tetas e barriga, supus que estava prenha.

O doutor Chertrol não se deu ao trabalho de me explicar inteiramente a situação.

— Vamos fazer uma ultrassonografia. Logo teremos uma imagem.

— Alguma técnica de clonagem? — Perguntei, um pouco ansioso.

— Logo teremos a imagem! — Ele respondeu, sem tirar os olhos do vídeo.

Senti que a imagem era algo definitivo, mais importante que uma explicação. Pus meus olhos no pequeno monitor preto e fiquei atento aos vultos que se formavam. Não consegui enxergar nada demais. Minha mente esperava encontrar alguns cabritinhos nebulosos, algo como as formas que vemos nas nuvens quando somos crianças. Mas eu não via nada parecido com isso, as manchas brilhantes do ultrassom não estavam fazendo muito sentido para mim.

— Você vê o coração? Está vendo o coraçãozinho do bebê? — Doutor Chertrol me apontou entusiasmado uma pequena bolinha pulsante. De fato reconheci algo parecido com um coração, pelo menos dava para ver que batia.

— Aqui está a cabeça... Sim, a pequena cabecinha do bebê, não é lindo?!?

— Não consegui ver a cabeça, talvez por que não fazia idéia de como devia ser a cabeça de um feto de cabra; se tinha chifres, se já era alongada, com um princípio de focinho, etc. Mas fiquei impressionado com a forma carinhosa com que ele se referia ao pequeno animal. Não dizia cabrito ou feto, mas bebê. Pensei em anotar isso para a reportagem, o Doutor Chertrol era de fato um homem emocionalmente envolvido com seu trabalho.

— Desculpe a pergunta, doutor, mas os fetos de cabra já têm chifres? Não estou reconhecendo a cabeça.

Uma risada alta e contagiante encheu o salão. Todos começaram a rir com ele.

— Chifres?! Você está procurando chifres, ha, ha, ha!

Fiquei imaginando o quanto minha pergunta era ridícula. Assim como nascemos sem dentes, as cabras deviam nascer sem chifres. Era óbvio, como pude ser tão idiota!

— Perdoe minha ignorância, doutor Chertrol. Minha especialidade é reprodução humana, não tenho acompanhado nada sobre veterinária.

— O que é isso, amigo! Não se desculpe. Eu é que devo me desculpar. Acho que confiei demais naquela história de que uma imagem vale mais que mil palavras.

— De fato, doutor, olhar para esse ultrassom é como olhar para uma nuvem. Você não enxerga nada, se não souber o que está procurando.

— Oh, meu rapaz, quanta sabedoria! Você não sabe o que está dizendo, suas palavras são mais precisas que imagina... Além disso, tem toda razão, não adianta ficar aqui olhando para esse ultrassom. Vamos voltar para a minha sala. Pessoal, mantenham a diploptamina. Vou voltar logo.

Fiquei envergonhado. Certamente ele esperava que eu tivesse entendido algo só de olhar para o ultrassom. Talvez algo filosófico, sublime, que não tivesse nada a ver com uma simples cabra prenha. Fiquei me questionando enquanto o acompanhava cabisbaixo, evitando os olhares de decepção dos veterinários, que certamente também esperavam algo de mim.

Assim que entramos ele me serviu uma pequena dose de cachaça. Fiquei encantado com sua autenticidade. Um médico medíocre certamente teria uísque importado em sua sala. Agradeci e bebi com prazer o primeiro gole.

— Sabe, Lucas, eu sempre achei um pouco difícil lidar com gente. As pessoas são emotivas demais, não conseguem agir racionalmente...

Eu não tinha idéia de onde ele queria chegar.

— Veja esse caso das mães de aluguel, por exemplo. As mulheres aceitam as condições, assinam um contrato, depois voltam atrás começam a nos encher de processos.

— Muitas não fazem isso por uma emoção verdadeira. São mal intencionadas, querem explorar o casal que as contrata.

— Exato, meu rapaz! Você é a pessoa certa para conversar, você entende minhas dificuldades. Não é fácil trabalhar neste ramo, ainda mais com o atraso da legislação, que insiste em não legalizar a coisa. Os contratos ficam à mercê da confiança mútua, e, você sabe, confiança é algo raro hoje em dia...

— Sei, sei, claro que sei. — Eu conhecia bem o assunto, sabia que algumas mães de aluguel tentavam extorquir o casal contratante ou a clínica, ameaçando processos e ações judiciais diversas para ficar com o bebê.

— Pois é isto, meu caro. Não é fácil lidar com gente. — Enquanto falava, ele ia bebericando sua cachaça. — Então fiquei pensando se não seria possível criar uma espécie de gestação artificial. Um feto crescendo e se desenvolvendo fora da mãe, mas que não fosse numa outra mulher, que não dependesse de outro ser humano, entende? Uma gestação que dependesse exclusivamente de nós, profissionais. Pessoas que não iriam interferir no processo, pessoas que não iam mudar de idéia no meio do caminho...

— Um dia aconteceu uma coincidência, um evento que me ajudou a ter essa idéia. Fui passar as férias na fazenda de um amigo, em Mato Grosso do Sul. Ele tinha uma criação de caprinos, e uma cabra resolveu entrar em trabalho de parto no meio da noite. O veterinário mais próximo estava a uns duzentos quilômetros de distância, e meu amigo me pediu para supervisionar o parto. Ah, foi uma experiência ótima! Não só relembrei minha juventude, minha perambulação de fazenda em fazenda, o cheiro de mato, de esterco, os rugidos dos bichos... mas revivi mais uma vez a magia da vida. Não precisamos fazer muito para que a vida se reproduza, basta lhe dar boas condições e ela faz o resto. Isso não é maravilhoso, rapaz? A vida faz mais vida, precisamos apenas dar uma mãozinha!... — Eu ainda não sabia onde ele queria chegar, mas seu entusiasmo era algo bonito de se ver.

— Ah, meu amigo, essa é a beleza da minha profissão: ver a vida se reproduzir... — o álcool fazia seu efeito. Ele estava sorridente: — Mas, voltando às cabras, voltando àquela noite imprevista, na fazenda do meu amigo, eu fiquei encantado ao ver aqueles bichinhos escapando do ventre da mãe, escapando para o mundo, para a vida! Depois, enquanto ajudava a limpar a pobre fêmea, que estava exausta, reparei numa coisa interessante. O feto humano é relativamente pequeno. Ele caberia com facilidade em outro animal. Numa vaca, Numa porca, talvez até numa cabra... Então, meu amigo... então... acho que você está me acompanhando... Uma cabra não pode processar uma clínica, pode? Você percebe, percebe a grandeza da idéia que estava me ocorrendo naquele momento? O resto, meu amigo, são detalhes técnicos... Proteínas, hormônios, anti-soros... enfim, essas coisinhas sobre as quais debrucei minha juventude.

Eu estava atônito. Sabia exatamente o que ele queria dizer, mas não acreditava. É difícil explicar tudo que passou pela minha cabeça naquele momento. Fiquei zonzo, cheguei a pensar que eu estava passando mal. Doutor Chertrol não pôde deixar de notar:

— Você está bem, meu rapaz?

Mas logo me recuperei: — Estou bem, doutor. Vamos voltar ao salão. Acho que estou preparado para a imagem que vale mais que mil palavras.

Enquanto eu caminhava, ainda estava dominado pela dúvida. De alguma forma eu sabia que aquilo estava acontecendo, um profissional como o doutor Chertrol não iria me falar tudo aquilo em vão. Mas ao mesmo tempo eu parecia estar vivendo um sonho. Algo naquela história era fantástico demais para eu aceitar como realidade. Mesmo assim parei diante do vídeo e esperei. Agora eu sabia o que deveria enxergar, e a imagem logo faria sentido em minha cabeça. De fato, os pontinhos brilhantes foram formando um contorno nítido. Vi os bracinhos retorcidos para dentro, o dorso, a cabeça. Julguei ver até uma pequena orelha. A cabra estava deitada no gramado artificial, indiferente a toda emoção que me perpassava. Ainda em certo estado de choque, olhei para o doutor Chertrol. Ele sorria, parecia ter previsto todo o espanto que me ocorreria com aquela visão. Eu também sorri, na verdade comecei a gargalhar, quase sem controle. De repente percebi que tudo que eu havia previsto estava errado. A barriga de aluguel não se popularizaria, não se tornaria uma prática comum, não geraria renda para estudantes e mulheres mais pobres. Eu era um péssimo profeta. E no entanto estava completamente feliz, pois eu era o portador da notícia científica mais importante do século. Não sabia como agradecer ao doutor Chertrol, e de fato não havia como agradecê-lo. Há homens que simplesmente nasceram para alargar o horizonte do possível. É graças a eles que chegamos até aqui. É graças a eles que cada geração pode fazer muito mais que a anterior. Eu era apenas um jornalista. Tudo que eu podia fazer era contar. Minha tarefa era simplesmente colocar em palavras aquela imagem valiosa que eu havia testemunhado, e que valia infinitamente mais do que elas. Ali mesmo, ainda atordoado pela surpresa, pensei num título para a reportagem: “Barriga de aluguel está com os dias contados”. O resto são apenas detalhes da profissão.


2 comentários:

  1. Olá Ronaldo, esse conto é de autoria sua?
    Abraço!

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  2. Putz achei muito bacana! Você tem um banner pra eu colocar um link no meu blog? Com que frequencia vc atualiza?
    Abraço!

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